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A reforma da previdência proposta por Bolsonaro se alimenta de mentiras. Saiba quais:

Podemos sim viver mais, podemos mais do que isso, viver melhor, mas não é olhando pra esse horizonte de mentiras que vamos conseguir fazer isso
Leticia Parks
Esquerda Diário
São Paulo (SP)

Tradução:

“Hoje o trabalhador vive até 80 anos”; “as contas do INSS não fecham”; “a aposentadoria vai ser mais justa e vai igualar todos os trabalhadores”. Por trás de cada uma dessas frases, tem uma mentira dessas bem grandes e podres, contatadas em uma só voz pelo governo Bolsonaro, seu time de economistas e os jornalistas inconfiáveis de quase todos os jornais do país e da Globo – que guarda oposição ao Bolsonaro pro que dá ibope. Vamos falar um pouco sobre essas mentiras e meias verdades?

A mentira da idade mínima

Foi um show de mágica. Enquanto você olhava qual era a idade mínima que eles iam te propor trabalhar e já lançava números na calculadora, por trás do palco o jogo invisível era encontrar uma forma de a idade mínima, por mais cruel que fosse, pudesse ser mudada e aumentada “ao gosto do freguês”. E atenção: o freguês não é você! São os banqueiros, os ricos, os industriais… Os capitalistas. Para eles, o Estado ficar remunerando as pessoas quando elas já estão velhas é custoso demais.

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Não porque realmente custe muito – mais pra frente te conto como o que impede a conta de “fechar” é a bolsa-banqueiro, e não a aposentadoria – mas porque eles querem é nos botar pra trabalhar até morrer, pra que a gente continue produzindo mesmo que estejamos doentes, fracos, cansados. Querem impedir que a mais-valia retirada do nosso trabalho vire de alguma forma um benefício social, diminuindo a fatia de mais-valia que vai pro bolso da classe de capitalistas. Mais pra frente vou falar disso também. O que me interessa contar nesse pedacinho aqui do texto é que a idade mínima anunciada, essa de 62 e 65 que te levou a automaticamente começar a fazer novas contas, não é uma idade que se pretende fixa ao fim do período de transição.

Vale lembrar: poucas pessoas chegam a essa idade no Brasil. Quando recolhe os dados de média de morte, tábua de morte e expectativa de vida – todos argumentos que o governo veem utilizando para dizer que estamos aposentando muito cedo – o IBGE ignora aspectos fundamentais na média geral, criando um traço de vida no país que nada tem a ver com os abismos de realidade que existem entre os trabalhadores e a classe de proprietários, dos capitalistas, e inclusive das camadas mais altas da pequena burguesia (médicos, advogados, profissionais liberais com tipos de trabalho muito mais amenos do que a realidade da grande maioria da população). A diferenciação é em geral feita entre homens e mulheres, desconsiderando o elemento fundamental da classe, como se houvesse mais que nos igualasse em gênero do que em precariedade da vida.

Mas a proposta do governo é muito mais cruel do que essa idade já inalcançável. Eles querem na verdade retirar a idade mínima da constituição e tornar o aumento desse número uma lei simples, votada com maioria simples no Congresso, a partir da canetada dos burocratas do IBGE. Se eles disserem que nossa expectativa de vida está mais alta, logo se pode colocar em votação o aumento da idade mínima. O truque era esse. Enquanto estávamos atentos em saber qual idade iam nos permitir aposentar – e percebendo aos poucos que eles querem idades cada vez mais altas que sequer temos esperança de alcançar – por trás da cortina se articulava esse truque maquiavélico: a cada novo dado de expectativa, essa batalha de classe para viver alguns anos depois do trabalho voltaria a existir, caso a reforma seja aprovada com essa redação atual.

É criminoso. Com essa manobra de colocar nossa aposentadoria cada vez mais longe, o governo de Bolsonaro, junto com seus especialistas em sofrimento, como Paulo Guedes, querem criar uma classe trabalhadora mais barata pros vampiros capitalistas sugarem ainda mais o nosso sangue. Com trabalhadores doentes e idosos que não custam nada pro Estado, na verdade venderiam a força de trabalho por quase nada, e outros que morreriam antes de poder ter acesso ao benefício, Guedes e Bolsonaro (e Moro, Globo e cia) prometem ao capitalismo internacional uma classe que não dá custos sociais, como era no boom da industrialização setentista, da ditadura. Uma verdadeira “contra” reforma.

Esse dados expectativa de vida é “calculado” a partir de ideias, e não de números. Estranho né? Como se calcula alguma coisa a partir de ideias e não de números? Bom, essa mágica tá na mão do IBGE (e ela tem seus truques também!). As “ideias” que o IBGE calcula são o nível de qualidade do atendimento de saúde, a quantidade de doenças que o sistema já consegue detectar e prevenir, a qualidade de moradia e saneamento básico e os níveis de segurança pública (!). “Diabos!!!”, você deve estar dizendo. Pelo menos foi o que eu disse quando li essa informação.

A gente sabe que quem paga a banda escolhe a música, então não dá pra achar que se os caras querem saquear ainda mais a gente, eles vão deixar o IBGE falar a verdade, afinal de contas, o IBGE já não tem falado mesmo. Vale dizer: ao decidir por essa manobra da expectativa de vida, Bolsonaro pode fazer demagogia e aprovar uma idade aparentemente baixa agora, para depois, por lei simples, deixar na mão do Congresso aumentar. Isso não significa uma conquista unilateral pra eles. Significa que, a cada vez que isso acontecer, uma nova batalha de classe vai se abrir no palco nacional, entre esses negociadores dos capitalistas que são os políticos burgueses e a nossa decisão de não querer pagar, com nossas vidas, pela crise que eles criaram.

O dado de 2017, por exemplo, esse que eu falei ali em cima que dizia que quem nasce naquele ano viveria quase 80 anos, parece um furada daquelas bem fortes. Pior que história de pescador. Vamos a alguns números – pra quem chegou até aqui e ainda tá com paciência. Nesse mesmo ano, os dados de mortalidade infantil (mortes antes de completar um ano de vida) foram de 14,9 mortos por mil nascidos. Parece pouco? E se pensar que o Brasil está em 106º na lista de mortalidade infantil, na frente de países com histórico de guerras civis como o Egito, Namíbia, Guiana e Senegal (entre tantos outros, dá uma olhada aqui). Nosso dado é um dos piores do mundo porque, pasmem, o Brasil é um dos líderes em bebês mortos por desnutrição, prematuridade do parto e asfixia no parto, ambas situações diretamente ligadas a debilidade de acompanhamento pré natal de qualidade, ao que o sistema de saúde tem respondido com mais violência obstétrica e constrangimento para forçar as mulheres a cesárias, que já se sabem, fragilizam tanto a mãe quanto o bebê.

Nesse mesmo ano também a repressão policial se intensificou em tal nível que vivemos números de mortes pela bala da polícia recordes, com chacinas estampando as capas dos jornais cariocas, soteropolitanos e recifenses quase todas as semanas. Nessas regiões, um jovem negro tem 4x mais chance de morrer que um jovem branco, e certamente, ao nascer, seus pais e mães não “esperam” que eles vivam até os 80 anos. Torcem, muitos deles, para que seus filhos tenham a chance de terminar a escola, algo que Maria Eduarda e Jenifer não conseguiram, foram mortas de uniforme, inclusive.

A reforma não vai criar justiça social, e o problema não é só o aumento permanente da idade mínima

Esse efeito da aposentadoria é acompanhado de um verdadeiro saque dos nossos salários, tão duramente conquistados a cada fim de mês. Tem gente que vai acabar pagando até o dobro pro INSS do que paga hoje, sem a menor garantia de que vai poder viver desse recurso depois. O idoso que já está aposentado também vai pagar mais pro INSS. O que recebe auxílio continuado vai começar a receber cerca de R$400 fixos, ou seja, não importa que haja reajuste no salário mínimo, o valor do benefício não aumenta mais, e essa é só mais uma das coisas que querem tirar da constituição. Na verdade, tudo de importante, vai virar lei simples, o que em si já é um ataque brutal, um poder absurdo de decisão nas mãos do Congresso. É um verdadeiro saque de bilhões de reais contra a classe trabalhadora e os mais pobres, para quem cada porcentagem tirada do salário significa muito mais dureza pra fechar as contas do mês.

Com esse roubo dos salários, o Estado mais uma vez vende seu peixe pros capitalistas. Diz em alto e bom som: “eles [nós, no caso] vão morrer antes de se aposentar, e quem conseguir chegar lá, doente e cadavérico, vai continuar pagando pelo próprio benefício social, fazendo com que você, grande amigo capitalista, não precise temer um Estado que sai por aí distribuindo mais valia”. Ela está ainda mais seguramente garantida para o enorme bolo da dívida pública. Atenção, leitor, essa ideia é MUITO IMPORTANTE.

Quando o Estado recolhe impostos, eles todos vão compondo um orçamento geral da união, de onde saem os valores pagos pelo Estado em previdência social, direitos sociais, benefícios a políticos e militares e a famosa dívida pública, o nosso verdadeiro pesadelo, que começa na dificuldade de entender como que uma dívida nunca termina, depois vem o pesadelo de você perceber que ela realmente não tem origem nenhuma e que os juros dela são baseados única e exclusivamente na especulação e lucro dessa coisa que não existe, uma verdadeira bolsa banqueiro ilegal, ilegítima e fraudulenta.

Essa dívida (na verdade os papeis criados em volta dela que são chamados de palavrões como amortização) é paga com o mesmo dinheiro que nós pagamos todos os meses, da nossa folha de pagamento, pro INSS, entre outros impostos, e quanto mais o governo determina que vai tirar do nosso salário pra esse bolo de dinheiro que é o orçamento da união, mais os capitalistas se sentem seguros pra continuar “apostando” na dívida pública do país. Ou seja, aumentar a porcentagem do seu salário que vai pros cofres públicos – como o Bolsonaro quer fazer – em nada diminui a injustiça social, na verdade piora, e muito, a já enorme parcela de nosso suor que vira bolsa-banqueiro através da dívida pública.

Lembro a todos que a dívida pública não vem de hoje. Os maiores valores pagos em juros, inclusive, são dos governos petistas, que garantiram, nas palavras de Lula, que nenhum banqueiro nunca lucrasse tanto quanto no governo dele. Uma verdadeira declaração de amor de classe. Nesses governos também foi que o fator previdenciário retrocedeu alguns passos com a lei 85/95 de Dilma, que afastou muitas pessoas alguns anos da aposentadoria. Antes dela, Lula fez a primeira definição de uma idade mínima, que de lá até hoje, é aplicável só pra funcionários públicos. Aumentar a idade e estender ela pra todos os trabalhadores – funcionários públicos e servidores privados – não cria mais justiça social, apenas retira direitos de todos, quando a batalha pela igualdade entre as camadas da classe trabalhadora deveria se dar em torno da exigência de que os direitos conquistados pelos funcionários públicos fossem para todas as camadas da classe, algo que os sindicatos burocratizados se recusam a fazer, aceitando por exemplo o crime que é a terceirização, que escraviza, humilha e divide a nossa classe.

É urgente lutar contra a reforma da previdência, denunciando todas as suas mentiras, junto a uma enorme campanha pelo não pagamento da dívida pública, um dos principais instrumentos de submissão econômica do país, baseado na superexploração da nossa classe e no trabalho precário, contra o qual também devemos lutar, exigindo que negras e brancas, homens e mulheres, tenham os mesmos direitos e os mesmos salários.

Mais um conto de carochinha:
Bolsonaro vai tratar igual trabalhadores, políticos e militares

A outra injustiça social mantida é o fato de que a reforma ataque brutalmente os trabalhadores mais precários, acaba com a aposentadoria rural e protege amorosamente as forças repressivas. Não há qualquer ponto da reforma que se proponha a tratar de igual pra igual, como Bolsonaro tanto prometeu na sua campanha. O recado é claro: pros pobres, trabalhadoras e trabalhadores, trabalhar até morrer; pros militares e políticos, manutenção de privilégios para que possam seguir representando, com sangue nas mãos, os interesses da burguesia.

O texto fala em atrelamento do regime de previdência especial de políticos ao regime geral, mas não fala na anulação de privilégios bilionários, que levam a que juízes, desembargadores e outros políticos possam chegar a salários de mais R$100 mil por mês. Com essa lógica geral e a proteção a aposentadoria privilegiada de militares, fica claro que será um direito especial para todos eles, garantida para os policiais militares – que vão se aposentar novinhos, aos 55 anos, diferente de você – enquanto você, com sorte e muito suor, pode ser que consiga se aposentar aos 65 anos, com um salário da média de toda sua vida de trabalho (incluindo aquele trampo mal pago do começo da sua carreira, que antes não era calculado).

A cada dois anos, se aprovada, a reforma também prevê novas batalhas de classe, com os capitalistas tentando manter mais ainda intacta sua mais-valia com o aumento da idade mínima. E quem vai ajudar nisso são os tecnocratas do IBGE, com seus dados fantasiosos e cheios de intenção, como a expectativa de vida. Termino esse artigo falando um pouco sobre eles.

Vale pensar. Se esse dado é tão farsesco e mentiroso, porque ele está aí? Me lembro sempre de um poema que conheci no colégio, quando o professor de filosofia explicava o que era utopia (um tema que talvez passe a ser proibido pelo obscurantismo bolsonarista e olaviano). Dá uma olhada, é do Fernando Birri:

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

Não deu pra pegar a referência? Parafraseamos: a aposentadoria (e a expectativa de vida) tá lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Pra que serve a expectativa de vida? Serve pra isso: para que eu não deixe de caminhar. Faz sentido? É mais um dos artifícios pra nos manter dóceis. Essa é a tal tecnocracia capitalista, uma verdadeira mágica infantil e ideológica de números e cálculos fantasiosos, pra nos fazer crer que, no fim das contas, estamos vivendo mais, que é tudo o que a gente quer, não é mesmo? Junto dessa tecnocracia vem os jornalistas burgueses, contando mais mentirinhas gostosas de ouvir, de que estamos entregando nossa aposentadoria pra salvar o Brasil, que tempos melhores virão. Mas não funciona bem assim. O mundo não está melhorando, o capitalismo está em decadência, em mais um dos seus ciclos de crises, guerras e… revoluções, claro, dizia Lênin.

Podemos sim viver mais, podemos mais do que isso, viver melhor, mas não é olhando pra esse horizonte de mentiras que vamos conseguir fazer isso. Te faço um chamado: pare agora de calcular quando vai se aposentar. A reforma não foi aprovada ainda, ela não está em vigor, está na hora de arregaçar as mangas e batalhar pela nossa organização, uma organização independente da classe trabalhadora que coloque o ponto de vista de nossos técnicos, de nossos teóricos, de nossa verdade, mostrando uma realidade onde esse sonho de 82 anos não existe. Que nossos jovens morrem como gado, nossas crianças não tem o que comer, nossas mães e pais se aposentam, adoecem e morrem de doenças que o capitalismo trata apenas das formas que podem gerar lucro. Basta.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Leticia Parks

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