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Carpentier e García Márquez

Redação Diálogos do Sul

Tradução:

Araken Vaz Galvão*

Carpentier e García MárquezEncontrei na página(*) da professora emérita da UFRJ, Bella Jozef – autora de “História da literatura hispano-americana” – uma informação deveras incitante. Que o escritor Gabriel García Márquez (n. em 1928) –, mais tarde, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura – após ter lido “O Século das Luzes”, de Alejo Carpentier (1904-1980), teria rasgado várias páginas do livro que estava escrevendo. O livro era (seria) “Cem anos de solidão”. A professora Jozef – que não cita a fonte dessa curiosa informação – afirma que, ao lê-lo, García Márquez “[…] havia encontrado o livro que gostaria de ter escrito” (**).

O fato da professora Jozef não citar a fonte, o é de somenos, uma vez que, não só pelo fato de ela ser professora emérita, o é também autora de uma “História da literatura hispano-americana”, além de autora de outros livros sobre a obra de alguns dos nomes mais importantes das letras da América Espanhola, no século XX, deve saber muito bem sobre o que está falando.
Carpentier e García Márquez1Como me sinto, entre aqueles que vivem fora da Academia, um conhecedor razoável daquela literatura, fruto de onze anos de estudos in loco, por força de um exílio de igual duração, comecei a matutar sobre os elos que poderiam ligar aqueles escritores, além de terem nascido na mesma parte desta Nossa América, para usar de uma expressão grata a outro expressivo intelectual hispano-americano, o cubano José Martí (1853-1895).
Carpentier nasceu em 1904, enquanto García Márquez é de 1927, havendo, portanto, uma diferença de 23 anos entre os dois – quase uma geração, poder-se-ia dizer. No entanto, há outras diferenças. Para especular sobre elas, uma pequena divagação.
Li El Siglo de las Luces, estando em Montevidéu, por volta de 1968/9, inclusive já tendo lido, dois anos antes, os Cien años de Soledad – obra que, por sinal, ao correr desses 44 anos, mais ou menos, voltei a lê-la treze vezes. Enquanto o livro de Carpentier – para muitos sua obra-prima – somente voltei a lê-la agora recentemente, ou seja, 42 anos depois de primeira leitura, instigado pela informação contida na página da professora Jozef.
Sendo que esta última leitura, ao contrário da primeira, fi-lo em português, e pude melhor aquilatar o que tinha de verossímil na afirmação da professora da UFRJ. A edição que li é do Círculo do Livro, São Paulo, SP, tradução de Stela Leonardos, 1989, pág. 35. Por sinal, diga-se de passagem, embora a tradução tenha sido feita por pessoa do peso de Leonardos, a edição contém muitos erros gráficos, como um – gritante! – na pág. 118, que se usa a palavra prestígio em vez de presídio, ao se referir ao sinistro estabelecimento penal criado, pelos revolucionários que “derrubaram a Bastilha”, na Guiana.
Sobre essa minha especulação, por ora, falarei apenas que não foram somente a diferença de idade, entre os dois, o mais importante a distanciar ou aproximar suas obras. Carpentier, a rigor, não pode ser classificado como um nome intimamente ligado ao realismo mágico – ainda que no prefácio da primeira edição de “O Reino deste Mundo”, tenha-se declarado adepto do realismo maravilhoso – que vem a ser, para muito, um dos nomes do realismo mágico. Ou melhor, tinha afirmado que aquela obra filiava-se àquela corrente. Se desejasse ser preciso na minha afirmativa teria dito que, ao declara-se partidário do realismo maravilhoso, Carpentier estaria inaugurando essa corrente literária – cuja origem estaria na Grécia – entre nós, latino-americanos, inclusive teria sido seu único adepto, já que – salvo prova em contrário – ninguém mais se declarou ligado a ela. O que se viu, depois da explosão de “Cem Anos de Solidão”, foram os meios de comunicação, e o público leitor letrado em geral, ter declarado que aquilo que os acadêmicos chamam de “realismo mágico” (e muito o chamam até a obra de Carpentier) era de fato realismo fantástico, para ira ou fastio do mundo acadêmico ligado a literatura.
Porém, é pertinente registrar que, depois daquela obra, Carpentier não voltou a escrever nenhum livro associado à magia daquele tipo de realismo maravilhoso ou mágico. Isso não ocorreu nem mesmo com a obra que teria influenciado a García Márquez – segundo afirmação da professora Josef –, já que “O Século das Luzes”, romance de uma beleza e poesia primorosa, não pode ser classificado como ligado àquela corrente literária, já que nele nada há de mágico e o que nele possa haver de fantástico está relacionado com o que de absurdo há de no dia-a-dia do nosso fazer político. Ou que houve no cotidiano da repercussão dos ventos da Revolução Francesa no Caribe.
Por isso, não seria excesso dizer-se que talvez a diferença mais acentuada entre esses dois expoentes da literatura do nosso Continente tenha sido a formação intelectual de cada um e, quiçá, a diferença até de classe social. Carpentier era um homem refinado e, embora a palavras seja “maldita” entre nós, era também um erudito, com conhecimento alcançando várias áreas, em particular no campo da música.
Dono de uma linguagem bastante elaborada. Seus textos, além de repletos de um barroquismo muito poético, eram de uma feitura primorosa. Forma de escrever que, na América Hispânica, é chamado de castizo – desde que se entenda assim, em suas ex-colônias, às normas cultas do idioma espanhol, não afetado por termos populares – Puro, em termos, uma vez que, no caso de Carpentier, pode conter, como contém, africanismo do Caribe e outros termos daquele labirinto linguístico típico da região, inclusive com palavras indígenas. Porém o uso desses termos é feito de forma elaborada, refinada. –, que é raramente usada pela maioria dos escritores hispano-americanos. Até mesmo os que se tornaram conhecidos em função do chamado boom da literatura do nosso Continente. A forma de escrever de Carpentier, ainda que de extração barroca, estava mais próxima da de um Jorge Luis Borges (1899-1986) e de um José Martí – este do século XIX, um dos heróis da independência de Cuba, cujos textos, de períodos muito longos, são de difícil leitura até hoje, por pessoas comuns, mesmo as de um bom nível de escolaridade. Cito Borges e Martí, para ficar com apenas dois exemplos eloquentes e bastantes conhecidos. Mas poderia citar também, como exemplo de escrita refinada, César Vallejo, Ernesto Sábato e outros.
E já que citei a linguagem barroca de Carpentier, esclareço que fi-lo no sentido figurado, ou seja, linguagem do seu tempo com algumas características do barroco. E isso é mais visível, talvez, em sua obra “Concerto Barroco”, em que o seu amor pela música e o uso de uma escrita com aquela particularidade ficam evidente.
Já García Márquez, filho de um pequeno comerciante – seu pai possuía uma farmácia no interior, desconhecendo-se se era ou não formado ou prático nesta área –, cuja família numerosa, com onze filhos – foi criado até os oito anos por seus avós, o que indica dificuldades financeiras de seu pai para manter prole tão numerosa.
Seu avô materno Nicolás Márquez, casado com Doña Tranquilina Iguarán, era um veterano da Guerra dos Mil Dias, cujas histórias encantavam o menino Gabriel. Em um pequeno parêntese, registro que esse avô teria inspirado o personagem do seu livro “O Coronel não tem que lhe escreva”. Da mesma forma que, pelo sobrenome Iguarán, pode-se deduzir onde ele foi buscar inspiração para a personagem, Úrsula, de “Cem Anos de Solidão”, talvez a mais importante daquele livro. Livro em que aparece também o nome Márquez, na pessoa do coronel Gerineldo Márquez, amigo do personagem principal masculino, Aureliano Buendía.
Ao estudar jornalismo, como estudante pobre, García Márquez deve ter morado em repúblicas, onde boa parte de sua experiência humana, e cultura popular, pode ter sido cinzelada. Sendo, pois, jornalista de profissão, era acostumado à concisão, aos textos objetivos, escritos com palavras simples. Dono de um vocabulário rústico – digamos assim –, ao qual ele soube agregar muita ironia e humor, usando-o com maestria. Não foi por acaso que ele mesmo declarou, por ocasião do lançamento de El Otoño del Patriarca, que o escrevera usando o linguajar dos motoristas de táxi de uma das importantes cidades colombianas – Barranquilla, Medelim ou Cali –, não me lembro qual delas.
Essas diferenças, porém, não impedem que encontremos na obra do segundo clara influência de alguns recursos narrativos do primeiro. Não pretendo fazer um estudo comparativo da semelhança de linguagem entre os dois – mesmo ressaltando o barroquismo e o refinamento de um em contraponto à linguagem jornalística, e popular, do outro –, mas há um detalhe – que não creio que se possa atribuir a mera coincidência – comum a forma de escrever de García Márquez, que sempre me intrigou. Em várias de suas obras, ao se referir a prática de sexo por dois apaixonados, existe sempre a alusão de que esse sexo, além de intenso, era praticado, pelo casal de forma insólita. Normalmente começara, por exemplo, a “fazê-lo como os caracóis, depois como os coelhos, seguindo como às minhocas, etc.” Isso ocorre em várias de suas obras.
Mas essa curiosidade não se dá em nenhum livro de Carpentier – cujas referências ao sexo, mesmo sutis, primam por não aparecer –, por isso vou ficar com outro exemplo bem mais eloquente, talvez, existente em Garcia Márquez. Como um que tem, em “Cem Anos de Solidão”, e também em várias outras das suas obras, onde – repito – há expressões populares, muito bem recriadas, do tipo “linguagem de bispo”, verbi gratia, muito parecida a uma que encontramos em “O Século das Luzes(***)”, como: “Quando Sofia – a heroína daquela obra – era vítima de uma trama dos rapazes (seus irmãos) para feri-la em algo, começava a dizer grosserias de carroceiro (o grifo é meu)Benedicite. ‘Onde aprendeste isso?’, lhe perguntavam os outros, rindo. ‘No lupanar’, respondia ela com a naturalidade de quem houvesse estado lá”.
Essa característica, sisuda e natural em Carpentier, aparece também, de modo natural e debochado em García Márquez, de maneira bastante abundante. Sem que esteja eu a afirmar que ele se inspirou naquele – uma vez que aquela forma de falar ou reagir a uma brincadeira, pode ser comum à região do Caribe. No entanto, devo dizer que não creia em coincidências, a julgar pela afirmativa da professora Jozef.
Há, no entanto, de se ater ao fato de que ambos foram partidários de posições políticas progressistas – para usar um termo da época – e a ela foram coerentes até o fim de sua vida (no primeiro caso) ou até o ocaso dela (no caso de García Márquez), contrariando posturas de outros bons escritores daquele grupo, relacionado com o chamado boom latino-americano, que foram esquerdistas, enquanto sê-lo foi moda, passando a descobrir as maravilhas do capitalismo – capitaneado pelos Estados Unidos (odioso, sob todos os ângulos, até então) – e depois passaram a defender o neoliberalismo – propugnado pela dupla Ronald Reagan (1911-2004) e Margareth Thatcher (n. em 1925) – com o mesmo ardor com que defendia, por exemplo, a revolução cubana. Pior, passaram a demonizar Cuba, esquecendo-se da crueldade do bloqueio Imperial e outras mazelas dos gringos.
Voltando aos dois expoentes da nossa literatura latino-americana, talvez nesse esteja o grande, se não o único, ponto de contanto entre os dois. Ou seja, foram próximos em suas posições político-sociais, mas bastante diferentes em relação ao modo de escrever. Carpentier fez uma única incursão (Salvo que tenha escrito algum conto que não tive oportunidade de ler. No entanto, continua válida a assertiva, porque tendo havido algum conto, não houve nenhum romance. Ficando essa hipótese como uma exceção e não como regra) por áreas do realismo mágico – por ele chamado de maravilhoso –, entanto García Márquez manteve-se fiel a essa corrente. Toda a sua obra – romances e contos – pautando-se por ela sempre, tendo, inclusive, elevado-a a pontos jamais alcançados por nenhum outro escritor de sua geração. Foi tal o seu apego a essa forma mágica de escrever, que até em seus relatos encontram-se as pegadas do mágico, do maravilhoso, da realidade aparentemente absurda.
E toda essa obra magistral foi escrita usando linguagem de leão-de-chácara, de carroceiro, de motorista de táxi, de estivador, de homem do povo, de jornalista preocupado com temas populares, tornando-a culta, além de poética e envolvente. Em García Márquez, pois, o amor ao povo – mesmo quando trabalhado com sutileza e refinamento – está escrito com a sua mesma forma de falar. Em Carpentier, esse mesmo amor está expresso com a erudição do esteta, cujas lágrimas que chora as injustiças, estão – como assim dizer – disfarçadas pelo manto refinado das normas cultas do idioma. Como se fossem secadas pelas tramas delicadas de um lenço de cambraia, daqueles usados por aquelas pessoas que possuíam uma educação mais requintada e modos de cavalheiro.
E assim, posso concluir que entre Carpentier e García Márquez, salvo provas novas trazidas por estudos mais acurados, pouca, ou quase nenhuma, relação houve, exceto o caso isolado de El Reino de este Mundo, ou, talvez, possa haver em algum conto do primeiro que não tive acesso. A relação entre esses dois expoentes da literatura latino-americana do século XX, esteve tão-somente na postura político-social de ambos frente às transformações havidas em nossa parte do Continente. E, ademais, da coerência com que se mantiveram aferrados àqueles ideais.
No entanto, talvez haja ainda uma pequena diferença entre a obra dos dois – sempre explicitando que a comparação é feita com, mais ou menos, o conjunto da obra de García Márquez e com apenas a obra de Carpentier perfeitamente ligada ao realismo mágico, “O Reino deste Mundo”. Em relação ao que foi afirmado no parágrafo acima, poder-se-ia encontrar essa pequena diferença. Na maior parte da obra de García Márquez, mesmo se evidenciando o amor, e a defesa, pelo povo e pelas causas populares – posição que, genericamente é (ou foi) chamada de esquerda –, esses sentimentos estão disfarçados pelo olhar, às vezes irônico, às vezes impotente, ao enfocar o absurdo que predominava (e ainda predomina) em nosso dia-a-dia político. Em Carpentier esse distanciamento – quiçá defensivo – não existe. Ver-se em todas as situações descritas a clara paixão indignada pelo absurdo da postura política, mesmo quando esta postura é (foi) tomada por um ex-escravo que, ao chegar ao poder – depois de ter eliminado os tiranos brancos, fez-se também tirano igual ou pior aos tiranos brancos que combateu e massacrou.
*Membro da Academia de Letras de Valença, BA, colaborador de Diálogos do Sul
(*) http://www.bellajozef.com/index.cfm?pagepath=&id=32497
(**) Fonte: O Globo – Sábado, 8 Janeiro 2005 – Página: 3 – Edição: 1 – Editoria: Prosa e Verso –– Crédito: Bella Jozef


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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