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Com Lula, Brasil e Cuba se reaproximam após relação "atípica e anormal" sob Bolsonaro

"Política externa independente" do Itamaraty está de volta, explica Roberto Colin, atual Encarregado de Negócios da Embaixada do Brasil em Cuba
Gabriel Vera Lopes
Brasil de Fato
Havana

Tradução:

O governo de Jair Bolsonaro (PL) representou uma ruptura com a tradição diplomática brasileira, afirma Roberto Colin, atual Encarregado de Negócios da Embaixada do Brasil em Cuba. Em entrevista ao Brasil de Fato, o diplomata destaca que com Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o histórico de “política externa independente” do Itamaraty está de volta.

Na embaixada de Havana desde dezembro de 2020, Colin desmente notícias falsas sobre o Porto de Mariel, destaca que existe uma “confiança construída” na ilha com as empresas brasileiras e afirma que “os empresários brasileiros nunca perderam o interesse em Cuba.”


Confira a íntegra da entrevista:

Brasil de Fato: Estes últimos anos têm sido anos de profundas mudanças nas relações do Brasil com o mundo. Como você caracterizaria a relação do Brasil com Cuba nos últimos anos?
Roberto Colin: As relações do Brasil com Cuba têm sido muito positivas desde a redemocratização do nosso país, em 1985. No entanto, os últimos quatro anos têm sido realmente uma exceção. Mas o distanciamento começou antes disso. Não começou com a posse do presidente Bolsonaro, começou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Naquela época, Cuba considerou – como muitos no Brasil – que o impeachment era um golpe de estado disfarçado. Esse foi o início do afastamento, que foi acentuado no mandato do Presidente Bolsonaro.

Quando cheguei aqui no final de 2020, este momento atípico na relação foi agravado pela pandemia. Mas assim que cheguei, comecei a ter contato regular com o Ministério das Relações Exteriores de Cuba, onde fui sempre muito bem recebido. O lado cubano nunca levantou uma agenda negativa. Ou seja: o diálogo continuou mesmo durante esse tempo de distanciamento político. Mesmo em organizações internacionais chegamos ao ponto de pedir o voto de Cuba em algumas candidaturas brasileiras. Acima de tudo, a parte econômica e comercial continuou com um certo grau de normalidade. Isso não foi tão afetado pelo distanciamento político.

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Ricardo Stuckert
Lula e o presidente cubano Miguel Díaz-Canel

Em que áreas há maior interesse comercial entre os dois países?
Cuba está interessada em cooperar com o Brasil na área de biotecnologia e farmacêutica. Cuba desenvolve muitos medicamentos importantes, mas às vezes tem problemas em obter insumos para sua produção, devido ao embargo dos EUA. E o Brasil poderia contribuir muito neste sentido. Ao mesmo tempo, o Brasil sempre esteve interessado em exportar seus produtos agrícolas.

Mas o interesse se expressa em diferentes áreas. No ano passado, o Brasil teve uma importante participação na Feira Internacional de Havana, com a participação de mais de 80 empresários. No dia da abertura, o presidente Miguel Díaz-Canel chegou a visitar nosso estande. Somente naqueles dias, foram assinados contratos no valor de quase US$ 30 milhões. Os empresários brasileiros nunca perderam o interesse em Cuba.

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Nessa mesma feira, chegou uma delegação muito importante – a mais importante que recebemos do Brasil no ano passado – do Consórcio do Nordeste. Essa delegação visitou a BioCubaFarma – organização estatal de biotecnologia de Cuba – e o Ministério da Saúde. Houve também reuniões na Zona Especial de Desenvolvimento de Mariel, onde está localizado o investimento mais importante do Brasil – BrasCuba, produtora de cigarros – e o Porto de Mariel, que também foi construído por empresas brasileiras.

Há muitas notícias falsas circulando no Brasil sobre o Porto de Mariel. O senhor poderia nos dizer do que se trata este empreendimento?
Eu sabia que esta questão entraria na campanha presidencial. Mas o que foi interessante é que até o próprio presidente Bolsonaro teve que reconhecer que não havia nada de ilegal neste investimento brasileiro. Ele passou a questionar outras coisas com base em seus preconceitos ideológicos.

No entanto, o fato concreto é que Mariel beneficiou muitas empresas brasileiras. A começar pela Odebrecht, que construiu o porto. Mas, além do porto, o importante é que muitas outras áreas estão envolvidas. Isto continua porque há sempre a necessidade de renovar equipamentos e as empresas brasileiras continuam se beneficiando destes investimentos. Quanto à dívida, essa é outra questão. O importante é que o Porto de Mariel não foi um presente para Cuba, como muitos afirmam. Estes investimentos foram feitos para beneficiar as empresas brasileiras.

Nos últimos anos, foram implementadas mudanças na ilha para abrir a economia ao setor privado. Quais são as implicações desta situação para o capital brasileiro?
Isso tem sua própria dinâmica. Mas já estamos planejando para este ano uma participação muito importante na Feira Internacional de Havana. Esperamos ter mais pessoas, queremos até ter uma área maior do que a que tivemos no ano passado. E assim como nós fizemos no ano passado, antes da Feira, queremos organizar algumas reuniões e seminários para atualizar e informar os empresários brasileiros sobre os assuntos atuais cubanos.

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No ano passado, um tópico muito importante entre aqueles que organizaram o evento foi o surgimento de MIPYMEs (micro, pequenas ou médias empresas). Apesar de que elas já existiam, não havia uma arquitetura legal como a que surgiu em 2021, o que proporciona segurança jurídica a estas empresas.

Como a normalização das relações políticas pode influenciar esta relação comercial?
Tenho a tendência de pensar que uma normalização política entre os dois países só pode beneficiar a relação econômica. Mas isso depende do mercado e da questão financeira. Enquanto Cuba fizer parte da lista de “Países Patrocinadores do Terrorismo” dos Estados Unidos, isso torna a questão financeira dos pagamentos muito difícil. Estas dificuldades existem. A partir do momento que desapareça, posso realmente garantir que surgirão mais oportunidades.

No entanto, apesar destes obstáculos, as empresas brasileiras ainda estão aqui. E deve ser dito que mesmo durante estes seis anos de distanciamento entre Brasil e Cuba, mais empresas brasileiras se estabeleceram aqui. Temos uma vantagem: os cubanos nos conhecem, conhecem os produtos brasileiros, a logística é relativamente boa, os produtos brasileiros e as empresas brasileiras têm uma boa reputação. Há uma confiança construída.

Falando sobre a confiança, você tem uma longa história como servidor do Estado brasileiro. O senhor teve que lidar com situações complexas e difíceis. Tendo estado em Cuba nestes anos – com a situação de crise global, as relações políticas muito afetadas pela hostilidade do bolsonarismo e a pandemia no meio – deve ter sido um desafio muito grande…
O maior desafio da minha carreira. Repito: nunca fomos inimigos de Cuba e, no entanto, estes anos foram uma situação atípica e anormal. Mas não havia nenhuma razão real para esta relação atípica e anormal. Claro, houve casos piores, como a ruptura das relações diplomáticas com a Venezuela. Esse foi um caso extremo, porque não havia razão para isso. Só porque discordamos do que está acontecendo internamente na Venezuela, isso nunca foi motivo suficiente para romper as relações com um país. Tenho uma carreira diplomática de 42 anos e durante todo esse tempo não me lembro do Brasil ter rompido relações por qualquer motivo. Muito menos por tal motivo: uma questão de política interna. A Venezuela não atacou o Brasil, não fez nada que pudesse justificar uma ruptura diplomática.

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Com Cuba, não foi tão longe. Mas uma consequência – mesmo simbólica – do distanciamento foi o fato de que, mesmo durante aquele tempo, não tínhamos embaixadores. Eu tenho o status de embaixador, mas em Cuba assumi o cargo de encarregado de negócios, assim como meu predecessor. O que mostra que algo não está certo nas relações. Lembro que o Brasil não tinha um embaixador durante o Apartheid na África do Sul, tinha um encarregado de negócios, o que é uma forma diplomática de mostrar que você quer ter relações diplomáticas em um nível inferior ou em uma escala menor. Mas eu não sentia isso aqui: eu era bem-vindo em todos os lugares. Na verdade, devemos destacar as boas relações que tivemos com a Minrex (Ministério das Relações Exteriores de Cuba), que sempre mostrou a melhor disposição para nos receber e trabalhar conosco.

Vemos a guerra mais uma vez no centro do tabuleiro de xadrez geopolítico global. Vivemos em um mundo cada vez mais polarizado, cheio de conflitos ideológicos. Como explicar a um cidadão comum, que se levanta todos os dias para trabalhar, por que é importante manter relações diplomáticas cordiais com todos os países?
Porque essa é a tradição de nossa diplomacia. E eu diria mais: ela reflete o caráter nacional brasileiro. Somos um povo muito aberto. Mas há outros aspectos. O Brasil é um país importante, especialmente em nosso continente, mas não é um país que tenha um poder tão grande que se possa dar ao luxo de se alinhar com um grupo ou com outro. Nosso interesse é manter boas relações com todos.

Deixe-me dizer-lhe algo muito importante. Quando entrei na carreira diplomática, um dos meus primeiros empregos no Ministério das Relações Exteriores foi na Divisão Europa II. Isso foi na Europa Central e Oriental. Ou seja, os países socialistas. Entrei na época da Guerra Fria, uma época em que o mundo estava dividido por ideologias. Nessa época, eu tinha o privilégio de ser responsável por nossas relações com a União Soviética exatamente na época em que a Perestroika estava começando, em 1985.

Tudo isso para dizer que naquela época tínhamos o que se chamava “pragmatismo responsável”. Que, apesar da divisão do mundo em ideologias – onde o Brasil estava no lado ocidental do mundo capitalista – nossa diplomacia sempre foi guiada pelo interesse nacional. Mesmo durante o período militar, todos os ministros eram diplomatas. Em outras palavras, o interesse nacional é mais importante do que as diferenças ideológicas. Quando Angola declarou a independência, escolheu o caminho socialista e o Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer a independência daquela nova república. Naquela época, o Brasil, ainda sob domínio militar, construiu junto com a União Soviética a maior usina hidrelétrica de Angola.

Temos uma política externa independente que sempre evitou alinhamentos ou tomar partido em conflitos internos dentro dos países. Essa é a tradição de nossa diplomacia. E felizmente, desde o dia primeiro de janeiro está de volta.

Que papel desempenha a integração regional nesta busca de interesse nacional?
Há algum tempo o Brasil tem se distanciado das organizações de integração regional. Mas o Brasil tem um papel fundamental a desempenhar nestas organizações. E já decidiu que desempenhará mais uma vez um papel fundamental. O que é importante notar é que o Brasil, apesar de ser o maior país da América Latina geograficamente, o mais importante economicamente, nunca teve tendências imperialistas.

E neste preciso momento em que temos governos progressistas nos países mais importantes de nosso continente – México, Argentina, Chile, Colômbia, etc. – este é um momento muito especial. É um momento que é uma janela de oportunidade para avançar com todas as ideias que temos sobre a integração latino-americana.

Gabriel Vera Lopes | Brasil de Fato
Edição: Thales Schmidt


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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