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“A Itália não vai respeitar promessas, estou sentenciado à morte. Em seis meses eu acabo”, diz Battisti

Italiano foi capturado na Bolívia neste domingo (13). Confira uma das últimas entrevistas concedidas por ele à imprensa brasileira, em 2017
Vanessa Martina-Silva

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Atualizada em 13/01/2019, às 12h35

Situado historicamente nos anos 1920-1940, principalmente na Itália, o termo fascismo voltou a ter destaque no Brasil nos noticiários e até mesmo em conversas de boteco. A vitória de Jair Bolsonaro (PSL) nas últimas eleições não deixa dúvida de que a ideologia fascista — que junto com o nazismo mergulhou a Europa na Segunda Guerra Mundial — tem encontrado eco em terras tupiniquins.

Não é de se estranhar que, em meio a todos os ataques discursivos e efetivos feitos à esquerda no Brasil pelo governo eleito e seus apoiadores, a figura de Cesare Battisti tenha voltado ao noticiário. A extradição do italiano foi uma das promessas de campanha de Bolsonaro, que se comprometeu com o governo da Itália a rever a decisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003–2011).

Italiano foi capturado na Bolívia neste domingo (13). Confira uma das últimas entrevistas concedidas por ele à imprensa brasileira, em 2017

Cocagnetires
Após deixar a luta armada e se lançar em uma jornada de fuga em busca da liberdade, Battisti tornou-se escritor

Porém, antes que o governo eleito pudesse tomar posse e Bolsonaro ficar com o mérito de extraditar o italiano, praticamente como seu último gesto significativo à frente da presidência do Brasil, Temer decidiu revogar a condição de refugiado de Battisti e entregá-lo à Itália. 

“A Itália nunca parou de me perseguir. A cada seis meses, um ano, [inventam] uma coisa. às vezes quase funciona”, disse Battisti, em entrevista exclusiva feita em 2017 e até agora inédita. 

Neste sábado (12), Battisti foi capturado na cidade de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia em ação coordenada entre os governos de Bolívia, Itália e Brasil. Desde dezembro de 2018, o italiano estava foragido. 

Carlos Lungarzo, autor do livro que conta a história de Battisti, iniciou uma campanha pedindo que brasileiros solidários ao italiano enviem mensagens às autoridades bolivianas pedindo que a Bolívia conceda refúgio a ele. 

Na última semana, o ministro do STF Luiz Fux mandou revogar o habeas corpus concedido por ele mesmo em 2017 e autorizou a prisão de Battisti. De acordo com o magistrado, o órgão colegiado — no julgamento de 2010 — já havia emitido o entendimento de que o ex-ativista deveria ser extraditado, mas a decisão final deve ser política e, portanto, de responsabilidade do presidente da República. 

Um dia após a decisão de Fux, Temer assinou o pedido de extradição. A medida, altamente simbólica, reforça os rumores de que o ilegítimo vai pleitear o posto de embaixador do Brasil na Itália no governo Bolsonaro, o que garantiria a ele foro privilegiado após deixar a presidência. 

Sobre o caso, o futuro ministro da Justiça e ex-juiz federal Sergio Moro, famoso por sua atuação na Lava Jato e pela perseguição judicial que perpetrou contra Lula, se manifestou, dizendo que Temer fez bem porque a decisão de Lula “teve motivações político-partidárias”. 

A defesa de Battisti, no entanto, argumenta que o prazo para revogar a decisão de Lula era de cinco anos após a concessão do refúgio e somente se provado que houve algum vício na decisão, o que não ocorreu.

No meio de tudo isso está um homem de 64 anos, que tem um filho brasileiro de cinco e que manifestou, por diversas vezes, seu desejo de permanecer aqui e cuidar de sua família. Battisti chegou ao Brasil em 2004, após fugir da França, onde viveu por 14 anos e deixou duas filhas: Valentina e Charlene Battisti.

A chuva que caía no litoral me recordava a primeira vez em que  entrevistei Cesare Battisti, há seis anos. Na ocasião, ele trabalhava na divulgação de seu livro Ao Pé do Muro (Martins Fontes, 2012). Desta vez, o que me levou a dirigir por mais de cinco horas e a percorrer 300 quilômetros era a possibilidade de esse homem ser extraditado arbitrariamente, após quase 20 anos lutando pela liberdade.

A conversa ocorreu em meados do ano passado. Battisti me recebeu na casa, emprestada, em que vivia em Cananeia, no litoral Sul de São Paulo. Um sobrado simples, com poucos móveis e uma certa ideia de transitoriedade. O portão aberto e as duas mulheres que conversavam na porta quebravam a ideia de que ali vivia um foragido. 

Battisti não estava. Havia ido a uma casa de materiais de construção, onde fazia compras para uma obra: ele estava construindo um lar para viver com a família.

Quando por fim nos instalamos na sala para iniciar a entrevista, apareceu Raul, seu filho. Na época, com quatro anos, ele havia viajado com a mãe do interior do estado para o litoral. Battisti e Priscila estavam resolvendo as arestas, problemas conjugais decorrentes, em parte, do assédio da imprensa à intimidade do casal… O menino estava cansado da viagem, mas queria a atenção do pai para ajudar a aliviar o tédio e interrompeu a conversa em diversos momentos.

Priscila, ex-companheira de Battisti, chegou a enviar, à época, uma carta à então presidenta do STF, ministra Cármen Lúcia, pedindo que seu companheiro não fosse extraditado. No texto, a professora falava das dificuldades de se criar um filho sozinha e da importância não só afetiva, como também física e financeira, que Battisti tem na vida do menino.

“Humildemente, faço um apelo a vossa senhoria para que permita que Cesare continue neste país como lhe fora permitido outrora, para que tenha o direito de continuar exercendo sua paternidade de maneira integral e pelo direito de nosso filho poder crescer num lar amparado por ambos os pais”, diz um trecho da carta.

Após deixar a luta armada e se lançar em uma jornada de fuga em busca da liberdade, Battisti tornou-se escritor, tendo publicado um total de 15 livros. Ele chegou a usufruir de certa fama na Europa. 

Seu primeiro livro que ganhou elogios da crítica, Dernières Cartouches (O Último Tiro) conta a história de um jovem semi marginal que se juntou a grupos armados. O romance retrata as contradições dos militantes sem romantizá-los e desvela o clima de terror estatal, revelando que o fascismo não havia sido superado, como acreditavam muitos, com a queda de Benito Mussolini. 

“É o único romance em qualquer língua que conta a participação de terroristas italianos na ditadura argentina de 1976 como instrutores dos genocidas de Buenos Aires”, escreve Carlos Lungarzo em seu livro “Os cenários ocultos do Caso Battisti” (Geração, 2012).

Lungarzo diz ainda que os italianos ficaram “furiosos” com a resenha do livro publicada pelo jornal Paris Match: “a obra ficcional de Battisti é a melhor condenação já escrita sobre o impasse absoluto do terrorismo”.

A atividade remunerada que o permitiu sobreviver esses anos no Brasil é um dos temas que mais despertam curiosidade, principalmente na direita. A esse respeito, ele observou que seu trabalho como escritor permite “sobreviver”, mas desabafou: “o boicote é sempre contínuo, não se fala de mim enquanto escritor, só em temas negativos”. 

Segundo ele, é parte do plano. “A embaixada italiana prometeu anos atrás: ‘você não vai sair da prisão, não vai conseguir viver’. Ainda assim, sobrevivi e publiquei meus livros”.

Quando conversamos, já havia a possibilidade de Temer extraditá-lo e uma insegurança jurídica quanto à sua situação. A indefinição era motivo de angústia para ele. “Eu não posso continuar escondido. Não quero ficar nessa prisão que eles estão construindo ao meu redor”. 

A chave para fora dessa masmorra era, segundo ele, a literatura. 

Durante a conversa o editor de seu novo livro, chamado Quilômetro Zero, também estava no local, trabalhando a versão final da obra, um romance que busca recontar a história de parte da costa sul brasileira, partindo de Cananéia. 

“É um romance com documentação inédita, tenho documento que prova que os primeiros a chegar nesses 500 quilômetros de costa não foram os portugueses, mas os árabes em alguns navios da frota otomana, por volta de 1494”. A obra é baseada em documentação exclusiva. “Cheguei a documentos que estão no Arquivo de Istambul. Tinha 200 anos que ninguém metia a mão lá dentro, mas foi por acaso, porque conhecia uma pessoa e outra e outra…”. 

Apesar do que diz a imprensa brasileira e o governo italiano, os quatro homicídios, cuja execução ou planejamento são atribuídos a Battisti, foram essencialmente políticos. Ele nega participação em todos e a defesa diz não haver provas que possam vinculá-lo aos atos. 

Antonio Santoro, Pierluigi Torregiani, Lino Sabbadin e Andrea Campagna eram acusados pelos Proletariados Armados pelo Comunismo (PAC) — do qual Battisti fez parte — de tortura e assassinato de populares. O movimento, em seu princípio, era contra a violência letal e a morte de Santoro, a primeira, marcou o ponto de ruptura de Battisti com o grupo. Ele deixou o PAC logo após o assassinato.

Breve histórico de cada uma das mortes:

Santoro era comandante do cárcere da prisão de Udine e, de acordo com familiares de presos, submetia os detentos a tortura e situações degradantes.

Sabbadin era açougueiro, filiado ao grupo paramilitar Maggioranza Silenciosa, tradicional grupo neofascista, conhecido por matar ladrões e outros marginais, mas também perseguiam piquetes de grevistas e estudantes.

Torregiani, o ourives, também era membro do Maggioranza Silenciosa. De acordo com o jornal La Repubblica, procurava confrontos com o pretexto de matar ladrões. Chegou a exibir em sua loja uma foto do cadáver de um bandido.

Campagna era motorista e esteve entre os que transportaram membros do PAC entre a prisão, considerada centro de tortura, e o tribunal de Milão. Há denúncias, não comprovadas, de que ele teria torturado os prisioneiros.

Ainda que se considere que Battisti tenha sido responsável por esses crimes — há vasta documentação que diz o contrário —, eles têm caráter político. “Crime político é um ato praticado por uma pessoa ou um grupo de pessoas contra um governo por considerar opressor o sistema estabelecido”, escreve Lungarzo, pós-doutor e professor aposentado da Unicamp, integrante da Anistia Internacional em seu ensaio do livro Os Cenários Ocultos do Caso Battisti (Geração Editorial,2012).

“Eles dizem que não sou [criminoso] político, mas eles podem dar perpétua só para os políticos. Para me condenar, sou político, mas para pedir extradição, sou [criminoso] comum”, observa Battisti. 

A esse respeito, o ministro do STF Marco Aurélio de Mello, durante o julgamento de 2009, foi um dos que defenderam a tese de que os crimes imputados a Battisti são políticos. Em seu voto, lembrou que as 34 condenações de membros do PAC pelo Tribunal de Milão definiam as atividades como “subversão ao Estado”, o que é um crime político. Os mesmos juízes que depois disseram que os crimes de Battisti eram comuns. 

“Se os crimes fossem comuns e não políticos, a Itália atacaria o Brasil com tanto afinco? Se não fossem realmente crimes políticos, será que o embaixador da Itália estaria vigiando tudo que se falava no plenário?”, questionou o ministro. 

Além disso, a Itália não oferece reparações às vítimas de crimes comuns, mas Alberto Torregiani, filho do ourives Pierluigi Torregiani, recebe uma pensão pelos danos produzidos pela bala que o atingiu e o deixou paraplégico. Ou seja, isso leva a crer que o Estado italiano considera que o ataque foi crime político.

Prisões, fugas, reviravoltas judiciais e perseguição midiática são as marcas dos últimos 37 anos de Battisti. Preso duas vezes entre os anos 1972 e 1974 pelos crimes de furto e assalto à mão armada, conheceu o PAC na prisão e começou a atuar no grupo antifascista que tinha, entre suas resoluções iniciais, a negação/ proibição da violência armada.

Pergunto a ele se valeu a pena. “Valeu a pena sim, por que não deveria ter valido? Estamos falando dos anos 1970, pós 1968, quando o mundo estava fervendo. Tínhamos democracia fantoches, jornalismos selvagens, homicidas e assassino nas maiores potencias do mundo”.

“Eu sou parte dessa geração. se você me diz: vocês cometeram erros? Claro que sim, quem não erra? Não erra quem não faz nada. Mas o mundo hoje está melhor? Hoje está pior. Então por que não valia a pena? Vale a pena ainda…”

“No que se refere à sua situação, há sempre uma comparação com o caso de Olga Benário, que foi entregue, grávida de Luís Carlos Prestes, por Getúlio Vargas para os nazistas…”, observo. 

“Não posso acreditar que exista uma reciprocidade ideológica como foi o caso com Olga — foi horrível, imundo, mas tinha algo de ideológico lá. Nesse caso, isso não existe”, diz ao relacionar com o fato de que Vargas, responsável pela extradição, naquele momento, era simpático ao fascismo. 

Para ele, o fato de Temer assinar sua extradição equivaleria a “jogar o Brasil na lixeira”. E numa visão otimista, acrescentou: “não posso acreditar que todos sejam comprometidos com as coisas mais podres do mundo. Não acredito de nenhuma forma. Eu acho que Temer não vai fazer isso. Ele se mostrou bastante esperto, inteligente para não fazer uma besteira”.

Mas Battisti errou.

Mentiras.

Não é possível, pelo direito internacional, extraditar uma pessoa para que ela cumpra pena que não esteja prevista na Constituição brasileira, como é o caso de Battisti, condenado na Itália à prisão perpétua. No Brasil, o limite de cumprimento das penas de prisão é de, no máximo, 30 anos.

Em outubro do ano passado, a Itália afirmou que não aplicaria a prisão perpétua a Battisti para retirar os impedimentos legais a sua extradição. Para o renomado jurista Dalmo Dallari, no entanto, a promessa é vazia, uma vez que “a decisão transitou em julgado, e o governo italiano não tem competência jurídica para alterá-la, para impor uma pena mais branda”.

Apesar da suposta boa vontade do governo europeu, Battisti diz ter provas de que, não só sua perpétua não será retirada, como sua própria vida estará em risco com a extradição: “A Itália não vai respeitar de jeito nenhum as promessas, porque estou sentenciado [à morte]. Em seis meses, quando a imprensa esquecer de mim, eu acabo também”.

A declaração ajuda a explicar o fato de ele ter fugido e ter, até o momento de fechamento desta matéria, paradeiro desconhecido.

Enquanto tomava uma cerveja e analisava meus arquivos desfrutando da maresia noturna de Cananeia, o garçom me abordou, após ver na tela do tablet uma foto de Battisti: “você conhece ele? Ele sempre vem aqui com a família”. 

Curiosa, quis saber mais sobre a imagem que os locais tinham dessa pessoa, que tem mobilizado a diplomacia e a Justiça de Brasil e Itália a ponto de quase provocar um conflito diplomático em alguns momentos. “Ele é sempre educado. Às vezes vem aqui, toma uma cerveja e vai embora. Todo mundo gosta dele”, disse, sem dar nenhuma informação preciosa. 

Ao deixar a cidade, pela manhã, questionei o dono da vendinha e o filho dele se sobre Battisti. No começo disseram não saber, mas logo lembraram, sem grandes emoções: “ah… ele às vezes passa aqui”.

Ou seja, em Cananeia, cidade litorânea de 12 mil habitantes, Battisti era só mais um cidadão comum. 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Vanessa Martina-Silva Trabalha há mais de dez anos com produção diária de conteúdo, sendo sete para portais na internet e um em comunicação corporativa, além de frilas para revistas. Vem construindo carreira em veículos independentes, por acreditar na função social do jornalismo e no seu papel transformador, em contraposição à notícia-mercadoria. Fez coberturas internacionais, incluindo: Primárias na Argentina (2011), pós-golpe no Paraguai (2012), Eleições na Venezuela (com Hugo Chávez (2012) e Nicolás Maduro (2013)); implementação da Lei de Meios na Argentina (2012); eleições argentinas no primeiro e segundo turnos (2015).

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