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Leonardo Wexell Severo*
“A mídia quer a sentença”. O anúncio do juiz Ramón Zelaya, responsável pelo julgamento dos camponeses de Marina Cue, no município de Curuguaty, evidenciou nesta terça-feira o jogo de cartas marcadas do mais do que viciado processo. Para o governo paraguaio, os latifundiários e sua mídia, que utilizaram o confronto ocorrido no dia 15 de junho de 2012 para justificar o impeachment do presidente Fernando Lugo, a meta é penalizar os trabalhadores sem-terra com até 30 anos de prisão.
Ao negar aos advogados que recém assumiram o caso o direito a um estudo pormenorizado de mais de 7.200 páginas dos autos do processo e marcar para a próxima segunda-feira, 3 de agosto, o reinício do julgamento, Ramón Zelaya expôs as vísceras do judiciário paraguaio, intimamente ligado aos poderes político e econômico. Afinal, disse, é preciso atender aos meios de comunicação. E eles têm “pressa”.
“Esta é uma confissão expressa da total ausência de independência do judiciário paraguaio”, declarou o juiz brasileiro Jonatas Andrade, membro da Associação dos Juízes pela Democracia e um dos observadores internacionais do caso Curuguaty, que vieram a Assunção acompanhar o processo. Em geral, ressaltou Jonatas, “o judiciário é contra as maiorias de ocasião, pois precisa estar apegado ao Estado de direito, à Constituição, à legislação. Nunca vi um juiz assumir desta forma que sua decisão é para atender a imprensa, isso é estupendo. No Brasil até ocorre, mas não se diz”.
Os jornais ABC Color, Última Hora e Extra, assim como todas as principais emissoras de rádio e televisão do Paraguai voltaram à carga desde segunda-feira com “o julgamento sobre a matança que tirou Lugo”. Imagens editadas de soldados da polícia chegando ao assentamento de Marina Cue e sendo teoricamente “emboscados” por “camponeses covardes” são repetidas à exaustão, para que a população embarque na campanha desinformativa, julgue e condene. Como se fosse crível que 60 camponeses, 25 deles crianças e mulheres, pudessem fazer frente a mais de 320 militares fortemente armados e contando, inclusive, com helicópteros.
Rubens Villalba, Felipe Martínez, Luis Olmedo, Adalberto Castro, Arnaldo Quintana, Néstor Castro, Lucía Aguero, Fani Oledo e Dolores López Peralta são acusados por tentativa de assassinato, invasão de imóvel alheio e associação criminosa. Alcides Ramón Ramírez e Juan Carlos Tílleria de associação criminosa e invasão de móvel, e Felipe Nery Urbina responde por fugir da perseguição penal. A jovem Raquel, que tinha então 17 anos, é acusada de invasão de imóvel alheio, associação criminosa e cumplicidade de assassinato. O caso de Felipe é uma boa demonstração da violação dos direitos humanos: ao tentar ajudar a um dos feridos, foi preso e torturado durante três dias. Outros camponeses não tiveram tanta sorte e foram assassinados pelas costas, a sangue frio.
“Enfrentamento” pré-fabricado
Há três anos, 17 pessoas morreram depois do “enfrentamento” iniciado por franco-atiradores, com projéteis de armas privativas das Forças Armadas. Após tiros dispersos, ouvem-se nove segundos de disparos de armas semi automáticas. O cenário lembra Ponte Laguno, na Venezuela, onde atiradores de elite da CIA assassinaram tanto apoiadores do presidente Hugo Chávez como oposicionistas, provocando uma sangrenta confrontação. A atuação dos profissionais da morte em Caracas e em Curuguaty teve por objetivo fomentar o caldo de cultura para a derrubada dos dois presidentes e sua substituição por nomes mais palatáveis a Washington. Com a mobilização popular, Chávez resistiu e venceu. Lugo foi derrubado menos de uma semana após a matança. O plano neoliberal de concessões e privatizações chegou logo em seguida.
À frente da ação em Curuguaty encontrava-se Erven Lovera, chefe do Grupo Especial de Operações (GEO), irmão do tenente-coronel Alcides Lovera, chefe da segurança do presidente Lugo. Reconhecido pela capacidade de diálogo, Erven Lovera foi um dos primeiros a cair morto enquanto conversava com a liderança do movimento, dando início ao tiroteio.
Considerado uma “testemunha chave” por ter denunciado a presença de franco-atiradores que teriam começado a conflagração, o camponês Vidal Vega foi assassinado em dezembro de 2012 na porta de sua casa. “O fato é que os camponeses não tinham armas de grosso calibre e os policiais foram mortos com armas de guerra. Os tiros vieram de franco-atiradores desde o monte e do helicóptero”, relata Mariano Castro, pai de Nestor e Alberto, presos, e de Adolfo, assassinado.
Havia um pedido de desapropriação para fins de reforma agrária dos dois mil hectares de Curuguaty, mas, ao contrário disso, a Justiça, atendendo aos interesses da família Riquelme – vinculada à ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989) -, solicitou uma prospecção do local, para saber se havia intrusos. Algo totalmente anormal, já que em 2004 o presidente Nicanor Duarte havia assinado um decreto determinando a destinação das terras a trabalhadores rurais.
Representante da Organização de Luta pela Terra, Lídia Ruiz ressalta que “no Paraguai, 90% da propriedade está concentrada em mãos de apenas 2% da população, grande quantidade delas terras do Estado que passaram a mãos privadas de forma fraudulenta”.
Mães da Praça de Mayo
Aos 85 anos, com o tradicional “pañuelo” na cabeça e ostentando orgulhosa a foto do filho desaparecido na Argentina, Nora Morales Cortinias, das mães da Praça de Maio, hipotecou solidariedade aos lutadores pela terra, manifestando-se em defesa de um processo “limpo e transparente, para que se faça justiça”.
Conforme o advogado Roque Orrego, “um aspecto fundamental do que ocorreu foi a tortura e a execução em Marina Cue”, questionando o fato de que nenhum policial tenha sido responsabilizado nem se encontre no banco dos réus.
“Em primeiro lugar, a terra era pública, Marina Cue significa Terras da Marinha em guarani, portanto não devia ter havido nenhuma ação policial. O dito proprietário pediu o despejo ilegalmente e até hoje, três anos depois, esta questão ainda não está resolvida. A justiça está completamente dominada, há um caráter de classe, os pobres são discriminados e sua luta é criminalizada”, afirmou a paraguaia Marielle Palau, do Centro de Investigações Sociais (BASE). Na avaliação de Marielle, “o que ocorreu em Curuguaty evidencia a impunidade e a perversão do poder judiciário, ao mesmo tempo em que reforça a necessidade da solidariedade e de fortalecer a pressão sobre o governo”.
Membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), o brasileiro Rodrigo de Medeiros condenou a postura do juiz paraguaio de se submeter ao ritmo da mídia. “Um dos espaços que violam ou legitimam a violação se dá no sistema de justiça. Por isso a importância de se observar as garantias dos acusados para sua defesa em sociedades tão desiguais, em que o poder econômico e político influenciam negativamente na realização da justiça”, sublinhou.
Para Alirio Garia, secretário de Solidariedade e Direitos Humanos da Fensuagro (Federação Nacional Sindical Unitária Agropecuária de Colômbia), “é preciso garantir um julgamento justo a estes homens e mulheres que estão lutando pela terra e foram vítimas de uma armação criada pelos poderosos do Paraguai para dar o golpe de Estado em Lugo”. “Estão utilizando métodos abusivos para aterrorizar os camponeses. Precisamos estar vigilantes”, ressaltou.
Os promotores José Sarza e Jalid Rachid – filho de Blader Rachid, ex-presidente do Partido Colorado, controlado por Stroessner – mantêm a versão de que os camponeses “prepararam uma emboscada”, sendo os responsáveis pelas mortes. Sarza, que ordenou a brutal ação policial em Curuguaty, foi processado recentemente por corrupção ativa, ao exigir mais de 15 mil dólares de um proprietário rural para ordenar a expulsão de assentados.
Desmontando Curuguaty
Produzido pelo Serviço de Justiça e Paz do Paraguai (Serpaj), o vídeo Desmontando Curuguaty traz elementos imprescindíveis para compreender o grau de manipulação a que a opinião pública vem sendo submetida. Vamos aos fatos:
1. As terras fazem parte da empresa Finca 30, da Industrial Paraguaya SA, que em agosto de 2007 doou dois mil hectares para a Armada Paraguaia. Até hoje seguem inscritas como se fossem da Industrial Paraguaya, sem que a Justiça tenha se manifestado sobre de quem é a propriedade, reivindicada para fins de reforma agrária. O fato é que até o momento da agressão policial as terras não pertenciam a Campos Morumbi nem poderia ter sido emitido documento para o despejo. O primeiro vício do processo é que o juiz José Benitez, de Curuguaty, havia aprovado uma investigação do local, não a retirada das famílias. O juiz determinou uma medida e a polícia executou outra. “Era bastante precisa a ordem: ir como para um combate”, declarou José Almada, soldado do GEO.
2. A versão de que os camponeses teriam preparado uma “emboscada”, divulgada pelo promotor Jalil Rachid é completamente fantasiosa. Para o advogado Vicente Morales, “35 camponeses com seus filhos e mulheres emboscarem 324 policiais com helicópteros, metralhadoras, coletes, capacetes, escudos e granadas me parece absurdo”.
3. Um helicóptero sobrevoou desde cedo o acampamento filmando e tirando fotos. Conforme gravação do comissário Roque Fleitas, chefe da Agrupação Aeroespacial, a aeronave estava equipada com sofisticada tecnologia e gravava todos os detalhes da operação. Ao mesmo tempo em que filmava, o helicóptero transmitia automaticamente para uma base de dados da polícia. A filmagem nunca apareceu. Semanas depois, o fiscal Rachid disse que o equipamento não estava funcionando.
4. Armados em situação de ataque, inclusive com fuzis automáticos, a polícia invade em duas colunas. Os camponeses ficam cercados. Se ouvem inicialmente tiros isolados e, logo depois, nove segundos de tiros de armas semi-automáticas que, conforme admitiu o próprio promotor, não foram encontradas com os camponeses.
5. Entre as “escandalosas irregularidades” apontadas pelos advogados estão as escopetas velhas e até uma arma de ar comprimido que não foram utilizadas, além de foices e facões. Entre o pacote de falsificações está o fato de que muitas coisas mudaram de lugar entre uma foto e outra, sempre para incriminar os camponeses, vários deles já mortos. No dia 25 de junho se incorporou como “evidencia” uma escopeta calibre 12 achada próxima a Curuguaty e que, segundo o próprio dono, havia sido roubada no dia 22 de junho. Ou seja, uma arma pretensamente usada pelos camponeses jamais esteve com eles.
6. O promotor notifica a defesa no dia 16 de outubro de 2012 para que participe de uma “perícia fundamental” para o processo. Detalhe: dita “perícia” havia ocorrido quatro dias antes, no dia 12 de outubro.
7. “Não há conexão entre as supostas armas que dispararam com as balas que encontraram dentro dos corpos. Este nexo causal não existe”, enfatiza o advogado Vicente Morales. “O fiscal monta um cenário e sustenta uma tese onde a polícia é simplesmente vítima de um ataque”, concluiu.
*É colaborador de Diálogos do Sul e foi a Assunção do Paraguai para cobrir o Julgamento