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ToggleMais uma vez o mundo presencia a arrogância dos Estados Unidos. A utilização do poder de veto nas Organização das Nações Unidas (ONU) à proposta brasileira de abertura de corredores humanitários da Faixa de Gaza e a imediata revogação da ordem de evacuação dada por Israel, demonstra como esse privilégio consagrado na Carta da ONU é desproporcional, e sobretudo injusto, e revela como essa questão é preocupante, merecedora de atenção e reflexão por parte da comunidade internacional.
Esse privilégio, consagrado na Carta da ONU, confere a apenas cinco países (todos eles potências militares) um poder desproporcional que quase sempre é exercido de maneira unilateral, independentemente do consenso ou das opiniões da maioria dos Estados-membros: Reino Unido, Rússia, China, França e Estados Unidos.
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O governo brasileiro, preocupado com a situação desumana em que vivem milhões de pessoas na Faixa de Gaza, agravada pelos últimos acontecimentos; e buscando minimizar o sofrimento daqueles seres humanos apresentou uma proposta muito razoável, que qualquer pessoa em sã consciência não duvidaria em acatar, justamente pelo caráter humanitário. No entanto, mais uma vez, os Estados Unidos dizem, “em alto e bom som”, que não estão nem aí para o que pensam ou propõem outros Estados-membros da ONU. Como “todo poderoso”, e fiel protetor de Israel (porque tem interesses a defender no Oriente Médio), a nação norte-americana vetou a proposta, ainda que a maioria dos Membros do Conselho de Segurança tenha aprovado (além do próprio Brasil, Albânia, China, Equador, França, Gabão, Gana, Japão, Malta, Moçambique, Suíça, Emirados Árabes).
Fotos: ONU e Potus/Twitter
EUA defendem o “direito de defesa” por parte de Israel, mas não utilizam o mesmo critério com relação ao povo palestino
Manutenção da invasão
Com esse veto, os Estados Unidos continuam a dar seu aval ao sistemático descumprimento, por parte de Israel, das Resoluções da ONU a respeito do território palestino, uma questão profundamente preocupante e complexa, merecedora de profundas críticas, pois, a priori, revela a impunidade, uma vez que o Estado de Israel não enfrenta nenhuma consequência por esses descumprimentos. Fazer “vistas grossas” a essa impunidade não somente prejudica os esforços para resolver o conflito israelense-palestino, como, sobretudo, deixa patente que as nações poderosas podem ignorar o direito internacional sem enfrentar sanções.
Além da impunidade, esses descumprimentos das Resoluções por parte de Israel como, por exemplo, a 242 (que determina que Israel se retire dos territórios ocupados durante a Guerra dos Seis Dias, incluindo a Cisjordânia, a Faixa de Gaza, Jerusalém Oriental e as Colinas de Golã) e a 338 (que reitera a necessidade da implementação da Resolução 242 e exige um cessar-fogo imediato), definidas respectivamente nos anos 1967 e 1973, ressaltam a ilegalidade da invasão israelense dos territórios palestinos, incluindo a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental. Esse descumprimento contínuo somente perpetua o sofrimento do povo palestino, jogando por terra suas perspectivas de autodeterminação e soberania.
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E os descumprimentos das Resoluções da ONU por parte de Israel ainda provocam mais consequências, como a estagnação do processo de paz, uma vez que a manutenção dessa invasão do território palestino pelos israelenses dificulta qualquer progresso significativo em direção à formação de dois Estados, proposta vista por uma ampla quantidade de pessoas como a melhor maneira de garantir a paz e a estabilidade naquela região.
Democracia (?) desproporcional
Cabe aqui, também, uma crítica muito contundente à mídia hegemônica do Ocidente, que dá pouca ou nenhuma importância a esse debate. Ano após ano, “a grande mídia” tem abordado a questão de modo muito superficial, mostrando-se parcial, uma vez que não realiza uma crítica contundente aos desrespeitos levados a cabo pelo Estado de Israel na questão envolvendo a Palestina. Essa parcialidade midiática é extremamente nociva e cria um imaginário na sociedade mundial majoritariamente favorável às grandes potências econômicas e/ou militares, como são os casos de Estados Unidos, Israel, por exemplo.
Em seu livro “Quem manda no Mundo?”, o linguista, filósofo e politólogo de origem judaica Noam Chomsky nos conta que a revista The New Republic, através do porta-voz Michael Kinsley, justificou que os ataques estadunidenses contra alvos civis são justificados “desde que satisfaçam a critérios pragmáticos […]”. Conforme Chomsky, essa mesma revista criticou, no entanto, a expansão militar chinesa em águas internacionais próximas à ilha de Okinawa, no Japão, não tendo feito o mesmo quando o país norte-americano converteu a referida ilha em “uma verdadeira base militar”.
É assim que os Estados Unidos defendem, por exemplo, o “direito de defesa” por parte de Israel, mas não utilizam o mesmo critério com relação ao povo palestino, que sofre há mais de 70 anos em consequência da obstinação israelense de transformar todo aquele território em área exclusiva do povo judeu (os judeus brancos, logicamente).
Retorno ao livro de Chomsky, que nos mostra ainda, por exemplo, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi transformada em uma força de intervenção liderada pelos estadunidenses. Isso, a meu ver, explica a desconfiança de Vladimir Putin quando receia que a Ucrânia, localizada na fronteira leste e nordeste de seu país, se torne parte dessa Organização, e em parte explica (embora não justifique) as precauções adotadas pelo presidente russo no posicionamento de suas tropas naquela região.
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Mas, voltando à ONU, é importante nos perguntarmos: que papel desempenham, afinal, os demais países, uma vez que, independentemente das demais nações, apenas Reino Unido, Rússia, China, França e Estados Unidos podem vetar quaisquer tentativas de resolução de problemas, caso não estejam conforme seus interesses? Me pergunto o que aconteceria se os demais países simplesmente se negassem a formar parte da Organização até que uma equidade fosse estabelecida. Afinal, não advogamos tanto pela democracia? E que democracia é essa, na ONU, onde, dos 193 Estados-membros, apenas cinco têm o poder de veto?
Penso que o mundo precisa se perguntar acerca disso e, sobretudo, exigir uma resposta contundente por parte deu seus governantes.
Verbena Córdula | Doutora em História e Comunicação no Mundo contemporâneo pela Universidad Complutense de Madrid. Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, Bahia.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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