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Toggle* Atualizado em 10/08/2023 às 12h40.
Ao melhor estilo PSDB, Tarcísio de Freitas, o governador carioca dos paulistas, anunciou a venda de terras griladas no Pontal de Paranapanema por 10% de seu valor. Mas só para fazendeiros.
A estratégia é baseada em uma lei aprovada pela Alesp(Assembleia Legislativa de São Paulo) em 2022, e sancionada na gestão de Rodrigo Garcia (PSDB), que prevê a regularização de terras devolutas com até 90% para quem já ocupa o terreno irregularmente.
A história da grilagem de terra no Pontal do Paranapanema é quase tão antiga quanto as capitanias hereditárias. A maneira pela qual os colonizadores tomaram conta da Terra de Santa Cruz e exploraram suas riquezas variaram apenas na forma – como atestam povos originários, pretos e pobres, até hoje. O estado de São Paulo é líder nacional inconteste da grilagem. Depois de 25 anos de PSDB no governo – sem tirar de dentro – a eleição de Tarcísio de Souza chegou a ser saudada como mudança no rumo. Se a posse do secretariado bolsonarista e demais extremistas não bastasse, ao final de maio último a verdade se fez.
Ou seja, em terras de São Paulo mudam só as moscas: não aquilo que as atrai. É a Reforma Agrária que Tarcísio candidato ao Palácio do Planalto e todo fazendeiro grileiro sonhava: posseiros da região, que já vivem da posse ilegal e lucram como grileiros, podem comprar terras a troco de casca de banana. Essa medida, em benefício do latifúndio paulista, é promovida principalmente no Pontal do Paranapanema, no oeste do estado – mesma região onde mais de mil famílias camponesas tomaram terras no mês de fevereiro. É como um tapa na cara dos Sem Terra. Mas engana-se quem possa pensar que tanta ‘bondade’ tenha sido urdida de última hora. Ela é fruto da ‘sinergia’ entre PSDB e Republicanos, o partido de Edir Macedo – o ‘empresário da fé’.
Com a experiência de décadas na militância da luta pela terra, Gilmar Mauro – da equipe de coordenadores do Movimento do Sem Terra, MST – diz que nas pendengas judiciais nem sempre as posições eram tão contrárias aos interesses do Sem Terra como hoje. Segundo ele, a Procuradoria-Geral do Estado era mais progressista: “Ou então a instituição era dirigida por gente com visão mais democrática, que nos ajudaram a impedir que ocorressem coisas como essa”, recorda. Nem por isso, relativiza ele, deixou de haver repasses de terras públicas para setores privados. Notadamente em grandes propriedades.
Direto ao pote
Os prejuízos para o erário público e trabalhadores, portanto, não deixavam de acontecer. Em sua avaliação, a diferença é que a apropriação se dava de forma mais sutil, política, destila o Sem Terra, em tom grave:
“Se você analisar o governo Quércia, por exemplo, havia muitas áreas com grandes fazendas. Orestes Quércia construía bairros no município de Campinas perto de suas fazendas. Ele levava asfalto, infraestrutura, energia elétrica e etc. Eram formas de valorizar suas terras nesse meio, pra ganhar muito dinheiro. Isso aconteceu com Jaime Lerner – o arquiteto urbano – no Paraná e assim por diante”, recorda.
Mesmo sendo cada vez mais conservadores, os políticos de hoje – na avaliação de Gilmar Mauro – estariam inovando: “Agora os gestores vão de forma direta ao ponto, mudando a lei de terras do estado de SP a seu bel prazer”. Assim fica fácil regularizar terras devolutas e vender a fazendeiros grileiros, insurge-se: “Isso é inédito. Em 2022, o ex-governador João Dória fez aprovar na Assembleia Legislativa de SP a lei que permitiu a ‘doação’ de terras a grileiros bem de vida às custas do Estado. Tudo continua como dantes no Quartel dos Bandeirantes. O militante levanta a possibilidade de haver gente do Ipesp negociando para ganhar dinheiro. (a rodo).
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Carmem Lúcia decide
Escaldado na refrega, Gilmar garante que o engodo foi implementado a toque de caixa para aproveitar a lei ainda em vigor. “Conseguimos fazer muitas mobilizações, mas não teve jeito, não deu em nada. Aprovaram tudo, permitindo que o governador Tarcísio mostrasse realmente a que veio”. Segundo o líder ruralista, o Pontal do Paranapanema ainda tem 500 mil hectares de terras públicas devolutas, e denuncia: “O projeto prevê isso que vem acontecendo agora: a regularização de terras para os fazendeiros”. Eles estariam acelerando a tramitação de tudo por um motivo mais claro do que explosão atômica: tanto a PGR quanto o Ministério Público já deram parecer favorável à ação direta de inconstitucionalidade no Pontal do Paranapanema, impetrada pelo PT e pelo MST, entre outros.
É possível que a ministra Carmem Lúcia dê voto favorável à inconstitucionalidade da lei, aprovada pelo tucano João Agripino Dória, arrisca o diretor do MST. Caso isso ocorra, seria possível impetrar ações judiciais para impedi-las – até mesmo para terras vendidas, destinadas a fazendeiros. “Aí começa outra guerra jurídica que nós teremos de fazer”, antevê.
Ao longo do tempo, o MST ganhou algumas ações poucas, muito mais na área criminal, de correção, algumas condenações, prisões preventivas, etc., avalia o militante. Mas nada muito grande. Ele acredita que a decisão será favorável ao movimento: “E que nós possamos entrar na Justiça para reaver as terras públicas. Se isso acontecer, acho que abre uma porta bem interessante para pressionarmos, a fim de que a arrecadação de terras se dê para fins de reforma agrária”.
Foto: Laury Cullen Jr./ Instituto de Pesquisas Ecológicas
Há décadas, uma legião de famílias da região faz fila para se candidatar a um palmo de terra pra ter onde plantar e um dia cair morto
Evolução do Capitalismo (!)
Falsificação de documento público para validar a posse da terra é o que se chama de grilagem. Se tivesse capital da grilagem no Brasil, ela seria no Pontal do Paranapanema. “É uma área de forte atuação de grileiros desde a segunda metade do século 19. Na época da expedição pioneira do engenheiro Teodoro Sampaio, a região se chamava “Sertão do Paranapanema”, informa Bernardo Mançano, professor da Unesp. Há décadas, ele conduz pesquisas no Pontal do Paranapanema. Especialmente sobre a legislação promulgada em 2022, para legalizar o novo golpe: a “grilagem da grilagem”.
Mas voltando ao século 19 e à narrativa do professor, àquela época o Brasil definiu o que seriam terras devolutas: áreas públicas remanescentes da época da colonização e que não estavam registradas em nome de qualquer pessoa. Veja bem, estamos no século 21. Mas as práticas de hoje pouco ou nada mudaram depois desses séculos. Isso é a evolução do Capitalismo. Mas retomemos o professor Mançano: para entender a grilagem de terras devolutas, ele recorda dois grandes “grilos” no Pontal do Paranapanema, na segunda metade do século 19. As fazendas Pirapó–Santo Anastácio, de 583 mil hectares, e a Fazenda Boa Esperança do Aguapeí, de 872 mil hectares, eram objeto de disputa. Somadas, suas áreas formavam 1,455 milhão de hectares – ou 1,4 milhão de campos de futebol: “A posse de toda essa terra era reivindicada a partir de ações de grilagem, de falsificação de documentos”. Segue o pesquisador da UNESP:
– Houve diversas tentativas dos grileiros para legitimar esses “grilos”, sucedidas de negativas oficiais do poder público. Em uma delas, em 22 de setembro de 1890, o então governador Prudente de Morais listou como razões (para negar a validade) a falsificação da assinatura do vigário da paróquia, na qual a posse fora registrada, e incoerências na demarcação das áreas.
Hoje, nem precisa falsificar nada…
Desenvolvimento predatório
A notória origem fraudulenta, por outro lado, não impediu que grileiros fracionassem e vendessem os grilos até hoje, ensina o estudioso. Grilos são negociados até hoje como se o tempo tivesse parado. Bernardo recorda que, no início da década de 1940, os grileiros sofreram um golpe da ditadura Vargas, que criou novos obstáculos ao processo de grilagem da Pirapó-Santo Anastácio. A estratégia do interventor federal Fernando Costa (1941–1945), seria criar reservas ambientais para salvar as terras públicas. Sucesso parcial, diz o estudioso. Foram criadas três reservas com área de 297.340 hectares: reservas Morro do Diabo, Pontal do Paranapanema e Lagoa São Paulo. Resta hoje apenas a reserva do Morro do Diabo, de 38 mil hectares.
Da terra grilada, vendia-se tudo o que nela tinha, ensina Bernardo Mançano. Os grileiros teriam desmatado e formado dezenas de serrarias: a exploração teria sido feita com trabalho de posseiros e depois dos colonos. De acordo com o pesquisador da UNESP no Pontal do Paranapanema, com a terra desmatada, foram plantadas diversas culturas, reservando uma parte da área para a criação de animais. A monocultura do café impulsionou o processo de grilagem, com o acúmulo de capital para a formação de fazendas: “Nesses ciclos de exploração, os ‘grilos’ se multiplicavam, segundo um modelo de desenvolvimento predatório que ampliava as desigualdades. Os posseiros eram utilizados para o trabalho pesado no desmate e a formação de grandes áreas de pastagem e agricultura.
Depois da breve história da ‘descolonização’ da terra no Brasil, nada como um bom exemplo para ilustrar a evolução da sociedade. Evolução? Só se for na ousadia da tunga. Há décadas, uma legião de famílias faz fila para se candidatar a um palmo de terra pra ter onde plantar e um dia cair morto. Mas o que não falta é ‘gente de bem’, capaz de sempre se dar bem. No final de maio último, por exemplo, a criadora Cláudia Tosta Junqueira, dona da grife Nelore CTJ (suais iniciais) promoveu leilão de animais, virtuais e presenciais, em suas fazendas – como a de Guará, na parte frontal do Pontal de Paranapanema.
242 processos
Filmado e acompanhado com transmissão do Canal Rural, os negócios parecem ir de bem a melhor. Ainda em maio, Cláudia Junqueira deixou-se fotografar ao lado de Arthur Lira, presidente da Câmara Federal. Nem o presidente Lula tem costa quente assim. Os negócios da próspera fazendeira devem custar boa fatia de seus lucros – mesmo com todo pedigree. De acordo com dados da plataforma digital brasileira Escavador, que dá acesso à informação jurídica pública, Claudia Irene Tosta Junqueira carrega 230 processos judiciais nas costas. Só no Estado de São Paulo, são 198 processos – sem contar mais 12 no estado do Mato Grosso do Sul. Com Tarcísio de Freitas, ela não tem o que temer.
Tutti Buona Gente
Além do Baixo Clero, o Congresso está tomado por uma manada de fazendeiros criadores de gado. A atividade é o principal negócio declarado pelos parlamentares ligados ao agronegócio na atual legislatura, quando se considera as empresas declaradas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Deputados, senadores e suplentes representam o interesse dessa atividade em todas as regiões do Brasil e até no exterior. É o caso de Joel Malucelli*, primeiro suplente do senador Álvaro Dias (Podemos), informa Leonardo Fuhrmann, do portal “De Olho nos Ruralistas – Observatório do Agronegócio no Brasil”. Malucelli é bilionário, dono de uma empresa agropastoril no Uruguai, e declarou uma empresa de produção de madeira no Paraná.
A propriedade de empresas rurais por políticos complementa a propriedade de fazendas, expostas pelo “De Olho nos Ruralistas” no Mapa das Terras dos Parlamentares, explica Furmann. O mapa foi feito a partir da declaração de terras ao TSE. Em alguns casos, as empresas agropecuárias dos congressistas possuem, por sua vez, outras fazendas – mas isso não aparece nos dados da Justiça Eleitoral, critério do observatório para este levantamento. Com tal suporte parlamentar, talvez no século 23 ou 24, Pindorama faça reforma agrária.
* Considerado dono de uma das maiores fortunas do Paraná, ex-candidato ao governo do estado. É pai e avô de dois ‘grandes juristas’, Alexandre e João Malucelli – envolvidos nos crimes do ex-juiz Sergio Moro** e de Deltan Dallagnol** no golpe de estado da Lava Jato que derrubou a presidenta Dilma Rousseff.
** Em vias de perder mandato por descumprir a lei como juiz.
*** Acaba de perder o mandato na Câmara Federal.
Amaro Augusto Dornelles | Jornalista e colaborador da Diálogos do Sul.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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