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Caso Nassif: Profissionais se unem para acabar com assédio judicial contra jornalistas

Nassif não é caso único, como ele mesmo aponta: há muitos outros casos de repórteres calados pelo Judiciário. Como resistir ao assédio judicial?
Leda Beck
Jornal GGN
São Paulo (SP)

Tradução:

Por mais de duas horas, cerca de 50 profissionais de vários segmentos, reunidos no grupo Amigos de Luís Nassif, discutiram diferentes propostas e estratégias para lidar com o assédio judicial a jornalistas. “Trata-se de um lawfare básico”, avaliou Camillo Filho, diretor do Sindicato dos Advogados de São Paulo e um dos defensores de Nassif. “O assédio judicial tira a comida da boca, tira os guardas da porta e tira o dinheiro do bolso. O jornalista já não pode falar.”

Nassif não é caso único, como ele mesmo aponta: há muitos outros casos de repórteres calados pelo Judiciário (ver lista incompleta ao pé deste texto). Como resistir ao assédio judicial? Até a próxima reunião, serão criados subgrupos para trabalhar várias possibilidades:

  • definir uma coordenação geral do grupo, envolvendo advogados de defesa, juristas e jornalistas,
  • redigir um manifesto de apoio a Nassif e aos demais jornalistas atingidos pelo assédio judicial,
  • articular uma estratégia de arrecadação de fundos para ajudar os que foram condenados a pagar indenizações desproporcionais e
  • articular uma estratégia jurídica e legislativa, incluindo algumas ações “macroscópicas”.

As ações “macroscópicas” foram sugeridas por Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça do governo Lula, que se propôs a abordar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para tentar obter “algum tipo de regramento administrativo”, “uma metodologia para juízes” que tratem de casos envolvendo jornalistas. Isso vai depender de estatísticas a demonstrar os valores absurdos (e díspares) que vêm sendo cobrados de jornalistas e do mapa patrimonial dos atingidos. Camillo Filho também apontou a “falta de linearidade” nas decisões judiciais: “Precisamos de uma tabela de indenização, que leve em consideração o patrimônio do réu. Condenar um jornalista a pagar R$ 600 mil em danos morais é condená-lo ao silêncio. É condenar a liberdade de expressão”.

Ainda no capítulo das ações macroscópicas, Aragão acha importante também saber como está sendo encaminhada a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), por omissão, que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) apresentariam conjuntamente ao Supremo Tribunal Federal (STF). A ADIn seria baseada num parecer do jurista Lênio Streck. A procuradora da República Eugênia Gonzaga concordou: “É uma boa tese, que está na OAB já há algum tempo. O STF eliminou a Lei de Imprensa com o argumento de que há regras suficientes na Constituição. Mas nada tem impedido os juízes de bloquear bens e receitas de blogs e sites independentes”.

Nassif não é caso único, como ele mesmo aponta: há muitos outros casos de repórteres calados pelo Judiciário. Como resistir ao assédio judicial?

Dissensso.org
"Bagunça jurídico-legislativa é uma porta aberta para esmagar a liberdade de expressão”, afirmou deputado Paulo Teixeira.

“Sair da bolha”

Camillo Filho propôs uma coordenação jurídica de todos os advogados de defesa em casos de assédio judicial a jornalistas para traçar estratégias comuns e pediu atenção também para os “pequenos casos”, de repórteres que não são celebridades. Defendeu, ainda, a criação de uma “associação de defesa” dos jornalistas: “Processar jornalistas virou negócio. Há advogados que fazem isso até de graça, porque ganham comissão nas indenizações absurdas. As condenações inviabilizam a produção, como está acontecendo com Nassif e com muitos outros.”

O deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que convocou o encontro de ontem, ponderou a necessidade de “ampliar o arco político” da iniciativa, estimulando a participação de jornalistas e de outros profissionais não apenas em defesa das liberdades de imprensa e de expressão, mas principalmente pelo direito à informação, que tem sido coibido por juízes de primeira instância e alguns desembargadores. Ele também colocou seu mandato à disposição para trabalhar uma proposta legislativa de regulamentação da profissão. “Essa bagunça jurídico-legislativa é uma porta aberta para esmagar a liberdade de expressão”, afirmou.

Com ele concorda Eduardo Fagnani, do grupo Economistas pela Democracia: “É preciso sair da bolha!” O presidente da APJor, Fred Ghedini, lembrou que há mais de 20 organizações de jornalistas no país, além das entidades como Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e Associação Brasileira de Imprensa (ABI), e que todas elas precisam ser envolvidas, porque o tema é do interesse geral de todos os jornalistas. O Instituto Vladimir Herzog (IVH), representado pelo seu coordenador de Jornalismo e Liberdade de Expressão, Giuliano Galli, ficou encarregado de coordenar a ampliação da participação de jornalistas na iniciativa.

Ghedini também sugeriu que o grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (JDL), da USP, representado na reunião por Eugênio Bucci, e outros grupos chamem organizações empresariais da mídia para o movimento, porque “tudo isso vai acontecer na mídia corporativa também”, como advertiu Camillo Filho.

Rever a regulamentação da profissão

Tanto Camillo Filho como Carol Proner, da Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia (ABJD), apontaram a necessidade de regulamentação da profissão de jornalista, que vem sendo despida há anos de todo tipo de proteção. “A ausência de regulamentação parece liberdade, mas fica tudo ao talante do juiz”, ponderou Camillo. Muita coisa na Lei de Imprensa ajudava os jornalistas, disse ele, mas ela foi sumariamente anulada pelo STF. Em 2009, o mesmo STF aboliu a exigência do diploma de Jornalismo para exercer a profissão.

Da regulamentação que existia restou apenas o decreto-lei 972/69, que exige o registro profissional para o exercício da profissão de jornalista. O problema é que o fim do diploma específico como requisito para o registro, último golpe aplicado sobre a regulamentação, tornou-a praticamente letra morta.

Além disso, há o fato de que a maioria dos juízes e desembargadores têm um parco conhecimento do que seja jornalismo. Muitos deles não entendem (ou escolhem não entender) metáforas, sarcasmos, ironias — e tomam ao pé da letra o que está escrito. Uma das condenações de Nassif resultou de um problema desse tipo: ele escreveu que Luciano Hang devia R$ 120 milhões na praça, pois suas empresas deviam, de fato, essa dinheirama. O empresário apresentou uma certidão de débito, provando que seu nome estava limpo, e Nassif foi condenado. “Só defesa técnica não dá certo”, avisou Camillo. Eugênia Gonzaga sugeriu, entre as ações macroscópicas, uma aproximação “pedagógica” com a Escola Nacional de Magistratura (ENM).

Além dos já citados, também participaram do encontro de ontem: Antonio Corrêa de Lacerda, presidente do Conselho Federal de Economia (CFE) e diretor do grupo Economistas pela Democracia; o próprio Luís Nassif, o jornalista Juca Kfouri e vários outros jornalistas; o presidente do Sindicato dos Advogados de São Paulo, Paulo Feldmann; os coletivos Auditores Fiscais pela Democracia e Advogados Públicos para a Democracia; as associações Juízes pela Democracia (AJD) e Juristas pela Democracia (ABJD); a Associação Brasileira de Imprensa (ABI); os grupos Prerrogativas, Psicanalistas pela Democracia e Transforma MP; e vários professores universitários.

JORNALISTAS ATINGIDOS POR ASSÉDIO JUDICIAL**

  1. Amaury Ribeiro Júnior – O autor do livro Privataria Tucana foi condenado em dezembro a sete anos de prisão por supostamente quebrar o sigilo fiscal de Verônica Serra, filha de José Serra (ver link abaixo).
  2. Elvira Lobato – Em 2007, fez uma grande reportagem para a Folha de S. Paulo sobre os negócios da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Viu-se vítima de 111 ações judiciais, todas assinadas por pastores da IURD nos mais remotos rincões do país (ver abaixo o link para um programa da TV Cultura a respeito).
  3. P. Cuenca – Responde a 126 ações também movidas por pastores da Igreja Universal que se sentiram ofendidos por um tuíte publicado este ano pelo escritor e colunista do Deustche Welle. Parafraseando o padre francês Jean Meslier[1] (1664-1729), Cuenca tuitou: “O Brasil só estará livre quando o último bolsonarista for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”. Segundo o jornalista, o tuíte foi um comentário à notícia de que o governo brasileiro subsidiaria emissoras evangélicas. Espalhar as ações por todo o país, em cidades remotas, constitui litigância de má fé, porque inviabiliza qualquer defesa. Os autores, todos pastores da IURD, pedem indenização de R$ 10 mil ou R$ 20 mil cada um, o que resulta num total que varia de R$ 1,1 milhão a R$ 2,2 milhões. “A ideia deles é criar um caso indefensável”, disse Cuenca, em entrevista. “Não tenho capacidade logística ou econômica para me defender.” O advogado Fernando Lacerda, que assumiu sua defesa gratuitamente, explicou que, embora as ações não sejam idênticas, há nelas um padrão, o que permite inferir uma orquestração. Em alguns casos, no entanto, as ações são quase idênticas, como as assinadas pelos pastores Lúcio Furtado, de Unaí (MG), e Rogério Furtado, de Ariquenes (RO). Em tempo: Cuenca perdeu sua coluna na DW, que considerou contrário aos seus valores o tuíte que indignou os pastores.
  4. Juca Kfouri – Entre 1992 e 2012, Kfouri foi assediado por mais de cem ações impetradas por dirigentes da CBF, então comandada por Ricardo Teixeira, processado em vários países por desmandos e corrupção à frente da entidade. A maioria das ações estava na esfera cível, onde os pretensos ofendidos pediam indenização por danos morais (calúnia e difamação). A maior parte foi encerrada, com vitória do jornalista; algumas ainda estão em fase de recurso, inclusive no STF. Mas Kfouri teve toda a sua defesa coberta pelos veículos onde trabalhava. “Sempre incluí nos meus contratos de trabalho uma cláusula de garantia de assistência jurídica pela empresa jornalística”, diz ele.
  5. Luís Nassif – Responde, no momento, a cinco processos, que estão asfixiando financeiramente a ele e a sua empresa. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reverteu sentença de primeira instância e o condenou por difamar Eduardo Cunha, ex-deputado federal, condenado e preso. Foi-lhe imposto um bloqueio de R$ 50 mil em sua conta pessoal e estão sujeitas ao bloqueio todas as fontes de receita do Jornal GGN. Em outra ação, por uma fotomontagem que por engano envolveu um homônimo, o Tribunal de Justiça de São Paulo decretou um bloqueio de R$ 30 mil, em conta conjunta do jornalista com sua esposa. O terceiro processo refere-se a uma ação impetrada pelo governador João Dória contra um artigo de um colaborador do GGN, pedindo indenização de R$ 50 mil. O juízo aumentou de ofício o valor para R$ 100 mil. A quarta ação foi impetrada pelo desembargador Luiz Zveiter, com inúmeros inquéritos contra ele correndo no Conselho Nacional de Justiça. O juiz fluminense de primeira instância estipulou a condenação em R$ 100 mil e a obrigatoriedade de pagamento imediato sob pena de o nome do jornalista ser enviado ao SPC. A quinta ação foi impetrada pelo MBL, que acusa o jornalista de ter dito que o movimento recebia dinheiro da Lava Jato, embora não houvesse ali nenhuma afirmação de que os R$ 2,5 bilhões da fundação que a Lava Jato pretendia construir com os recursos da Petrobras tivessem alguma ligação com o MBL. O juiz de primeira instância recusou a ação, mas o desembargador impôs multa ao jornalista de R$ 10 mil, afirmando que o texto não era claro.
  6. Marcelo Auler – Repórter investigativo com longa carreira na imprensa corporativa, edita há quase seis anos o Blog Marcelo Auler – Repórter, que produziu uma das melhores coberturas da Operação Lava Jato. Em sua vida relativamente curta, o blog já acumulou sete processos judiciais; em quatro deles lhe foi imposta a censura em matérias publicadas e, em três, solicitadas indenizações que acabaram extintas. Embora Auler não tenha sido obrigado a pagar multas nem a enfrentar bloqueio de conta bancária, ele relata que os processos geraram gastos como despesas de cartório, xerox e viagens a Curitiba, Belo Horizonte e Brasília, que comprometeram seu apertado orçamento. Isso porque não teve que pagar advogado. Sua defesa foi pro bono. Dos sete processos, dois permanecem em andamento. Um deles se refere à censura imposta pelo juiz Luís Decossau Machado, da 5a Vara Cível de Curitiba, impetrado pela juíza estadual Márcia Regina Hernandez de Lima, referente à reportagem publicada no blog e no Jornal do Brasil impresso sobre a separação de crianças haitianas de seus pais, todos refugiados no país.
  7. Mariana Kotscho e Roberta Manreza – O YouTube retirou do ar o canal Papo de mãe, censurando 11 anos de trabalho das duas repórteres, com mais de mil reportagens. Dada a grita geral contra a evidente censura, com notas de repúdio da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP e da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), entre muitas outras entidades, o canal foi reabilitado pelo YouTube 24 horas depois. Mas já tinha encontrado abrigo no UOL, que aceitou publicar os cinco vídeos que inspiraram a censura. Esses vídeos continham trechos de uma audiência de custódia na Vara da Família da Freguesia do Ó, em São Paulo, em que o juiz Rodrigo de Azevedo Costa insulta a mulher do casal, vítima de violência doméstica, e afirma que não se importa com a Lei Maria da Penha. Algumas declarações de Azevedo Costa nos vídeos: “Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”; “Qualquer coisinha vira Lei Maria da Penha. É muito chato”; “Ele [o ex-marido] pode ser um figo podre, mas foi uma escolha sua e você não tem mais 12 anos”. A Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo está apurando os fatos.
  8. Paulo Henrique Amorim – Em vida, sofreu mais de 120 ações cíveis e 20 ações criminais. Sua viúva está lidando com 30 ações cíveis contra o espólio, que pedem indenizações totalizando R$ 2 milhões.
  9. Schirlei Alves e The Intercept Brasil – A jornalista e o TIB estão sendo processados, em segredo de justiça, pelo juiz Rudson Matos e pelo promotor Tiago Carriço de Oliveira, de Santa Catarina, por terem divulgado, em vídeo, trechos da audiência do caso Mariana Ferrer, jovem estuprada por um empresário local em 2018. Os vídeos mostram a violência psicológica a que Ferrer foi submetida pelo advogado do empresário, sem que o juiz e o promotor sequer tentassem coibir o abuso. Uma juíza substituta da 3a Vara Cível da Comarca de Florianópolis não apenas acatou a ação impetrada pelos dois contra a jornalista e o veículo, como determinou ao TIB a reedição dos vídeos, sob pena de multa diária. Por “danos morais”, o juiz pede R$ 450 mil de indenização e o promotor quer R$ 300 mil.


* Leda Beck é jornalista associada à APJor. Colaboraram Lia Ribeiro Dias e Adriana do Amaral, também jornalistas associadas à APJor.



As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Leda Beck

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