Pesquisar
Pesquisar

Direito de resposta: TV Record ignora critérios jornalísticos ao atacar crianças sem-terra

Reportagem divulgada no pela Rede do Bispo Neo pentecostal Edir Macedo é parcial, não ouve o outro lado e apresenta falhas na apuração
Leonardo Fernandes
Brasil de Fato

Tradução:

“Na nossa concepção, a reportagem se insere em um contexto maior, que é de criminalização do MST, sobretudo nesse momento em que vemos o avanço cada vez maior de práticas de exceção no nosso país e percebemos o alinhamento político-ideológico da emissora com o governo eleito. Trata-se, na verdade, de mais um capítulo no processo de criminalização dos movimentos sociais”, denuncia Hilário.

A reportagem especial, com quase 20 minutos de duração, utiliza imagens públicas do MST, e de veículos de informação que deram ampla cobertura ao 1º Encontro Nacional das Crianças Sem Terrinha, ocorrido entre os dias 23 e 26 de julho, em Brasília. Na narrativa montada pelo jornal, os “especialistas” questionam o suposto descumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Uma leitura que, segundo Hilário, é superficial e tendenciosa, tendo em visto que o MST é um dos principais garantidores do ECA nos territórios de reforma agrária, muitas vezes negligenciados pelo Estado.

“O ECA é de responsabilidade do conjunto da sociedade: do Estado, da família, dos movimentos sociais, ou seja, a reportagem pegou um aspecto da legislação e mesmo assim não aprofundou. Por exemplo, no ECA, diz que as crianças têm direito a políticas públicas sociais. No entanto, o que a gente vê em curso no país é exatamente o contrário. É a negação do direito das crianças à educação. Exemplo disso é fechamento de mais de 27 mil escolas no último período. Outro exemplo é que negam o artigo 53 do próprio ECA que trata do direito à educação, e que diz que o acesso à escola pública deve ser próximo à residência. No entanto, o que acontece é exatamente o contrário, é o fechamento de escolas no campo, em uma sistemática de negar o direito das crianças à educação”.

Segundo Hilário, não fosse a capacidade de organização das famílias camponesas, o que inclui as próprias crianças, muitas delas viveriam à margem de direitos, “sob o silêncio sepulcral” da mídia tradicional brasileira.

“O que nós fazemos é exatamente assegurar o direito das crianças o direito à terra, o direito à escola. Se existem hoje escolas públicas, gratuitas, municipais e estaduais, em territórios rurais, em assentamentos, se deve graças à organização dos trabalhadores e das próprias crianças, porque o protagonismo infantil é um dos direitos que está assegurado pelo ECA. Então, se não fossem as próprias crianças e suas famílias colocando a educação como direito, elas jamais teriam acesso à escola. E volto a afirmar, as escolas que estão em assentamentos são escolas públicas, gratuitas, sob responsabilidade dos estados ou municípios, com reconhecimento do MEC”.

Fonte ouvida pela matéria da TV Record acusa o MST de “estimular a violência” das crianças e praticar “lavagem cerebral”. “As crianças brasileiras estão submetidas sim à violência. À violência praticada por essa sociedade que lhes nega o direito à educação. À violência por essa sociedade que lhes nega a proteção. A gente entende que a criança é de responsabilidade da família e da coletividade, do assentamento e do acampamento. Violência é a fome que muitas crianças desse país estão submetidas. Essa é a principal violência. As crianças dos nossos assentamentos e acampamentos frequentam escola, tem seus espaços de lazer”, explica Hilário.

Erro de apuração

A reportagem questiona ainda a observação de critérios fundamentais para a realização do Encontro Nacional das Crianças Sem Terrinha no ano passado, o que, segundo Hilário, foi mais um erro grave de apuração do telejornal.

“Todo o encontro esteve baseado nas leis que regem a organização de encontros dessa natureza com crianças. Foi observada desde a autorização dos pais com reconhecimento em cartório, as crianças foram levadas na companhia de educadores, o encontro foi realizado com 1200 crianças e mais de 400 adultos com a tarefa de cuidá-las. Tínhamos UTI, posto médico no local, ou seja, nada do que fizemos foi contra a legislação em vigor, ao contrário, não fizemos isso somente para responder a uma questão legal, mas porque nós acreditamos que as crianças precisam ter seus direitos preservados, entre eles, a questão da proteção em sua integralidade. Tudo foi feito como manda a lei.”

1º Encontro Nacional das Crianças Sem Terrinha ocorreu em 2018, em Brasília, e obedeceu todos os critérios legais para a realização. Foto: Elitiel Guedes

O MST é um movimento social fundado na década de 1980, por trabalhadores rurais despossuídos de terra para o trabalho agrícola, e como uma forma de reivindicar do Estado a realização da reforma agrária. Muitas daquelas crianças sem-terrinha que passaram pelos espaços infantis do movimento, hoje são profissionais que contribuem no desenvolvimento dos territórios, lembra Hilário.

“Eu gostaria que eles pudessem falar com os advogados do MST que foram sem-terrinha, com os médicos que foram sem-terrinha. Que falassem com pessoas que hoje, formadas em universidades públicas, que eram sem-terrinha, e que hoje contribuem para o processo de desenvolvimento do assentamento”.

Reincidente

Não é a primeira vez que, por razões meramente ideológicas, a TV Record abre mão de critérios éticos fundamentais ao exercício do jornalismo para atacar o diferente. Em janeiro deste ano, a emissora foi condenada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), por realizar ataques a religiões de matriz africana em sua programação. O Ministério Público Federal demonstrou no processo que o conteúdo veiculado pela empresa se tratava de “intolerância religiosa em pleno espaço público televisivo contra as religiões afro-brasileiras”.

Por conta da condenação, a Record terá que dar direito de resposta em quatro programas de televisão com duração de 20 minutos cada, além de pagar uma indenização de R$ 300 mil para cada uma das entidades que ajuizaram a ação: o Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Itecab) e o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (Ceert).

Uma das fontes consultadas pela reportagem é o promotor Munir Cury, do Ministério Público de São Paulo, que, supostamente, teria ajudado a construir o Estatuto da Criança e do Adolescente. Em sua rede social, Cury fez chamados a manifestações pelo impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff. Também em sua rede social, a chefe de reportagem que assina a matéria contra as crianças sem-terrinha, Renata Garofano, aparece fazendo campanha eleitoral para Jair Bolsonaro.

Reprodução/Facebook/Renata Garofano 

Cuidado com as crianças

A TV Record editou o material audiovisual do MST e de veículos alternativos de imprensa, incluindo efeitos sonoros e visuais, que buscavam dar dramaticidade à narrativa e promover uma suposta compaixão pelas crianças. Mesmo tratamento não foi dado à notícia amplamente divulgada pela mídia brasileira e portuguesa no final de 2017, sobre uma investigação aberta pelo Ministério Público de Portugal para apurar uma suposta rede de tráfico internacional de crianças, que seria articulada pela Igreja Universal do Reino de Deus.

A TV portuguesa divulgou uma série de reportagens nas quais acusava o líder da igreja e dono da TV Record, Edir Macedo, de tráfico internacional de crianças. A defesa de Macedo negou as acusações e classificou o conteúdo jornalístico de “campanha difamatória, mentirosa”.

A reportagem do Brasil de Fato entrou em contato a Rede Record para comentar a divulgação da reportagem, mas até o fechamento desta matéria não obteve resposta.

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Leonardo Fernandes

LEIA tAMBÉM

Lula - 1 de maio
Cannabrava | Lula se perdeu nos atos de 1º de maio
Brasil_desigualdade
Neoliberalismo, concentração de renda e pobreza: o caso da América Latina
G20 Social
Na presidência do G20, Brasil faz encontro inédito e chama sociedade civil a debater crises globais
Mercado de Sucre, na Bolívia
Por que alimentos no Brasil estão caros e na Bolívia, baratos? Segredo está no pequeno produtor