No mar conservador do segmento evangélico, o pastor Henrique Vieira é quase uma ilha. Mas faz questão de dizer que não está sozinho: “Nem todo evangélico é conservador”, diz.
Progressista, faz parte de uma tradição cristã popular no Brasil vinculada à defesa dos pobres e oprimidos.
Professor de História, militante dos Direitos Humanos e Colunista do coletiva Mídia Ninja, o pastor se tornou um influenciador digital pela força das redes sociais. É visto com frequência ao lado de artistas famosos ou em programas na televisão.
Henrique Vieira também é ator. Ele participou do filme Marighella, o aguardado longa-metragem dirigido por Wagner Moura que conta a história do guerrilheiro baiano Carlos Marighella, morto pela ditadura militar. O longa já conquistou prêmios no exterior e vem enfrentando boicote de empresas para ser exibido no Brasil.
Ilustração: Gabriel Novaes
Em passagem recente por Natal (RN) para participar da 2ª edição do Encontro Estadual da Juventude Comprometida com a Luta, onde lançou o livro “O amor como revolução”, o pastor Henrique Vieira conversou com a agência Saiba Mais sobre o amor, o Brasil, política e religião.
Agência Saiba Mais: O que você defende no livro “O amor como revolução?”
Henrique Vieira: No livro eu defendo que o amor é mais que um sentimento, é uma atitude política, ética, afetiva e efetiva que nos humaniza, que nos vincula ao próximo e que enfrenta toda e qualquer forma de opressão e de violência. Então, o amor não é passivo, submisso, quieto. O amor é aquele impulso que nos humaniza, nos conscientiza e nos compromete com a vida plena para todas as pessoas. Nesse sentido o amor é sempre um dispositivo revolucionário.
Há espaço para a religião na política num estado laico como o Brasil?
Religião e política necessariamente se relacionam, porque não há como separar isso na vida de um indivíduo. A gente tem que zelar para que o Estado seja laico e para que as religiões tenham um compromisso com o bem comum, com a diversidade, com a promoção da paz, com o respeito à pluralidade de crença. O ser religioso necessariamente é um ser político porque todo ser humano é necessariamente político. A questão está na qualidade e na característica desta relação entre religião e política. O que a gente vê hoje no Brasil é o uso da religião como projeto de poder e de domínio. Isso é nefasto e antidemocrático. Eu prefiro pensar a experiência religiosa tendo compromisso político, não no sentido de projeto de poder, mas sim na promoção da paz, do bem comum e da Justiça.
Como você interpreta o aceno do presidente Jair Bolsonaro para o segmento evangélico?
O presidente age fisiologicamente. Ele se aproxima do segmento evangélico porque vê ali capital político e base eleitoral. Existe uma maioria conservadora no campo evangélico que tende a apoiar o presidente. O campo evangélico é plural e não pode ser generalizado. A relação do presidente com a Bíblia, com o evangelho, nitidamente é a relação de quem usa para benefício próprio, quem distorce para se autopromover, falta ali consistência, sinceridade, relação verdadeira com o evangelho. Me parece um uso distorcido, eleitoreiro, visando o próprio poder.
Jair Bolsonaro se diz cristão, mas faz a defesa do uso de armas, do assassinato de opositores e até da tortura. Mesmo assim, ele se elegeu presidente da República com o voto de milhares de cristãos, especialmente do segmento evangélico. Como explicar para essas pessoas que Bolsonaro não é o que ele diz ser?
Inegavelmente a base evangélica está nas periferias, nas favelas, junto com o povo trabalhador, e isso precisa ser compreendido. E de fato a esquerda precisa ter a capacidade de dialogar com o povo, de estar junto ao povo nas lutas cotidianas. E qualquer projeto popular no Brasil, na América Latina, precisa considerar a importância da dimensão religiosa no dia-a-dia do povo. Tratar isso com respeito, com seriedade, com capacidade de escuta é fundamental para a esquerda ter um projeto efetivamente popular para o Brasil.
O prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella pediu o recolhimento de livros com temáticas LGBTQ na bienal do livro do Rio, num flagrante ato de censura ratificado pelo Tribunal de Justiça do Rio ? Qual sua opinião sobre esse episódio e, com base na reação da população, que lição dá pra extrair desse caso?
Sem dúvida foi um ato de censura, de preconceito do prefeito do Rio de Janeiro e da instância judicial que acolheu o pedido dele. Mas ali eu vejo um ato de censura, de preconceito, de LGBT fobia, de desrespeito à democracia e à liberdade. A reação das pessoas que frequentam a Bienal foi muito positiva. Temos que fazer o debate e enfrentar a lógica da censura e do preconceito mobilizando cada vez mais o povo para uma cultura de respeito, uma cultura de liberdade, uma cultura de democracia. E também demonstrar toda a hipocrisia do prefeito e dessa moral que não está efetivamente preocupada com a vida, com a infância, com a adolescência… é uma moral morta, mórbida, indiferente, insensível de pessoas cheias de poder, mas sem efetiva sensibilidade de coração. É preciso conversar com o povo nesse sentido e explicar que o prefeito não teve preocupação alguma com a infância ou com a adolescência, que ali foi mero preconceito, um ato de arbitrariedade, de censura e de desrespeito.
Você é bastante popular na internet e aparece quase sempre ao lado de pessoas também conhecidas do grande público. Muito se tem falado da internet, e principalmente das redes sociais, como algo ruim, espaço de agressões e linchamentos virtuais. Qual a sua visão a respeito dessa exposição e do poder das redes nos dias de hoje?
As redes sociais podem ser usadas para coisas boas e coisas ruins. Eu procuro usar a influência que tenho para compartilhar um conteúdo relevante, vinculado ao evangelho de Jesus, o compromisso com os pobres e os oprimidos, para enfrentar a narrativa fundamentalista. Então eu uso as redes sociais com esse intuito e esse objetivo. Mas sempre na relação rede e rua. As redes são importantes, mas nada substitui o debate presencial, o encontro com o povo. Eu caminho por escolas públicas, movimentos populares, igrejas, sempre buscando estar em espaços coletivos de resistência, de militância, de luta por uma sociedade justa, solidária e fraterna. Então, redes usadas com responsabilidade e os pés na rua onde o povo luta por direitos, por cidadania, por vida plena.
Você já foi vítimas de fake news ? Como rebatê-las?
Já fui vítima e sou vítima de haters, ataque de ódio, difamações assim, comentários… procuro sempre responder de maneira elegante, educada, e mantendo o foco de um discurso afetivo voltado para o coração das pessoas, para promover a paz.
Você participou do filme Marighella. Como foi a experiência no cinema ? Já fez outros papeis ? Pretende seguir carreira?
Sim, eu fiz Marighella, meu papel foi um frei dominicano. Foi uma experiência incrível, um elenco maravilhoso. O Wagner Moura é um diretor brilhante e muito generoso. Marighella é um filme que trata da resistência do passado, mas também da resistência do tempo presente. Um filme muito relevante, impressionante, muito bem feito e que certamente vai gerar um bom debate em nosso país.
E pretende seguir carreira no campo da cultura?
Sou ator e pretendo seguir carreira tanto no teatro como no cinema. Sou muito apaixonado pela arte e por ser ator.
Como é ser um pastor progressista num segmento tão conservador como o evangélico?
Ser um pastor progressista é um desafio, mas eu sempre digo que não estou só. Faço parte de uma tradição cristã, popular, progressista vinculada à defesa dos oprimidos, da Justiça social, da democracia, então eu não me sinto sozinho e minha tarefa é sempre dar visibilidade ao campo do qual faço parte. É desafiador, mas sozinho eu não estou.
Abaixo, um dos vídeos do pastor Henrique Vieira publicados pelo coletivo Mídia Ninja: Nem todo evangélico é conservador.
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