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Ceci Juruá: Obra de Paulo Cannabrava, "A Nova Roma" é indispensável para entender o Brasil

"Se é verdade que o verdadeiro amor exige conhecer, cada um dos brasileiros que pensa ou declara amar o país precisa ler este livro precioso"
Ceci Juruá
Diálogos do Sul
Rio de Janeiro (RJ)

Tradução:

Três livros chamaram minha atenção durante as recentes e bem modestas comemorações do Bicentenário de nossa aguerrida Independência. 

Planos Para o Brasil, Projetos Para o Mundo: O novo imperialismo britânico e o processo de independência (1800-1831). Por José Jobson de Andrade Arruda. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2022.

A Nova Roma: Como os Estados Unidos se transformam numa Washington Imperial através da exploração da fé religiosa. Por Paulo Cannabrava Filho. São Paulo: Ed. Appris Ltda, 2022

Ideias em confronto: Embates pelo poder na Independência do Brasil (1808-1825). Por Cecilia Helena de Salles Oliveira. São Paulo: Todavia, 2022

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Planos Para o Brasil, Projetos Para o Mundo

Gaúcha e vivendo no Rio há 60 anos, conheço pouco o quadro de professores universitários paulistas. Foi há apenas 3 meses que escutei, pela primeira vez, a palavra do historiador e professor Jobson de ANDRADE ARRUDA em entrevista radiofônica. Tomei ciência então de sua obra recém lançada, “Planos para o Brasil”. Projetos para o mundo.

Positivamente impressionada com a qualidade das respostas do Prof. Arruda na entrevista citada encomendei este livro, uma obra que aborda assunto da nossa atualidade – a relação entre Brasil e o imperialismo britânico – e desvenda páginas ainda cinzentas de nossa história.

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Neste artigo, quero destacar duas peculiaridades ou particularidades desse livro: a análise da Convenção Secreta de 1807, entre Portugal e o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda, e o tratamento digno concedido à figura de D. João VI.

Uma Convenção Secreta assinada entre Portugal e o Reino Unido é tema desconhecido dos brasileiros não-historiadores. No livro de J. Arruda encontramos o texto integral desta Convenção, assinada por D. João VI e por representantes do Império Britânico, que tinha então Mr. Canning por Secretário de Estado para Assuntos Estrangeiros do Reino Unido. O alcance integral da Convenção parece não ter sido percebido de imediato pelas autoridades de Portugal, explica J.Arruda. Mas, acrescenta, é provável que no Reino Unido este documento tenha despertado o interesse de Mr. Canning. 

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O fato é que a Convenção Secreta foi conduzida pelos ingleses com grande habilidade e centralizada em torno da hipótese de invasão de Portugal por tropas de Napoleão, hipótese muito provável, “obrigando Portugal a aceitar o provável como se fosse o certo” (…) Segundo o Prof. Arruda, o sucesso da estratégia elaborada por Canning estava ligada à ameaça ou à ocorrência da invasão de Portugal. Ficou então estipulado que, nesse caso, a Família Real portuguesa deveria abandonar Portugal e seguir para o Brasil. Uma solução considerada funcional tanto para evitar que “a esquadra portuguesa caísse em poder da França, como para propiciar à Inglaterra os recursos imensos de que seria capaz o mercado brasileiro”.

No que concerne D. João VI, há um grande número de brasileiros que o veem como bom governante que trouxe progresso, elevou o Brasil à condição de Reino Unido e nos legou uma herança urbanística e política de vulto. Mas há também, entre nós, as más línguas que o desprestigiam. 

Para o J. Arruda, D. João VI foi “um gestor bem formado (…) a brandura do Príncipe serviu, no mínimo, para dar um certo toque de democracia no regime absolutista lusitano. [Ainda] se a decisão de atravessar o oceano foi demoradamente pensada, e no último instante decidida, tão logo chegado à Bahia determinou a abertura dos portos brasileiros” (p. 126 e 127). Parece-me que este ponto-de-vista sobre D. João VI fica bem distante do tratamento concedido por certos autores, brasileiros ou ingleses, que ainda desprestigiam D. João VI e a herança política e cultural que recebemos dos lusitanos.

"Se é verdade que o verdadeiro amor exige conhecer, cada um dos brasileiros que pensa ou declara amar o país precisa ler este livro precioso"

Foto: Alexandre Coronato
É urgente desvendar os grilhões que podem advir do mau uso de religiões estranhas à cultura brasileira

A Nova Roma 

Obra indispensável para brasileiros desejosos de entender o movimento social e político do Brasil atual

Por conhecermos mal a própria sociedade em que vivemos, quase enfrentamos uma derrota que poderia ser trágica nas recentes eleições de outubro de 2022. É hora de pôr mãos à obra e aprofundar o conhecimento do Brasil atual. “A Nova Roma” é um livro de leitura quase obrigatória para todos que queiram aprofundar o conhecimento da atual cultura brasileira.

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Este livro é um estudo histórico vinculativo do novo sistema imperial americano cuja utilização pragmática da religião coesiona as suas formas de dominação…”, explica Tarso Genro no prefácio para “A Nova Roma”. Sim, o livro nos oferece um riquíssimo conteúdo sobre as modernas formas de dominação política que utilizam, como suporte central, a exploração da fé religiosa. É um livro, que resulta de longo e intenso trabalho de pesquisa e desvenda detalhes do processo de penetração político-ideológica de grande número de religiões e seitas vindas do Norte, especialmente dos Estados Unidos da América. 

Em “A Nova Roma” somos informados dos pormenores do desembarque e atuação, no Brasil, de calvinistas, presbiterianos, mórmons, evangélicos, batistas, testemunhas de Jeová, apóstolos da Universal do Reino de Deus, e muitos outras ramos e grupos ditos religiosos atuando como missionários e porta-vozes de um Deus ou de distintos e variados deuses. 

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Os números são impactantes, os objetivos não são dissimulados. Segundo o autor, por exemplo, em 1984 havia 12 milhões de pastores norte-americanos atuando fora dos Estados Unidos, e desse total pouco mais de 80% encontravam-se na América Latina. Sendo assim, podemos pensar que aproximadamente 2% da nossa população é constituída atualmente por pastores norte-americanos não católicos. No caso específico do Brasil, o novo mapa das religiões (Fundação Getúlio Vargas/2011) estimou que os católicos no Brasil passaram de 75% a 50%, no espaço de duas décadas. Foi uma mudança de grande porte, em modesto espaço de tempo. 

Mas a questão não é apenas numérica. Hoje há, no Congresso Nacional, uma bancada evangélica! Fazem política sem perder as vantagens de constituir um “agrupamento religioso”, o que lhes permite desfrutar de isenções tributárias, um privilégio considerável. 

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No Brasil, os vínculos entre os segmentos políticos e movimentos religiosos são claros. Republicanos, por exemplo, constituem um partido político ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, dispondo atualmente de 41 deputados federais e de 2 senadores da República no Congresso Nacional. Informação relevante diz respeito a um vice-presidente da República ter participado da fundação deste partido, em 2003 – o industrial mineiro José de Alencar. Além disto, esta é uma igreja globalizada, presente em todos os continentes à exceção da Austrália. 

De cada uma das igrejas ou seitas presentes no Brasil, o livro do jornalista Paulo Cannabrava Filho oferece pormenores históricos e as linhas básicas de sua atuação em nosso país. Trata-se, portanto, de obra que oferece possibilidades de um estudo rigoroso, minucioso, à disposição de pesquisadores que queiram estar atualizados sobre as recentes transformações culturais/políticas na sociedade brasileira.

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Considero que esta obra foi um presente de valor inestimável para todos nós, diante da (modesta) comemoração do Bicentenário em 2022. Se é verdade, como dizem os filósofos, que o verdadeiro amor exige conhecer, cada um dos brasileiros que pensa ou declara amar o Brasil precisa ler esta obra preciosa, “A Nova Roma”. Porque ela nos atualiza em matéria de comportamento ético e ideologia dos brasileiros e nos adverte, ainda, sobre os riscos vinculados à atual globalização imperial

Festejamos em 2022-2023 o Bicentenário da Independência do Brasil sabendo que ela, a independência, corre riscos. Há cobiça em torno das riquezas naturais e do litoral marítimo brasileiros. Manter e aprofundar a independência de nossa Pátria exige compromisso de cada um de nós, brasileiros, exige permanente vigília sobre os pilares imateriais da soberania do Estado nacional. A reconstrução da Pátria Soberana, nos termos anteriores ao golpe de abril de 1964, é tarefa urgente e obrigação prioritária das gerações mais jovens. Para isto é urgente desvendar os grilhões que podem advir do mau uso de religiões estranhas à nossa cultura. 

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Ideias em confronto

Explica a autora desta obra, a Profa. Cecilia H. de Salles Oliveira, que o tema da Independência, cujo bicentenário comemoramos em 2022-2023, é um tema objeto de várias vertentes interpretativas, nesses dois séculos. No entanto, ela nos propõe apresentar entendimentos da Independência que se diferenciam daquilo que podemos chamar de “saber já sabido”. (p.12)

Já naquela época a Amazônia era muito disputada. A começar pelo Maranhão, onde o apoio à corte do Rio de Janeiro só foi obtido depois do bombardeio da capital, São Luís, pela esquadra de Lord Cochrane, mercenário inglês contratado primeiro por chilenos e depois por brasileiros partidários da Independência em seus países.

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No Brasil ele foi elevado à categoria de Almirante e homenageado com o título de Marquês do Maranhão. Um título que até hoje gera controvérsias na sociedade do Maranhão, tendo em vista uma espécie de “rapina” operada pelas tropas inglesas que acompanharam Lord Cochrane. A respeito do processo de adesão a D. Pedro I, nas províncias do Norte, conta-nos a prof. Cecilia Oliveira:

Para muitos políticos e produtores da região [Norte], o mercado europeu, intermediado por negociantes de Lisboa e do Porto, era muito mais promissor para os produtos gerados pelo extrativismo do que as conexões com o Rio. Em razão desses vínculos com Portugal, lideranças do Grão-Pará imaginavam que as Cortes e o governo constitucional em Lisboa enviariam tropas e navios que pudessem sustentar a guerra e garantir uma vitória contra seus oponentes. Mas esse auxílio não se concretizou. (p.152)

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Foi imenso o campo das ideias em confronto, principalmente entre 1820/21, quando D. Pedro I assumiu a posição de Príncipe Regente, em 1839-1840, por ocasião do movimento pela maioridade do herdeiro do trono brasileiro, através do qual D. Pedro II foi declarado Imperador do Brasil aos 15 anos de idade. Destaco aqui, apenas como exemplo, a questão da data para fins de celebração deste evento. 

Há, no pensamento da autora, um detalhe que merece destaque. Trata-se da advertência quanto ao sentido que pode ser dado à palavra “história”. Segundo a Prof. Cecilia, o termo “história” se refere tanto aos acontecimentos que ocorrem ao longo do tempo, quanto às narrativas sobre esses acontecimentos. Daí, eu digo, a possibilidade de se construir um número bastante extenso de versões ditas históricas, delimitadas a partir de um período temporal ou de fatos de significado particular. 

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Para a autora desta obra, as duas dimensões da palavra “história” se entrelaçam e não se distinguem, necessariamente, porque “os acontecimentos do passado chegaram até nós pelas memórias de testemunhas que os interpretaram e registraram para a posteridade”.

Em matéria de datas para comemoração da Independência do Brasil, inicialmente (século XIX) o calendário de festejos incluiu: 25 de março, dia da Constituiçãodia da coroação de D. Pedro, (p. 208). Já nas décadas de minha infância e adolescência, datas cívicas eram três outras: 21 de abril, o suplício de TiradentesProclamação da República

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Em síntese, “Ideias em Confronto” é um livro essencial à compreensão da importância do evento cujo bicentenário estamos comemorando nesses anos de 2022 e 2023. Principalmente nesta etapa em que os mais jovens, desinformados e globalizados, parecem atribuir pouca importância à categoria “independência nacional”. Permito-me reafirmar aqui a importância de nossa independência em 1822, este é um tema sobre o qual não devemos alimentar dúvidas. Não pode haver hesitação de nossa parte quanto à grandiosidade daquela obra política, de importância incomensurável em qualquer narrativa que se queira elaborar a respeito do passado e do presente do Brasil. 

Termino com as palavras da prof. Cecilia H. de S. Oliveira:

… compreender o passado é mais do que interrogar testemunhos, vestígios e memórias. É complicar o que parece simples, mantendo vivas a atenção sobre as teias, muitas vezes invisíveis, que prendem a história à política. É desvendar caminhos que possam iluminar no presente e no futuro outras independências. (p.223)

RJ, fevereiro de 2023

Cecí Juruá | Economista e colunista na Diálogos do Sul.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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