“Gabriel Boric tem clara a necessidade de um grande bloco social e político pelas mudanças, profundamente democrático, capaz de compreender os desafios da ciência, da cultura, da educação e da integração latino-americana”, afirmou o escritor e ensaísta Patrício Rivas.
Autor do livro Chile, um longo setembro, o histórico dirigente do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), que combateu heroicamente a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), defende a coalizão contra o retrocesso.
Para o escritor, favorito às eleições presidenciais chilenas pelo movimento Aprovo a Dignidade, Gabriel Boric rompe com a lógica “herdeira do pinochetismo”. Rivas ressaltou que “as pessoas estão fartas do neoliberalismo” e de todo o mal causado.
“O Estado deve passar a cumprir um papel central como motor do desenvolvimento”, defendeu, frisando que “isso se dará, fundamentalmente, com uma política de tributação das grandes empresas nacionais e estrangeiras e a efetiva nacionalização de setores estratégicos como o lítio e o cobre”.
Winkiemedia
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Confira a entrevista
Diálogos do Sul — Qual a relação entre as mobilizações sociais e a conjuntura política atual, de Convenção Constituinte, e das próximas eleições presidenciais e parlamentares?
Patrício Rivas: As grandes mobilizações sociais mudaram o ciclo histórico e político do Chile. Esta é uma questão que precisa ser levada em conta e a sério porque muitas vezes não se tiram as devidas conclusões. Acredito que elas mudaram em quatro aspectos chaves da sociedade chilena.
Em primeiro lugar, se retomou a velha tradição chilena de capacidade de mobilização e luta nas ruas, que tem traços cidadãos, culturais e políticos. As pessoas voltaram às ruas depois de quase três décadas de um inverno colossal.
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O segundo traço é que o modelo político e econômico neoliberal chileno não foi capaz nem de conter, nem dar uma solução aos problemas, e somente os agravou. Há uma perda de confiança nas instituições políticas herdeiras do pinochetismo.
Em terceiro lugar, os partidos políticos de direita e inclusive os de centro não compreenderam o que estava se passando, e eu diria que nem a esquerda histórica chilena entendeu a situação. Quem compreendeu, antes dos demais, foi a esquerda social deste novo ciclo, o movimento estudantil e comunitário, gente que das mais diferentes maneiras havia resistido coletivamente ao confronto com o neoliberalismo.
Em quarto e último, o fato de que as pessoas se cansaram, ninguém aguentava mais. E me parece que esse conceito de cansaço é extremamente importante na política chilena atual: as pessoas não querem mais continuar vivendo da forma em que viviam, inclusive a classe média.
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O tema dos Pandora Papers é um elemento a mais na consciência cidadã e nas instituições políticas clássicas. Não é uma grande surpresa, porque, lamentavelmente, o presidente Piñera tem outros negócios e nunca foi muito claro a respeito dessa relação. O fato é que isso tudo vai além. Esta investigação é a confirmação definitiva do esgotamento do regime político chileno atual. Não dá mais, está esgotado.
Os neoliberais sempre propagandearam o Chile como um exemplo a ser seguido, que o caminho era a privatização, a desnacionalização, a retirada de direitos, o modelo preconizado pelo Consenso de Washington. Na prática, quais foram as consequências?
Acredito que os neoliberais têm razão de colocar o Chile como exemplo em termos do seu modelo, de sua visão de mundo. Mas se equivocaram porque acharam que não iria haver reação, não avaliaram, não viram que a sociedade estava acumulando e reagrupando forças. Por isso ficaram perplexos diante das mobilizações de 2019.
Outro ponto é que o modelo chileno funcionava enquanto a economia mundial e, também latino-americana, funcionava. Vale lembrar que na década de 2000, a América Latina viveu um tipo de pequena primavera, de crescimento, e inclusive em alguns países houve uma considerável diminuição da pobreza. Porém, esse não era um avanço estrutural.
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O neoliberalismo diz que jorra recursos abundantemente e os redistribui a todos, mas, na verdade, ele pinga por conta-gotas para muitos, só é mesmo abundante para bem poucos. É totalmente enganoso que todos vão receber algo.
Além disso, modelos neoliberais como o chileno e latino-americano são de dependência econômica e funcionam de uma forma bem clássica: quando a economia mundial está em expansão, exportam matérias-primas. E para que o modelo siga funcionando seria preciso comprimir ainda mais o salário dos trabalhadores. Isso só seria possível com uma terrível repressão, uma reação da ultradireita que hoje em dia no Chile não é mais possível. Então a derrubada do exemplo chileno tem a ver com o debilitamento do neoliberalismo mundial.
Qual o papel do Estado, do investimento público, nesta mudança de modelo dominado por cartéis transnacionais?
Acredito ser esta uma tarefa crucial, mas que não é fácil. Penso que as forças sociais e políticas que vêm recuperando a esquerda – tanto a nova como a esquerda histórica – podem iniciar um processo que não será concluído em um único período presidencial. Quatro anos não bastam para mudar a realidade chilena. Necessitaremos, portanto, um grande acordo, na linguagem mais clássica um grande bloco histórico pelas mudanças, que desse continuidade a estes anos. Porque há muitas coisas que são de lenta redefinição.
Os desafios de um governo de esquerda agora no Chile são ter uma ampla maioria para aprovar e aplicar os temas chaves, que são as leis trabalhistas; a passagem a uma segunda fase exportadora com maior valor agregado, a partir da industrialização; a descentralização do Estado, com o investimento na regionalização [atualmente todo o poder está extremamente concentrado em Santiago]; e uma melhor inserção do país na economia mundial. Mas para isso necessitamos um amplo acordo. Aí vem o paradoxo, porque na política não há nada que venha de graça. E o paradoxo é que teremos de fazer uma grande aliança em direção ao centro e isso pode nos debilitar pela esquerda. Agora se fazemos alianças somente pela esquerda, nos debilitamos pelo centro.
Há a necessidade de uma ampla frente.
Sim, uma frente muito ampla de forças. Pelo que escutei de Boric, em suas intervenções e escritos, ele tem claro esta necessidade. A questão não é fácil. Não é pelo fato de eu querer isso que seja conseguido, mas é este o desafio: um grande bloco social e político pelas mudanças, profundamente democrático, capaz de entender o mundo atual, capaz de compreender os desafios da ciência, da cultura, da educação, da integração latino-americana – que é chave.
Ao mesmo tempo, é preciso entender que, para jogar neste campo mundial, um país como o Chile necessita exercer um papel de liderança, ser protagonista no Cone Sul. Não pode depender das relações internacionais apenas do comércio e dos negócios, tem que fazer propostas políticas de integração. Todos esses fatores dialogam com outros elementos que precisamos levar em consideração: são dois tipos de opções políticas muito distintas que estão se confrontando no Peru; como evolui a situação da Argentina e o que vai ocorrer no Brasil. Porque este elenco do Cone Sul pode ser que tenha se distanciado, mas sempre está se olhando como referência e como reflexão.
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Aqui é necessário ter uma integração mais pragmática que a da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), mas é preciso que exista uma política de integração. Não somente por fatores que são evidentes, como o de comércio e de intercâmbio, a livre circulação das pessoas — isto é século 21. É também preciso ver como encarar os negócios no novo quadro político mundial, em que a disputa entre os Estados Unidos e a China vai ser cada vez mais forte. Como a América Latina vai baixar suas cartas e jogar sua força em um contexto mundial muito mais complexo.
Acredito que este é um tema central, que nos obriga a uma análise bem pormenorizada. Aqui o Estado tem que desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento deste novo modelo chileno, a democracia tem que ser o território. A educação é chave, pois mesmo que haja avanços, temos déficits que precisam ser sanados na questão da ciência e tecnologia. Não podemos continuar vendendo commodities ao mundo. Muitos governantes dizem isso, mas fazem pouco. E a questão da cultura, porque se não conseguimos chegar da política até a cultura, as mudanças, as aberturas de mentalidade ficam extremamente frágeis.
E como garantir os recursos para viabilizar mudanças tão profundas?
Acredito que há três passos que são fundamentais e que se complementam: o Estado deve melhorar as políticas de impostos, a tributação. Esta é uma questão importante porque há empresas nacionais e estrangeiras que pagam poucos impostos. Podemos aumentar consideravelmente os recursos do Estado somente melhorando a tributação, fazendo com que paguem os devidos impostos.
A segunda questão é que recursos estratégicos como o lítio, que o nosso país tem em abundância, devem ser parte de empresas estatais, ou da Corporação Nacional de Cobre do Chile (Codelco) ou de um novo projeto de recursos naturais chilenos. Isso é preciso iniciar, porque a questão do lítio é urgente. Da mesma forma que o cobre, obviamente.
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A terceira medida é melhorar a saúde pública. E aqui é preciso prestar muita atenção, porque com toda a precariedade da saúde pública na América Latina, pois sabemos que funciona mal, se não contássemos com seus serviços a pandemia de Covid teria sido ainda mais terrível. O coronavírus nos demonstrou que sem Estado a quantidade de mortos e a intensidade do sofrimento social teria sido muito maior.
Por isso temos que fortalecer a saúde, a educação, a ciência, a cultura e a construção de moradias populares, que com o aumento da migração tornou-se uma questão emergencial.
E o papel da industrialização dentro do novo projeto?
De posse dos recursos da tributação e das nacionalizações, precisamos melhorar e fortalecer o processo de industrialização da economia chilena. O Estado precisa ter uma centralidade que o faça motor da economia, da integração e do desenvolvimento das áreas chaves para o atendimento à população e para as quais precisamos de mais recursos.
É preciso maior eficácia. Há também um problema estrutural na economia latino-americana, a baixa produtividade. Ela tem a ver com a falta de incorporação de tecnologias avançadas, que podemos solucionar por meio de créditos estatais às pequenas e médias empresas. Da mesma forma, é preciso investir no aperfeiçoamento, por meio da especialização dos trabalhadores. Porque não há como aumentar a produtividade sem aumentar o desgaste do capital humano, por isso este é um tema essencial. As pessoas acabam trabalhando muito e produzindo pouco, porque as tecnologias são antiquadas e os modelos organizativos são bestiais, são super exploradores. Daí a relevância do momento que estamos vivendo e do novo modelo que vamos construir
Leonardo Wexell Severo, colaborador da Diálogos do Sul
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