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Celso Amorim: Agressão à Venezuela pode sublevar a América como nem Che conseguiu

Para o ex-ministro, a invocação do TIAR é totalmente ilegal e o próprio tratado é fruto de um contexto de Guerra Fria que já não “tem cabimento”
Vanessa Martina-Silva
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

A notícia de que os governos de Brasil e Colômbia invocaram a ativação do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) contra a Venezuela gerou muita reflexão e especulação quanto aos efeitos de uma possível intervenção armada no país vizinho. Para compreender melhor esse cenário, a Revista Diálogos do Sul conversou com Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa durante os governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, respectivamente.

“Seria totalmente ilegal”. “Eu vejo com muita preocupação”. “É muito grave, é gravíssimo”, “é um risco muito grande”. O tom usado por Amorim, um homem que, por sua formação intelectual e prática profissional, é comedido e cuidadoso com as palavras, foi de perplexidade e, em alguns momentos, de indignação. A conversa foi realizada por telefone na noite de quinta-feira (12), ainda no calor dos acontecimentos, e durou cerca de meia hora.  

Amorim não considera que uma agressão militar contra a Venezuela de fato esteja sobre a mesa de Estados Unidos ou Brasil, mas tampouco descarta a possibilidade, já que uma ação como essa, se bem sucedida, faria com que Trump tivesse o petróleo que almeja e Bolsonaro e seu homólogo colombiano Iván Duque poderiam — pretensamente — melhorar o desempenho de seus governos de extrema-direita diante da opinião pública interna de seus países.

“Não se trata de democracia, não vamos ter ilusões. Ninguém está preocupado com a democracia na Arábia Saudita, a preocupação é o petróleo”, ressalta.

Para o ex-ministro, a invocação do TIAR é totalmente ilegal e o próprio tratado é fruto de um contexto de Guerra Fria que já não “tem cabimento”

EBC
Ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa dos governos Lula e Dilma, respectivamente

Por outro lado, uma guerra, “você sabe como começa, mas não como acaba”, já que a resistência no país caribenho, em um caso como esse, seria grande. Além disso, “pode ser o incentivo para outros movimentos. […] Através de uma invasão na Venezuela, você pode ter aquilo que Guevara tentou e não conseguiu”, diz, lembrando a malfadada ação de Che Guevara na região, que tentou criar focos de guerrilha pelo continente como resistência aos governos ditatoriais na América do Sul. 

Para o ex-ministro, a invocação do TIAR é totalmente ilegal e o próprio tratado é fruto de um contexto de Guerra Fria que já não “tem nenhum cabimento na situação atual”. 

A hipótese considerada por ele mais razoável é de que o mecanismo seja usado para aplicar mais sanções contra o país governado por Nicolás Maduro — o que chegou a ser apontado por pessoas próximas a Juan Guaidó, o oposicionista que se autoproclamou presidente interino da Venezuela, como o real objetivo da ação. Assim, comunicações e transportes também poderiam ser afetados, além das questões econômicas que já estão sob intervenção dos Estados Unidos. 

“As sanções têm um efeito igualmente devastador. Eu acho que por isso mesmo têm que ser condenadas”, ressalta o ministro. 

Quanto à ação brasileira, o ex-ministro da Defesa diz acreditar no bom senso do Alto Comando do Exército que, em suas palavras, “tem tomado atitudes muito cautelosas, evitando se envolver na política ideológica do governo e a contaminação por ela”, mas no caso de uma hesitação desse setor do governo, teríamos “o que faltava para completar o quadro de absoluta extrema-direita, semelhante ao que havia na Europa nos anos 1930”.

Por considerar a conversa importante para a compreensão do xadrez envolvendo a Venezuela, reproduzimos, abaixo, os melhores momentos da entrevista:

Confira:

Diálogos do Sul: Uma das questões que mais foram faladas até agora diz respeito ao risco de uma guerra feita por uma coalizão internacional dos países da região para agredir a Venezuela, que já não é parte do TIAR desde 2013. Quão efetivo e real é esse risco?

Seria totalmente ilegal, vamos começar do ponto de vista da normatividade internacional, porque só quem pode autorizar o uso da força — a não ser em caso de legítima defesa, que não é o que se coloca —, é Conselho de Segurança das Nações Unidas, qualquer outra ação de força é ilegal. Eu acho que é ilegal até do ponto de vista do próprio TIAR. 

Quando ele foi feito, era prevendo a possibilidade de um ataque armado externo e, dentro da filosofia da OTAN de que o ataque a um é um ataque a todos. Isso não tem nenhum cabimento na situação atual.

A não ser que inventem que a Venezuela invadiu a Colômbia, mas, mesmo assim, é discutível porque não é um ataque que venha de fora da região.

Mesmo no auge da Guerra Fria, quando os Estados Unidos patrocinaram golpes no Brasil, Chile, etc, ou agiram de maneira ilegal, eles nunca invocaram o TIAR para isso porque não tinham condições de fazê-lo.

Acho que é totalmente ilegal do ponto de vista das Nações Unidas e do ponto de vista do próprio TIAR, que é um tratado que não deveria mais ser invocado e que, na minha opinião, já morreu por obsolescência. A única vez que ele poderia ter sido usado nos últimos 50 anos foi no caso da Guerra das Malvinas, porque houve um ataque de fora da região, mas obviamente não foi invocado, porque os Estados Unidos apoiaram a Inglaterra. Eu acho que o tratado já morreu. Se nas Malvinas ele não pôde ser usado, é sinal de que já morreu.

O México saiu do tratado em um governo que não era de esquerda. O TIAR é uma coisa velha, sem cabimento. Ninguém mais imaginava que ele pudesse ser invocado. 

O que há é um grupo de pessoas e governos de extrema-direita querendo reviver um documento da Guerra Fria. Mesmo naquela época eu acho que era errado, mas hoje em dia não tem nenhum cabimento porque não tem ninguém de fora da região ameaçando ninguém daqui, de maneira nenhuma. Mesmo que não a concretizem, a simples ameaça já é um fator de perturbação imenso na região.

Ação armada

O que eu temo, para falar a verdade — não quero dizer que afasto todo o risco de ataque armado, porque coisas ilegais já foram cometidas. A própria OTAN, quando atacou a Sérvia por causa de Kosovo, agiu ilegalmente porque não havia autorização do Conselho de Segurança, então não é impossível — que se isso acontecer, seria absolutamente terrível para a América Latina e para a América do Sul e, neste caso, seria a primeira vez que haveria uma intervenção mais direta na região. No Caribe houve casos como Granada, uma tentativa em Cuba, mas seria o primeiro caso na história, que eu me lembre. Seria algo absolutamente terrível.

Isso não quer dizer que não possa ser tentado, que não haja rufar de tambores. Tudo isso é muito negativo. 

Pelo que eu entendi, não foi nem pedido pelos EUA, que apoiaram, mas foi Colômbia e Brasil, junto com o Guaidó, que com seu representante na OEA, pediram a convocação do TIAR, porque são países — no caso do Brasil, particularmente, para os quais um conflito externo poderia ajudar os governos internamente. 

O Brasil quase fez isso quando teve aquele situação da pretensa ajuda humanitária [em fevereiro deste ano]. E só não fez porque os militares não deixaram, mas a gente esteve à beira de uma guerra realmente com a Venezuela.

Eu temo que se houver uma coisa mais forte, os militares fiquem na dúvida e poderemos ter uma situação muito grave, que é o que faltava para completar o quadro de absoluta extrema-direita, semelhante ao que havia na Europa nos anos 1930.

Sanções econômicas

Eu vejo com imensa preocupação. Dito isso tudo, eu acho que o mais provável é que eles tentem usar a convocação do TIAR para sanções contra a Venezuela, que é o que eles fizeram com Cuba em 1962. As sanções têm um efeito igualmente devastador. Eu acho que por isso mesmo têm que ser condenadas. 

Eu não necessariamente aprovo tudo o que o governo Maduro fez ou deixou de fazer, mas já assinei o manifesto porque acho que esse é um risco muito grande, tanto o ataque armado quanto as sanções.

O que encontrei de mais próximo a esse caso, foi a invasão da República Dominicana, em 1965, quando 45 mil soldados estadunidenses e brasileiros atacaram seis mil dominicanos. Temos aí alguns elementos. O primeiro é que a Venezuela tem um Exército mais forte que dominicano. O outro é que o conflito tem potencial de atingir uma escala mais global, já que a Rússia pode  vir a ter alguma participação e a Colômbia, que está diretamente vinculada à Otan é um ator fundamental nesse caso. Como o senhor avalia a situação?

Eu acho que isso pode acontecer, mas não posso ter certeza. A tradição do [presidente dos Estados Unidos Donald] Trump tem sido chegar à beira de um ataque armado e depois recuar. A saída de John Bolton, que era o homem mais linha dura do governo, também indicaria que é improvável que os EUA entrem em uma aventura. 

Agora eu acho que pode ter uma autorização para que Colômbia ou Brasil funcionem como uma espécie de instrumento desse desejo norte-americano de colocar a mão no petróleo venezuelano. Não se trata de democracia, não vamos ter ilusões. Ninguém está preocupado com a democracia na Arábia Saudita, a preocupação é o petróleo. Do ponto de vista de Colômbia e Brasil, [uma ação assim] reforça governos de extrema-direita internamente.

Sobre a República Dominicana, a OEA foi extremamente injusta e teria que ser condenada, ela entrou erradamente [no país] porque precisaria da autorização do Conselho de Segurança [da ONU] e não teve. Mas aquela força entrou por uma situação que já havia, para impedir que houvesse uma mudança. É muito diferente de entrar para derrubar um governo — eu não estou defendendo o que aconteceu na República Dominicana —, mas tanto foi assim que ocorreu por meio da OEA, que não é um instrumento de defesa, não é um instrumento de uso militar, como é o TIAR.

Atuação brasileira pela paz

Essa é uma coisa totalmente descabida, perigosa porque coloca o Brasil no risco de uma guerra. Em uma uma demonstração na fronteira, pode ter um tiro, que pode facilmente escalar para uma coisa diferente e isso será gravíssimo para a América do Sul, isso nunca ocorreu.

O que nós sempre fizemos? Trabalhamos pela paz, pelo diálogo, independentemente de gostar ou não do governo. Paz entre Venezuela e Colômbia, por exemplo, ou quando a Colômbia atacou o Equador — [atacou] as tropas das FARC, mas em território equatoriano —, o Brasil atuou para uma resolução pacífica.

Nisso sinto que estamos longe. Ao invés de trabalhar contra a guerra, estamos trabalhando pelo conflito, pela guerra, e isso é desesperador. Minha esperança real, no caso do Brasil — eu não sei o que vai acontecer no mundo, porque como você disse, há outros fatores, não sei até que ponto a Rússia se envolveria nisso, mas é possível, porque ela tem interesses de várias naturezas. 

Qual seria a reação do Conselho de Segurança, da Assembleia Geral, isso tudo — mas no Brasil, tenho esperança no bom senso dos militares, principalmente do Alto Comando das Forças Armadas nesse momento. porque isso seria uma loucura sem limites. Nós já cometemos várias loucuras, mas até agora as loucuras foram de palavras, atos. Atacar outro país do continente ou permitir, votar para o ataque, é algo que os livros de história — para sempre, para sempre — definiriam o Brasil como definidor de uma Guerra. Não adianta dizer que evocou o TIAR porque a Venezuela não está ameaçando ninguém. Você pode dizer: “os refugiados criam problemas”, está bem, criam problemas, mas são problemas humanitários, não de defesa.

Não existe ataque armado externo e menos ainda sem autorização do Conselho de Segurança. Então tanto do ponto de vista legal, formal, como do ponto de vista do conteúdo, seria um ato de guerra que seria iniciado e isso pesaria para sempre na história do Brasil.

O Brasil é um país que se jacta de ter dez vizinhos e não ter tido nenhuma guerra aqui na região nos últimos 150 anos. Estaríamos passando de ser provedor de paz que fomos nos governos Lula, FHC, Sarney, a fomentadores de guerra, o que é muito grave.

Bolsonaro tem uma retórica agressiva, talvez jogando para a torcida, como Trump, e foi o governo brasileiro que pediu a ativação do tratado. Já vimos militares dando um passo atrás [forçando o presidente a dar um passo atrás, corrige o chanceler], o senhor acha que essa situação pode aumentar essa tensão entre Bolsonaro e o vice-presidente, Hamilton Mourão?

Eu não falaria do Mourão. Não sei o que ele pensa porque é vice-presidente, exerce cargo político e eu não vou fazer julgamento sobre ele. Eu tenho mais confiança, neste aspecto, no alto Comando das Forças Armadas, muito especialmente o Alto Comando do Exército, incluindo o Ministro da Defesa, que tem tomado atitudes muito cautelosas e tem evitado se envolver na política ideológica do governo, evitando a contaminação por essa batalha ideológica.

Eu suponho que vão agir da mesma maneira, mas por que vi um risco maior neste caso?

Porque no outro caso não havia nenhum amparo internacional, neste, se você analisar atentamente, também não terá. Mas se houver uma votação do TIAR, que é um tratado do qual o Brasil ainda faz parte, pode haver uma tentativa de persuasão de que isso se justifique. E estaremos entrando em um terreno desconhecido e muito grave. 

Eu espero que o bom senso prevaleça — pode ser que o próprio Mourão possa ter alguma atuação — e eles consigam fazer com que Bolsonaro pare antes disso. Mas se houver uma votação no TIAR, mesmo que o Brasil não entre, se entrar outro [país], vamos ter uma situação muito grave — não é muito grave não — é gravíssima, gravíssima. Uma intervenção externa armada na região como nunca houve. 

Não tem nada parecido com isso na nossa região. Fico pasmo que estejamos atraindo esse tipo de intervenção na nossa região ao invés de estar trabalhando com a paz. O Brasil deveria estar apoiando as iniciativas [de diálogo entre oposição e governo na Venezuela, lideradas pelo ex-presidente espanhol José Luis Rodríguez] Zapatero. Lamento muito que isso não esteja ocorrendo. 

Acho lamentável, triste, é a maior crise pela qual a política externa do Brasil já passou nos últimos 60 ou 70 anos. Desde o infeliz voto de sanções contra Cuba durante o governo militar e, mesmo assim, não tinha uma consequência para nós tão imediata. E contra Cuba, foram sanções e não ações militares. 

Eles podem legitimar o caminho de impor mais sanções americanas, ampliar as sanções e isso tem um efeito devastador — não é a mesma coisa que uma guerra, obviamente, — mas tem efeitos igualmente devastadores, como pude constatar acompanhando de perto a situação do Iraque, da antiga Iugoslávia. Fui embaixador da ONU no governo Fernando Henrique, acompanhei a situação muito de perto.

A Alta Comissária da ONU para os Direitos humanos, Michelle Bachelet, fez recentemente um relatório que está sendo muito questionado na Venezuela. O senhor considera que, de alguma forma, esse material ajudou a dar uma nova incendiada no tema?

Eu acho que eles podem até usar o relatório como pretexto, mas não há, em hipótese alguma, justificativa para uma ação militar. Veja só, a Bachelet pertence ao sistema da ONU. Não é, mas se fosse o caso de invocar algum princípio da ONU, seria o Conselho de Segurança, não o TIAR. É ilegal e impróprio de ponta a ponta. Ilegal nos procedimentos, no conteúdo, na forma. O relatório da Bachelet, que eu li e é muito crítico, também menciona como as sanções — de leve, mas menciona — estão agravando a situação na Venezuela. Em momento algum ele sugere uma intervenção armada. Isso é uma deformação.

Basta olhar para o mapa e em vários lugares do mundo você verá governos que não são democráticos. Inclusive governos aliados dos Estados Unidos que apedrejam mulheres, não permitem a existência de outro partido…

Veja bem, na Venezuela pode estar havendo conflitos, eu não estou defendendo a maneira de o governo venezuelano, friso isso, lidar com o assunto, mas Juan Guaidó está andando por lá e não é preso. Então, não tem comparação. O maior preso político na América Latina e no mundo hoje é o ex-presidente Lula, não é o Guaidó nem nenhum seguidor dele. E não passaria pela cabeça de ninguém no Brasil, nem na oposição, pedir uma intervenção armada de um país de fora da região para soltar Lula. É uma loucura, é descabido.

Essas coisas você começa e não sabe como acaba. Porque não pense que a resistência na Venezuela vai ser pequena. E veja bem: se começar uma resistência na Venezuela, isso pode ser o incentivo para outros movimentos, em outros países você pode ter aquilo que [Che] Guevara tentou e não conseguiu, você pode, através de uma invasão na Venezuela, desencadear um movimento de insurgência, que pode não ganhar nem nada, mas pode ser permanente, vamos viver uma situação muito difícil, não há ilusão quanto a isso. Esses governos de direita são transitórios, o sentimento contra uma ocupação norte-americana, que no fundo será isso, de uma maneira ou de outra, ele é muito forte nos povos, será um grande erro. Dá para aplicar isso à frase do diplomata francês [Charles-Maurice de] Talleyrand: “é pior que um crime, é um erro”. 

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Vanessa Martina-Silva Trabalha há mais de dez anos com produção diária de conteúdo, sendo sete para portais na internet e um em comunicação corporativa, além de frilas para revistas. Vem construindo carreira em veículos independentes, por acreditar na função social do jornalismo e no seu papel transformador, em contraposição à notícia-mercadoria. Fez coberturas internacionais, incluindo: Primárias na Argentina (2011), pós-golpe no Paraguai (2012), Eleições na Venezuela (com Hugo Chávez (2012) e Nicolás Maduro (2013)); implementação da Lei de Meios na Argentina (2012); eleições argentinas no primeiro e segundo turnos (2015).

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