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Moïse Kabagambe: o que Lélia Gonzales nos ensina sobre o mito da democracia racial

Militante e intelectual negra, Lélia lutou contra a ideia de que não existe racismo no Brasil graças ao processo de miscigenação
Rodolfo Lima
Diálogos do Sul Global

Tradução:

Moïse Mugenyi Kabagambe, um trabalhador negro congolês refugiado, foi brutalmente assassinado num quiosque no Rio de Janeiro, no dia 24 de janeiro. Ele foi espancado até a morte por cinco pessoas, por simplesmente ter cobrado seu salário atrasado por dois dias de trabalho ao dono do estabelecimento.

A comunidade congolesa tem denunciado, com muita razão, que o problema é mais profundo, pois manifesta o racismo estrutural e a xenofobia presente em nosso país.

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No Brasil, o racismo estrutural se mascara por meio de uma ideologia muito poderosa, que é o mito da democracia racial. Historicamente, o movimento negro tem lutado contra esse mito e um nome muito importante nessa luta foi a da militante e intelectual negra Lélia Gonzales, que faria 87 anos nesta semana.

Para ela, “o efeito maior desse mito é que o racismo inexiste em nosso país, graças ao processo de miscigenação”. Quer dizer, predomina-se uma concepção romantizada da história, que devido à miscigenação, vivemos em um país harmonioso, em que todos são iguais perante a lei.

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Como mostra Lélia, essa igualdade formalmente assumida pelo Estado, desde pelo menos a abolição, foi acompanhada por um conjunto de práticas de discriminação racial – inexistência de uma política de indenização, de acesso à terra e à educação, acompanhada pela política de branqueamento da população, genocídio, encarceramento, exclusão dos setores mais dinâmicos da economia, dentre outras – que fazem existir até hoje uma desigualdade real.

Militante e intelectual negra, Lélia lutou contra a ideia de que não existe racismo no Brasil graças ao processo de miscigenação

Cezar Loureiro/Wikipedia
Poucos episódios de violência como o caso de Moïse vão à tona, e se não fosse o movimento negro, dificilmente teriam alguma repercussão

De tal modo que, contraditoriamente, os casos cotidianos de racismo, de violência policial, de assassinatos, como o caso de Moïse, são vistos, de maneira geral, como normais, quer dizer, como parte normal da nossa sociedade estruturada racialmente e dominada pelo capitalismo dependente, são ocultados pela ideologia do mito e tratados como simples casos isolados.

São poucos os episódios que vão à tona e que se não fosse o movimento negro, dificilmente iriam ter alguma repercussão. É por isso que a luta contra o racismo no Brasil causa tanto incômodo, é porque ela abala o que é considerado normal.

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Outra importante lição de Lélia é que o capitalismo dependente brasileiro mantém uma massa de trabalhadores marginais e, devido à divisão sexual e racial do trabalho, são os negros e negras que compõe os segmentos mais marginalizado da sociedade, ocupando setores informais, precários e pauperizados. Isto também é verdade para os trabalhadores negros refugiados, vindos de África e do Haiti, pois são marginalizados e lançados a situações de discriminação racial e exploração econômica.

Isso é perpetuado no governo neofacista de Bolsonaro, com a negação da existência do racismo no Brasil, da negação do protagonismo negro na luta pela abolição e, ao mesmo tempo, com seus ataques aos direitos quilombolas, à lei de cotas e uma política social e econômica que atinge sobretudo o nosso povo. De fato, a política econômica neoliberal implementada desde o governo Temer, tais como a reforma trabalhista, a reforma previdenciária, a PEC do teto de gastos, dentre outros trazem efeitos nefastos na população negra.

Assista na TV Diálogos do Sul

Aqui, a construção da identidade nacional está intimamente ligada ao mito da democracia racial, é como um pilar fundamental de sua sustentação. Essa ideia de nação miscigenada, receptiva a todas as cores, nacionalidades e crenças é propagandeada inclusive para o exterior. Em pouco tempo, esses trabalhadores negros refugiados sentem a discriminação racial, estruturalmente construída no Brasil, em que não podem nem exigir que seu salário seja pago como um trabalhador formal, pois além de serem negros, são africanos.

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Devemos nos somar às reivindicações por justiça, pois é importante que os assassinos sejam punidos, compondo as lutas protagonizadas pelo movimento negro e fortalecendo os laços com a comunidade africana e de refugiados no geral. Além disso, não podemos deixar de pautar a unidade no combate ao racismo estrutural, seu aspecto econômico, político e ideológico – presente inclusive no governo neofascista – assim como sua articulação com o capitalismo dependente, no sentido da construção de um Projeto Popular antirracista para o Brasil.

Rodolfo de Souza Lima é doutorando em Geografia na Unesp de Presidente Prudente, educador, militante do Levante Popular da Juventude e da Consulta Popular.


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