Prezado Jair,
Permita-me tratá-lo assim, sem formalidades, como é próprio da sua personalidade – pelo menos até que, em janeiro de 2019, você assuma a difícil tarefa de comandar o país. A partir de então, todos, mesmo os que não votamos em você, teremos de chamá-lo de senhor presidente. Fazer o quê? Foi a vontade do povo brasileiro. E respeitar o outro é próprio da democracia. Churchill, o autor daquele livro que você exibiu em rede nacional, já dizia que esse é o pior dos regimes, excetuados, claro, todos os outros. É ele que garante o respeito aos eleitos e os direitos de todos, inclusive a liberdade dos jornais, como a Folha de S. Paulo, a que você vem ameaçando.
Respeito seu mandato porque sei do que falo. Eu era jornalista político quando militares e civis, enxergando comunistas embaixo de suas camas, derrubaram o presidente João Goulart, em 64. Foi quando brilhou o Correio da Manhã, jornal para o qual voltei pouco depois do golpe. O Correio apoiou a quartelada, com os editoriais Basta! e Fora!, mas logo passou para a oposição. Denunciou arbitrariedades, revelou escândalos, deu furos. Uma vez, publicou em detalhes o mapa, contrabandeado de dentro da cadeia, de um centro secreto de torturas do Cenimar no Rio. Em outras ocasiões, revelou nomes de torturadores, desprezando ameaças. Foi um jornal de verdade. A tiragem cresceu até 30% nos primeiros meses do consulado militar. Todos nós – eu, Otto Maria Carpeaux, Hermano Alves, Edmundo Moniz, Carlos Heitor Cony e outros – viramos heróis para a opinião pública. Tudo com aval da proprietária do jornal, D. Niomar Moniz Sodré Bittencourt.
Tive papel importante nisso aí. Fiz uma campanha contra a tortura, viajei pelo país, a ponto de o marechal Castello Branco ter mandado o general Geisel investigar o que acontecia nos quartéis. O Cony, na coluna Da Arte de Falar Mal, manteve fogo pesado. Nada demais, só mostrava o absurdo que era o ocaso das liberdades civis no Brasil. Tornou-se uma celebridade: o seu livro “O Ato e O Fato” vendeu, na noite de lançamento, milhares de exemplares. Diz aqui que autografou 1500 livros na ocasião, mas muito mais gente ficou sem a dedicatória. Simplesmente, era público demais.
Arquivo Nacional
Niomar Moniz Sodré recebe, em 1965, o Marechal Lott na gráfica do Correio da Manhã. Foto Arquivo Nacional
Aí entra a Folha de S. Paulo de 2018. Reivindicando um poder que não tem, você ameaçou cortar verbas publicitárias de jornais que não falem a verdade. Essa era a mesma acusação, a de mentir, que o regime fardado fazia, naqueles difíceis anos 60, ao Correio. O “remédio” da ditadura, da qual você tem tanta saudade, foi parecido. Verbas publicitárias oficiais foram cortadas, a publicidade privada mingou – por pressão contra empresas ou pela ação de lideranças empresariais que resolveram sufocar o jornal que, para elas, defendia “ideias de Fidel Castro”, como disse um ricaço paulista. Nada mais falso: batíamo-nos pela liberdade, contra o arbítrio, contra a tortura.
Sob pressão do boicote, o Correio vergou economicamente, mas cresceu em prestígio. Chegou a ser vendido no mercado negro, com ágio. Elegeu até uma bancada: dois deputados federais (eu e Hermano) e dois estaduais na Guanabara (Alberto Rajão e Fabiano Villanova), todos do MDB. O jornal passou o diabo. Teve uma loja destruída por uma bomba, foi invadido por meganhas armados, teve edições apreendidas, seus diretores, inclusive sua proprietária, foram presos e processados. Teve funcionários demitidos e perseguidos, monitorados até no exterior. Foi fechado por quase uma semana. Resistiu e informou o quanto pode. Sempre com os leitores a seu lado.
Já deputado, vi de longe a agonia do velho diário. O Correio foi sufocado, não por mandar qualquer tipo de mensagem cifrada a organizações terroristas – essa foi uma justificativa bem capenga que você apresentou para a censura do regime militar, uma mentira absurda e injustificável. O jornal foi punido, censurado, perseguido, por cumprir seu dever: dizer, pacificamente, a verdade, mesmo que sob o risco físico de seus funcionários – e sob ditadura. Como quando denunciou o odioso plano de fanáticos para transformar o Para-SAR, unidade de elite da FAB, em uma milícia de … terroristas.
Aqui retorno à Folha. O jornal não é perfeito, o Correio também não era, nenhum o é. A FSP prestou, porém, um belo serviço à democracia em 1984, quando abraçou a Campanha das Diretas Já, que levou a ditadura militar para o cemitério da história. Veja a ironia, Jair: você só é presidente porque esse jornal, que você ataca, ajudou no retorno da democracia a nosso país, de forma decisiva. A Folha tem servido ao Brasil e à verdade. Jornais podem ser assim: o que fazem, muitas vezes, dura.
O Correio da Manhã é, até hoje, para todos os jornais e jornalistas, um símbolo de resistência ao autoritarismo. Esse lugar logo será assumido pela Folha, se tiver pela frente um governo autoritário, que não compreenda que deve presidir o Brasil para todos, o que exige paciência, tolerância e ouvidos para o contraditório. Mesmo quando o que outro lado tem a dizer é desagradável.
Aceite, por favor, o conselho de quem já viu muito: esqueça esta tosca ameaça de cortar verbas publicitárias de jornais, anacrônica como um Cuba Libre. Deu errado nos anos 60 com o Correio da Manhã, transformou-o em bastião da oposição que até bancadas parlamentares elegeu. Dará errado hoje com a Folha e com outros órgãos de imprensa, além de ser obviamente inconstitucional e ilegal – e medida absolutamente odiosa. Quem tem o dever de reconciliar os brasileiros não pode ter atitude tão apequenada.
Lembre-se do Cony, em Revolução dos Caranguejos, artigo publicado no saudoso Correio: “Afinal, o Brasil – já o disse aqui – não é um quartel de oito milhões de quilômetros quadrados. Quadrados são os que desejam fazer do país um prolongamento do quartel”. E procure pensar assim: a imprensa é e precisa ser crítica. Melhor “já ir” se acostumando.
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Marcito – 1936/2009