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Carnaval: Crianças de São Vicente protagonizam bloco em defesa dos seus direitos

No desfile, o bloco EURECA defendeu a ideia de que as crianças também são sujeitos que participam da construção política, da cultura e dos direitos sociais
Maria Fernanda Portolani e Victor Farinelli
São Vicente

Tradução:

Durante o carnaval, é muito comum vermos multidões pulando e brincando ao som do samba ou do maracatu, ou seguindo tantos ritmos que soam neste país tropical todo mês de fevereiro. Mas imagina que em meio a esta mescla de danças, cores e tambores há um montão de crianças e jovens que além da diversão característica da sua idade também aproveitam para cantar com palavras em favor da defesa dos seus direitos elementares.

Aconteceu na cidade de São Vicente, no litoral do país (a pouco mais de 70 km de São Paulo), durante a manhã deste domingo (24/2), quando a Mobilização Social EURECA (que é uma sigla para “Eu Reconheço o Estatuto da Criança e do Adolescente”) realizou seu 14º desfile anual pelas ruas da orla marítima – embora também tenha passado pelo bairro do Humaitá, periferia da área continental de São Vicente.

A manifestação surgiu nos Anos 90, em São Bernardo do Campo, de uma iniciativa do Projeto Meninos e Meninas de Rua que decidiu ocupar o espaço público para mostrar a voz de crianças e adolescentes que moram e trabalham nas ruas, constituindo com elas uma forma de mobilização social a favor da luta deste movimento para a consolidação do já mencionado Estatuto da Criança e do Adolescente.

A partir de 2006, graças ao apoio de instituições como o Instituto Camará Calunga e o Conselho Municipal dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CMDCA) e a rede de proteção social, o EURECA passou a fazer seus desfiles em São Vicente. Também deve-se destacar a participação ativa de entidades sociais de outras cidades do litoral sudeste brasileiro, como Santos e Guarujá, além de São Paulo e de São Bernardo do Campo.

Segundo João Carlos Guilhermino da Franca, coordenador do Instituto Camará Calunga, “há neste momento um processo de construção e de entendimento da dimensão política do bloco carnavalesco, porque o objetivo é ir às ruas e falar sobre aquilo que acreditamos, agregando pessoas e grupos que defendem uma outra forma de ver a infância”. O bloco tem como prática mudar a concepção da manifestação política e da organização dos movimentos sociais, abandonando os padrões tradicionais e/ou vinculações partidárias, trazendo ludicidade enquanto resistência e linguagem, para dar visibilidade às violações de direitos vividas por crianças e adolescentes nos territórios.

Todos os anos, um tema é escolhido pelo grupo, sempre relacionado à luta e à efetivação de uma infância mais livre e autônoma. Neste 2019, o tema foi “Crianças e Adolescente Pela Construção da Cultura e dos Direitos Sociais”, propondo uma participação de vozes histórica e culturalmente silenciadas de crianças e adolescentes que buscam encontrar os espaços onde que podem se expressar e ser escutados por sua geração, tratando de construir um mundo menos adultocêntrico.

A sensibilidade e a arte dão vida às fantasias do bloco EURECA, em um processo que acontece todos os anos, e que é um dos momentos mais importante da mobilização, junto com os encontros de formação. Entre os dias 18 e 22 de fevereiro, as crianças participaram de brincadeiras e dinâmicas onde juntaram suas mãos para transformar os materiais nos adereços e fantasias que compuseram as alas que o bloco levou às ruas, dando vida à mensagem que queriam difundir.

No desfile, o bloco EURECA defendeu a ideia de que as crianças também são sujeitos que participam da construção política, da cultura e dos direitos sociais, e que os educadores e adultos responsáveis por pensar as políticas públicas deveriam se desprender um pouco do papel de representantes dos interesses deles, dando mais liberdade para que os pequenos expressem suas opiniões.

Foto Igor Ferreira

Como todos os blocos carnavalescos, o desfile do EURECA estava dividido em diferentes alas. A comissão de frente era composta por 20 meninas que vivem no bairro de Sambaiatuba, em São Vicente, e apresentou um ato baseado em brincadeiras comuns em seu cotidiano, e em movimentos circenses, mesclando a beleza da arte do circo. Desde o início dos trabalhos, as crianças mostraram durantes as atividades ao ar livre as suas destrezas em contorcionismo, malabarismo, palhaçadas, acrobacias, equilibrismo e até mesmo em ilusionismo, o que foi aproveito neste setor do desfile. A ideia foi manifestar ao público que as crianças e jovens produzem cultura, e que por isso também constroem a cidade, se expressando com sensibilidade e capacidade crítica, e aos adultos cabe a tarefa de dar o suporte para que isso seja exercido e respeitado.

Logo, veio a chamada Ala da Resistência, a que esteve composta por mulheres e meninas negras, a maioria pertencentes ao grupo Dança do Camará – Ventre Vivo, Corpo Livre. Nos últimos três anos, as participantes deste grupo trilharam o caminho da formação feminista, de gênero e de empoderamento feminino. A construção desta ala foi baseada no lema “eu sou porque elas foram, a luta continua!”. A ala contou com uma homenagem a 23 mulheres consideradas as “Heroínas Negras”, porque viveram a luta para construir um mundo melhor para todas as mulheres. A Ala da Resistência trazia 16 meninas e meninos que também enfrentam a discriminação por sua cor de pele, ou por seu cabelo, ou porque vivem nas favelas de São Vicente.

Foto Igor Ferreira

Depois veio a Ala Construindo a Desconstrução, na qual o racismo, o machismo, a homofobia e tantos outros preconceitos erguidos pela sociedade se apresentaram como monumentos que se misturam com a paisagem da vida cotidiana. A proposta dessa ala tenha sido a de mostrar os desgastes desses muros e como a ação dos menores pode construir novas estruturas, por cima das edificações opressoras que estão desmoronando, mas desta vez baseadas na liberdade, nos direitos, na cultura e na equidade.

Os Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculo de Santos participaram levantando questionamentos fortes sobre os direitos das crianças e adolescentes, alegria com frevo e contou sobre a luta das mulheres pela liberdade, com destaque para as mulheres negras da história do Brasil, desde Dandara, a mulher que liderou um grupo de resistência de escravas durante a colonização, até Marielle Franco, a vereadora e lutadora feminista que foi assassinada em março do ano passado por aqueles que se sentiram ameaçados por sua luta em favor dos direitos humanos das mulheres das favelas do Rio de Janeiro.Foram dezenas de crianças e adolescentes guerreiras e guerreiros que cantaram sobre seus direitos a brincar nas ruas de cidade.

Foto Igor Ferreira

Finalmente, a Ala dos Adultos tentou mostrar o papel dos adultos nessa nova configuração social que proposta, que é a de dar o suporte para os mais pequenos, mas claro, garantindo o espaço para que eles também possam falar dos problemas que os afetam no dia-a-dia.

Durante os anos de história do bloco EURECA, houve uma importante colaboração de organizações ligadas à rede de garantias de direitos, entre as quais estão a Secretaria de Cultura de São Vicente, o Instituto Camará Calunga, o Conselho Tutelar de São Vicente, o Conselho Municipal dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CMDCA) de São Vicente e de Santos, o Conselho Regional de Psicologia, o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos de Santos, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB – São Vicente), o Centro de Referência Especializada de Assistência Social (sucursais de Guarujá e Humaitá), a Defensoria Pública de São Vicente, o Coletivo Circel e a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

Foto Igor Ferreira


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Maria Fernanda Portolani e Victor Farinelli

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