A volta às aulas presenciais é uma questão seriíssima que está na ordem do dia. Exige uma longa reflexão, mas já começo dizendo: há razões objetivas para desaconselhá-la, pelo menos nas escolas públicas, antes de serem atendidos dois conjuntos de protocolos dos quais estamos muito distantes. Depois desenvolvo os argumentos a favor da volta, bem como a diferença entre escolas públicas e privadas neste caso, mas começo pelas razões objetivas contra o retorno, agora, ao presencial.
O primeiro conjunto de protocolos pode se resumir num critério que a França e outros países adotaram: antes de voltar, precisa haver 15 dias ininterruptos de queda no número de contágios e de mortes devido ao coronavírus. Esse critério sintetiza os resultados de várias medidas: em vez de olhar isoladamente a testagem, a checagem de quem teve contato com os contagiados (ações que mal estão fazendo no Brasil), bem como o tratamento, a ocupação dos leitos, conferimos os efeitos dessas políticas todas, que se mede pela redução da ameaça pandêmica.
Ora, estamos muito longe disso! Em termos de mortes por dia, é uma gangorra. Mesmo se considerarmos a média móvel, ela oscila. Para ser muito claro: não estamos ganhando a guerra contra a Covid, não no Brasil, e sabemos por quê — pela falta de uma atuação séria do governo federal, que na verdade mais sabota do que ajuda.
O gráfico elaborado pela Gazeta do Povo mostra que a média móvel oscila muito. Embora tenhamos finalmente chegado a uma média móvel abaixo de mil mortes por dia, nunca tivemos uma redução que continuasse por mais que dois ou três dias. Ela volta a subir, o que, pelo critério mencionado, exige recomeçar a contagem do zero.
Também devemos lembrar que nossa proporção de contágios e de mortes é bem superior à média mundial: em termos de mortes por habitantes, estamos em 7º lugar entre 215 países ou dependências. Aliás, considerando apenas os países com mais de 50 milhões de habitantes, o Brasil é aquele em que mais morreu gente em relação à população.
Foto: Marcio James / SEMCOM
Criança em escola de Manaus
O segundo conjunto de cuidados diz respeito à higienização e preparação das escolas e salas de aula. É preciso uma boa ventilação, ou seja, janelas abertas; uma limpeza constante, várias vezes por dia, dos espaços comuns, isto é, salas, corredores, banheiros, pátios. Aliás, os banheiros devem ser imaculadamente limpos e, além disso, ampliados, para que haja distanciamento físico no seu uso. Isso é o mínimo.
Ora, sabemos como são os banheiros dos lugares públicos: muitas vezes não têm sequer papel higiênico e sabonete, quanto mais álcool 70. Moro num bairro de classe média alta em São Paulo, e não vi nenhuma mudança nas escolas públicas por que passo. Sem esses cuidados, é certeza que haverá contaminação.
Passo aos argumentos em favor da volta do presencial nas escolas públicas da educação básica, isto é, da creche ao ensino médio. Por que priorizo a discussão da rede pública? Porque o setor privado conseguiu manter um ensino remoto emergencial, de modo que os prejuízos na educação foram menores (se não dessem aulas pela Internet, simplesmente os pais não pagariam mais as mensalidades).
Mas na rede pública os resultados foram bem inferiores. O ensino remoto em muitos casos nem existiu, ou não foi seguido pelos alunos. Daí que uma das principais alegações em favor da volta à aula presencial seja garantir que o aluno da rede pública não fique ainda mais defasado, do que já está, em comparação com os da rede privada. (Mesmo assim, recomendo a leitura do artigo de Helena Singer, que foi minha assessora no MEC incumbida de promover a inovação e criatividade na educação básica, defendendo a tese de que com a pandemia se está aprendendo muito sobre a vida social).
De todo modo, esta observação inicial serve para descartar um mito bem propalado: de que os defensores da volta rápida ao presencial querem que a rede privada ganhe dinheiro. Ora, ela está sendo paga. Não é esta a questão. O problema é o setor público da educação estar semi-paralisado, a um custo alto para as crianças. Portanto, é legítima a vontade de que se volte logo às aulas presenciais.
O segundo ponto em favor do retorno é psicológico, ou se quiserem, de saúde mental. Muitas crianças estão presas em casa há meio ano. Se não tiverem irmãos de idade próxima, sua vida deve estar à beira do insuportável. Se seus pais trabalharem, complica-se a questão de com quem ficam.
Em alguns casos, famílias se juntam para contratar uma cuidadora, que se ocupa de várias crianças, mas sem ter formação para efetuar um trabalho pedagógico com elas. E então? O distanciamento físico entre as crianças é perturbado, ou seja, tem-se o ônus, mas não se tem o bônus, a educação.
Expostos os argumentos em favor da volta, e reconhecida a sua legitimidade, volto aos cuidados de saúde. As razões para voltar dizem respeito essencialmente (ainda que não só) à educação, as para não voltar se referem à saúde. Melhor dizendo, são questões de vida ou morte. Literalmente.
Na França, exigiu-se que houvesse 15 dias seguidos de baixa nesses números, antes de se permitir, em maio, a volta dos alunos às escolas infantis (possivelmente, as mais prejudicadas pela suspensão das aulas). A percepção de que a doença estivesse recuando foi decisiva para os países europeus promoverem a reabertura das atividades, inclusive escolares.
Outro ponto, que o cientista Roberto Lent, além disso pesquisador do aprendizado, portanto ocupado tanto com a saúde quanto com a educação, acentuou em conversa comigo: testagem. Nosso número de testes é pífio. Se já a notificação não é segura — muita gente pôs em dúvida os dados do governo de Minas Gerais, por exemplo — isso piora quando não se testa a população. A Universidade de Illinois em Urbana-Champaign testa duas vezes por semana toda a sua comunidade. Uma volta às aulas presenciais deveria incluir a testagem sistemática nas escolas.
Estamos numa situação em que um lado se preocupa com a perda na educação, a infelicidade das crianças, e outro com o risco de vida para crianças e adultos. É um dilema típico de Sofia, para lembrar o romance — e filme — em que a mãe é obrigada pelos nazistas a escolher qual filho morre e qual sobrevive. (O que as pessoas que usam a expressão esquecem é que, na história, os dois filhos acabam assassinados. A dor de escolher foi inútil). Uma escolha entre dois males. Perdemos em um ano muito do que laboriosamente conquistamos na melhora do ensino, ou então perdemos muitas vidas. Na Escolha de Sofia, querendo escolher entre os dois males, acabamos tendo os dois.
Creio que aqui há dois pontos a colocar. O primeiro é que a briga entre quem defende o retorno já ao presencial (jornais O Globo e Estadão, Todos pela Educação, parte dos pais) e quem é contra (os sindicatos de professores e funcionários, muitos pais) deve ficar em segundo plano. Na verdade, uns e outros querem o melhor para as crianças e adolescentes das escolas públicas. A grande verdade é que a culpa é do governo federal. Qualquer briga entre nós desvia o foco do grande responsável pelo desastre.
Por que o governo Bolsonaro é o responsável? Porque não cuidou devidamente da saúde e da educação diante da pandemia. Da saúde, porque minimizou o alcance do coronavírus, sabotou o uso da máscara, não priorizou ventiladores nem testagens e até estimulou o combate a quem levou a sério a doença. Da educação, porque não liderou as redes, sobretudo municipais, no enfrentamento da Covid-19, nem definiu protocolos como os que comecei a mencionar e aos quais agora dou continuidade.
Vejamos o ensino remoto emergencial (que não se confunde com ensino a distância, até porque este deve usar, e bem, o visual), que no fundo é praticamente a aula transmitida por uma câmera ligada à Internet. Muitos alunos do setor público não têm banda larga e/ou pacote de dados suficiente para acompanhar as aulas. O governo deveria ter usado o FUST , o Fundo de Universalização dos Serviços de Telefonia, para instalar banda larga nos bairros pobres, ter distribuído pacotes de dados e mesmo smartphones ainda que baratos a quem não os tem, ter formado os professores da rede para dar aulas remotas ou, em último caso, disponibilizado pela TV Escola material didático de boa qualidade para os alunos continuarem seu aprendizado.
E precisa definir critérios para priorizar os que voltam, quando isso for possível. Na França, deu-se preferência aos mais vulneráveis, mais necessitados de contato humano e de um espaço público que às vezes era melhor que as suas habitações. Precisa haver separação entre as cadeiras com acrílico ou outro material. Se nos supermercados foram instaladas telas para separar os caixas dos clientes, algo parecido tem de haver nas escolas.
Do ponto de vista humano, é preciso, quando alunos, funcionários e professores voltarem, ouvi-los. É preciso que o primeiro, os primeiros dias, de presença sejam consagrados, não a retomar a matéria onde se parou, mas a deixar todos soltarem os gritos guardados na garganta. E é preciso testar com frequência, talvez não todos, mas muitos. E além disso, sempre que se detectar um caso de covid, precisa se retraçar as pessoas com quem o contaminado teve contato nos últimos dias, medida esta que foi crucial, na China, para derrubar o contágio.
Temos isso? Não só não temos, como nada ou muito pouco se fez — ou se faz — nesta direção.
Sem esses cuidados, corremos o risco de aumentar ainda mais nossa taxa de mortalidade, que já é desproporcional em comparação com nossa população.
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Quero deixar claro que não sou um xiita. Defendi e defendo o ensino remoto emergencial e comentei que os professores e escolas que não aderiram a ele estavam errados. Penso também que devemos preparar a volta. Mas é justamente isso o que faz falta! Neste momento, o retorno ao presencial ainda contém riscos de vida significativos. É absolutamente necessário cobrar da União ações que ela não tem tomado, bem como dos responsáveis pelas demais redes, públicas ou privadas. Mesmo a volta não encerrará o ensino presencial, porque deverá ocorrer inicialmente apenas com uma parte de cada classe. Portanto, ainda é hora de assegurar o acesso de todos ao ensino remoto emergencial, de testar, de somar medidas em prol da saúde e da educação. Enquanto isso não for feito, voltar ao presencial tem perigos demais para acontecer sem os cuidados indispensáveis.
Renato Janine Ribeiro, filósofo, foi ministro da Educação
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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