A democracia é o melhor sistema de governo para 87% dos brasileiros. Boa notícia? Talvez não, porque brasileiro tem uma visão muito própria do que seja uma democracia.
No sistema democrático desejado pelos brasileiros, não cabem partidos políticos nem liberdade: apenas 36% concordam que as pessoas podem expressar ideias e opiniões sem serem reprimidas e 83% são contrários à participação de partidos políticos em protestos.
As contradições foram flagradas por uma pesquisa sobre a percepção pública em relação ao direito de protesto no Brasil, encomendada pela ONG Artigo 19, de defesa da liberdade de expressão, à empresa Talk.
Realizada em 2019, a pesquisa entrevistou por telefone 1.029 pessoas das classes A, B, C, D e E. O resultado foi divulgado na semana passada, como complemento ao relatório (leia aqui) “5 anos de junho de 2013 – Como os três poderes intensificaram sua articulação e sofisticaram os mecanismos de restrição ao direito de protesto nos últimos 5 anos”.
Ponte Jornalismo
Protestos na Avenida Paulista em São Paulo
A pesquisa mostrou que, quando colocado diante de questões gerais, os brasileiros parecem respeitar os valores democráticos. Mesmo entre pessoas que defendem a necessidade de uma intervenção militar, a preferência pela democracia é de 80% (entre os contrários à intervenção militar, a taxa é de 90%). Quando perguntados se eram favoráveis aos protestos, numa escala de 0 ao 10, 65% ficaram nas notas de 9 a 10:
Olhando mais de perto, porém, dá para ver que não é bem assim. As contradições aparecem quando os pesquisadores analisam a concordância a respeito de algumas afirmações:
Numa segunda etapa da pesquisa, qualitativa, os pesquisadores realizaram debates on-line com 18 participantes das classes A, B e C. A partir de suas respostas, a pesquisa identificou quatro “critérios de eficiência” que fariam uma manifestação receber a aprovação dos entrevistados. O resultado é que “o bom protesto” precisa gerar uma mudança positiva, deve tratar de uma causa coletiva, próxima e espontânea, não pode ser violento e deve ser apartidário.
No quesito do que seria a “causa coletiva, próxima e espontânea” que mereceria apoio da população, os grupos se dividiram, refletindo a polarização atual da mentalidade brasileira. Enquanto as pessoas mais envolvidas com os protestos defendem pautas ligadas a questões de raça e gênero, as mais conservadoras e defensoras da repressão aos protestos “acreditam que causas como pró LGBTTIQ+, mulheres e negros são de grupos muito específicos e não trarão benefícios para a sociedade como um todo”.
Uma democracia sem conflitos
A visão negativa a respeito dos protestos é estimulada pela perseguição que o Estado move às manifestações, na visão da Artigo 19. O relatório divulgado junto com a pesquisa mostra que, desde 2013, o Estado vem aumentando e sofisticando sua repressão ao protestos, através da legislação criminal e outros tipos de legislações restritivas ao direito de protesto, da repressão nas ruas, das decisões proferidas pelo Judiciário e ações do sistema de justiça em geral — incluindo aí o Ministério Público. “O Estado, muitas vezes, estrutura uma narrativa em que os protestos e manifestações são um problema que deve ser contido”, afirma o relatório.
Um dos exemplos mais recentes é um decreto assinado pelo governador João Doria (PSDB), que, entre outros itens, exige que os protestos sejam marcados com cinco dias de antecedência, com aviso ao poder público, e abre a possibilidade de a polícia avisar os empregadores de pessoas que participem de protestos vestindo máscaras.
“No pensamento do brasileiro sobre a democracia, aparece a aceitação da democracia como direito a representação e ao voto, mas sem espaço para o conflito”, afirmou a socióloga Esther Solano, professora adjunta da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e autora do livro O ódio como política – A reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo), durante um debate organizado pela Artigo 19 a respeito da pesquisa, ocorrido no dia 9, na Matilha Cultural, na República, região central da cidade de São Paulo. Para Solano, a valorização excessiva da estabilidade e da ordem, que não são valores democráticos, leva o brasileiro a esperar uma democracia ordeira e controlada — na prática, uma democracia nada democrática, já que “o conflito é não só permitido, mas imprescindível” para o sistema democrático.
Do lado da ordem, está o “cidadão de bem”, a pessoa que tem direitos que o Estado deve preservar. Quem atrapalha a ordem é o inimigo, o “bandido”, que é uma categoria cheia de significados, que tanto pode englobar os criminosos como os negros, as travestis, os manifestantes, que não tem direitos e deve ser reprimido. “O bandido, que é o contrário do cidadão de bem, é desumanizado e se torna um corpo matável”, diz Solano. A rejeição ao conflito leva a “uma despolitização da esfera pública”, que se reflete no “desprestígio dessa figura fundamental para a democracia, que são os partidos políticos”, uma visão que “infelizmente, também aparece no campo progressista”.
Diante disso, Solano disse que o grito de guerra que se tornou tão comum nos protestos de rua a partir de 2013, o de “não acabou, tem que acabar, eu quero fim da Polícia Militar”, acaba se mostrando ingênuo, porque a descrença na política levou a um processo de militarização acelerada que vai muito além das polícias. Em todas as esferas da vida pública, hoje, as pessoas passaram a pensar como militares, sempre em busca de eliminar algum inimigo. “Como seria bom se só a PM estivesse militarizada”, suspirou a professora. “Hoje, temos que lutar pela desmilitarização de toda a esfera pública.”