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Favela da Maré: Polêmica sobre volta às aulas ocultou debate sobre falhas do ensino remoto

Os vários dispositivos que possibilitam aulas remotas, em segurança sanitária não estão ao alcance da maioria dos moradores de favelas
Valquíria Daher
Projeto Colabora
Rio de Janeiro (RJ)

Tradução:

A pandemia inviabilizou o ensino presencial, obrigando as escolas a buscar um novo modelo – e a desigualdade se mostrou em todo seu vigor, ampliando o abismo entre ricos e pobres no Brasil. Os vários dispositivos que possibilitam aulas remotas, em segurança sanitária – celular, notebook, tablet, computadores – não estão ao alcance da maioria dos moradores de favelas, carência que é só o início do problema.

Basta ver o que acontece na Maré, maior conjunto de favelas do Rio. Maior do que 93% dos municípios brasileiros, apenas 42,4% dos 140 mil moradores têm computador, e 36,7% acessam a internetsegundo o Censo Maré, de 2013. Em outros bairros da região metropolitana da capital fluminense, 62,2% dos moradores possuem computador, e a internet chega à casa de 56,1% das pessoas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, feita em 2013. Difícil garantir ensino remoto universal em tal cenário.

Os vários dispositivos que possibilitam aulas remotas, em segurança sanitária não estão ao alcance da maioria dos moradores de favelas

Divulgação/MCTIC via Agência Brasil
A pandemia inviabilizou ensino presencial e a desigualdade se mostrou em todo seu vigor, ampliando o abismo entre ricos e pobres no Brasil.

Moradora da Vila do João, uma das 16 comunidades da Maré, Ingrid Santos, mãe de duas crianças – Manuella, 8 anos, e João Marcos, 5 – sofre com os filhos e a dificuldade para acompanhar as aulas. “Tem ocasião que a internet fica dois, três dias sem funcionar; atrasa os exercícios, porque eles mandam pelo Facebook da escola diariamente”, conta. A falta de dispositivos também tem sido um problema. Com um único celular na casa, as crianças precisam esperar a mãe voltar do trabalho. Além disso, Ingrid não se sente em condições de ajudar nas aulas dos filhos, por ter abandonado a escola há muito tempo.

Outro problema é o desconhecimento de pais e alunos a respeito das plataformas remotas por onde as aulas acontecem. Apesar de a Secretaria Municipal de Educação (SME) ter lançado um aplicativo durante a pandemia, poucos têm intimidade com a tecnologia. A plataforma contém conteúdos direcionados para cada ano de escolaridade – da Educação Infantil à Educação de Jovens e Adultos -, e os estudantes não têm gastos com o consumo de dados para conexão. Desde o lançamento do aplicativo, foram registrados, pela Prefeitura, 6,1 milhões de acessos, número aparentemente alto, mas, se relacionado com os 641.141 estudantes da rede municipal, pode ser pouco. Se pensarmos que os estudantes precisam estar conectados, pelo menos, quatro vezes na semana, nestes 6 meses de pandemia, o volume deveria ser, ao menos, dez vezes maior. Nenhuma formação foi oferecida a pais a alunos para o uso da tecnologia.

Deuzilene Reis, conhecida por Deusa, não sabia das plataformas oferecidas pela Prefeitura. Ao ser informada pelos repórteres, tentou entrar, mas não conseguiu.  “Tenho muita dificuldade, meu esposo, que tem mais facilidade, perdeu um tempão e não conseguiu ativar o aplicativo”, relata a moradora do Conjunto Esperança. Difícil para ela e para o filho, Allan Reis Ribeiro, aluno do 6º ano da Escola Municipal Ruy Barbosa, em Bonsucesso, vizinho à Maré. Deusa acrescenta outra dificuldade. “Tem exercício que ele nunca viu, então, não sabe fazer”. Para não deixar o filho ocioso, ela formula algumas atividades e indica aulas no YouTube.  

Para quem não consegue acesso às plataformas, a alternativa é utilizar as apostilas impressas nas escolas, mas é necessário agendamento prévio na direção das instituições, ou aguardar a distribuição do material ser feita pela Associação de Moradores. Ayla Macedo, aluna da Escola Municipal Ruy Barbosa, optou pelas apostilas, que imprimiu em casa por não saber onde poderia retirar o material. A mãe dela, Poliana Sousa, mesmo tendo impresso os conteúdos pedagógicos para filha, preferia que as aulas fossem remotas, o que facilitaria a rotina escolar. A escolha de Poliana só é possível porque ela tem boa conexão de internet e vários dispositivos em casa, uma exceção na comunidade. 

Localizado também na Maré, na Vila do Pinheiro, o CIEP Ministro Gustavo Capanema oferece aulas pelo Facebook para o Ensino Fundamental e a Educação de Jovens e Adultos. “Estamos fazendo postagens para a comunidade escolar e apoiando nossos alunos e responsáveis sobre qualquer dúvida”, diz Gisleide Gonçalves, diretora da escola desde 2016. Mesmo estando em uma plataforma popular na Maré, a adesão é baixa: 22% dos alunos do Ensino Fundamental e apenas 3% dos alunos do PEJA acessaram o serviço. A diretora atribui o problema à falta de acesso à internet. 

A presença dos pais se torna imprescindível no ensino à distância. Contudo é uma regalia que poucos conseguem oferecer, porque a maioria trabalha fora ou cuida dos muitos afazeres domésticos. 

Duros desafios do Enem na Maré

Daniele, dando aula via computador: “O ensino remoto é algo novo e, por isso, tem muitas falhas, tanto por parte dos governos quanto do sistema educacional”. Foto de Matheus Luiz Chagas

Como acontece no Ensino Fundamental e na Alfabetização, a pandemia afetou também os estudos de muitos mareenses que vão prestar o Enem 2020. Ainda não há estudos que possam mostrar os impactos do ensino remoto nas favelas, porém, a PNAD Contínua, de 2019, feita pelo IBGE, informa que mais de 20% dos estudantes deixam as escolas em alguma etapa da Educação Básica no Brasil, e a tendência é o número aumentar no contexto atual. Os dados apontam também que 71,1% das evasões são de jovens negros e pardos. Os motivos são diversos:  jovens que precisam trabalhar, gravidez na adolescência e o próprio desalento. 

A professora de História Daniele Figueiredo faz parte do Curso comunitário UniFavela, que, desde 2018, prepara jovens e adultos da Maré para o vestibular. Para a professora, as falhas do ensino à distância ocorrem porque não se leva em conta a realidade dos estudantes de baixa renda: “O ensino remoto é algo novo e, por isso, tem muitas falhas, tanto por parte dos governos quanto do sistema educacional. O governo não dá nenhuma assistência. Prefere fugir da realidade como mostra a própria campanha do Enem 2020”, critica a professora.

O curso, assim como outros pré-vestibulares e escolas do Brasil, vem registrando redução na frequência. O UniFavela tinha aulas presenciais de segunda a sexta-feira e aulões especiais aos sábados. “Muitos não estão conseguindo acessar as plataformas, são mães que tentam conciliar os estudos, têm os alunos que chegam cansados do trabalho e ainda precisam ligar o computador e o smartphone para assistir à aula”, lamenta Daniele.

Desde a sua fundação, o curso tem como objetivo disseminar o ensino popular pela Maré. Uma das iniciativas foi o Unifacast, podcast produzido pelos próprios integrantes do curso para aprofundar debates em sala de aula e trazer reflexões sobre a educação popular. Recentemente, se juntaram ao projeto 4g para Estudar, que reuniu outros 30 pré-vestibulares comunitários no país. A cada R$ 20 doados na campanha, dois chips de internet eram garantidos para os alunos. Ao todo, R$ 600 mil foram arrecadados, e mais de 4 mil estudantes beneficiados em todo o Brasil. O curso conseguiu a doação de dois tablets para alunos que não tinham acesso às aulas. Além da campanha, foram distribuídas apostilas e folhas de redação. 

Ainda indecisa entre História e Design, Luizy Reis fará o Enem para tentar materializar o sonho de entrar numa universidade pública. Com a pandemia, está passando por dificuldades para planejar os estudos. O pré-vestibular comunitário onde estuda passou a transmitir aulas remotas. “É muito diferente quando você tem uma rotina de estudo e do nada precisa se virar para compreender a matéria sozinha em casa, onde há pessoas que podem atrapalhar, e isso me faz perder o foco”, lamenta. Mas ter acesso à internet em casa ajuda. “Sigo canais que trazem resumos de matérias que vão cair no Enem. Procuro explicações para os conteúdos que preciso estudar, mas reconheço que nem todos têm esse privilégio de ter conexão em casa, graças a ela consegui manter essa rotina” comenta.

Enquanto Luizy, que estuda num curso comunitário, reconhece o privilégio do acesso à internet, Letícia Fernandes, moradora da Vila dos Pinheiros e estudante do Colégio Estadual Olga Benário, luta para conseguir o material didático. “As apostilas que seriam para ajudar na nossa preparação chegam atrasadas. Apenas recebi os materiais referentes ao primeiro bimestre, mas já estamos no terceiro. Eu me sinto despreparada em relação aos demais, por não ter acesso aos conteúdos”, constata.

Agora, a discussão gira em torno da volta às salas de aula, mas se fala cada vez menos em medidas para amenizar o impacto das falhas do ensino remoto. Lições de desigualdade impostas aos pobres do Brasil.

* Valquiria Valher é Editora do Projeto #Colabora e responsável pela Agência #Colabora Marcas. 


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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