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Chile: Para vitória da esquerda, com Boric, será preciso construir frente ampla com o centro

Para Patrício Rivas, dirigente do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), desafios de um governo de esquerda são ter maioria para aprovar temas chaves
Leonardo Wexell Severo
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

“Gabriel Boric tem clara a necessidade de um grande bloco social e político pelas mudanças, profundamente democrático, capaz de compreender os desafios da ciência, da cultura, da educação e da integração latino-americana”, afirmou o escritor e ensaísta Patrício Rivas.

Autor do livro Chile, um longo setembro, o histórico dirigente do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), que combateu heroicamente a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), defende a coalizão contra o retrocesso.

Para o escritor, favorito às eleições presidenciais chilenas pelo movimento Aprovo a Dignidade, Gabriel Boric rompe com a lógica “herdeira do pinochetismo”. Rivas ressaltou que “as pessoas estão fartas do neoliberalismo” e de todo o mal causado.

“O Estado deve passar a cumprir um papel central como motor do desenvolvimento”, defendeu, frisando que “isso se dará, fundamentalmente, com uma política de tributação das grandes empresas nacionais e estrangeiras e a efetiva nacionalização de setores estratégicos como o lítio e o cobre”.

Para Patrício Rivas, dirigente do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), desafios de um governo de esquerda são ter maioria para aprovar temas chaves

Winkiemedia
Oposicionista e candidato do Aprovo a Dignidade, Gabriel Boric lidera todas as pesquisas de intenção de voto à presidência do Chile

Confira a entrevista

Diálogos do Sul — Qual a relação entre as mobilizações sociais e a conjuntura política atual, de Convenção Constituinte, e das próximas eleições presidenciais e parlamentares?  

Patrício Rivas: As grandes mobilizações sociais mudaram o ciclo histórico e político do Chile. Esta é uma questão que precisa ser levada em conta e a sério porque muitas vezes não se tiram as devidas conclusões. Acredito que elas mudaram em quatro aspectos chaves da sociedade chilena.  

Em primeiro lugar, se retomou a velha tradição chilena de capacidade de mobilização e luta nas ruas, que tem traços cidadãos, culturais e políticos. As pessoas voltaram às ruas depois de quase três décadas de um inverno colossal. 

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O segundo traço é que o modelo político e econômico neoliberal chileno não foi capaz nem de conter, nem dar uma solução aos problemas, e somente os agravou. Há uma perda de confiança nas instituições políticas herdeiras do pinochetismo.  

Em terceiro lugar, os partidos políticos de direita e inclusive os de centro não compreenderam o que estava se passando, e eu diria que nem a esquerda histórica chilena entendeu a situação. Quem compreendeu, antes dos demais, foi a esquerda social deste novo ciclo, o movimento estudantil e comunitário, gente que das mais diferentes maneiras havia resistido coletivamente ao confronto com o neoliberalismo.  

Em quarto e último, o fato de que as pessoas se cansaram, ninguém aguentava mais. E me parece que esse conceito de cansaço é extremamente importante na política chilena atual: as pessoas não querem mais continuar vivendo da forma em que viviam, inclusive a classe média.  

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O tema dos Pandora Papers é um elemento a mais na consciência cidadã e nas instituições políticas clássicas. Não é uma grande surpresa, porque, lamentavelmente, o presidente Piñera tem outros negócios e nunca foi muito claro a respeito dessa relação. O fato é que isso tudo vai além. Esta investigação é a confirmação definitiva do esgotamento do regime político chileno atual. Não dá mais, está esgotado.   

Os neoliberais sempre propagandearam o Chile como um exemplo a ser seguido, que o caminho era a privatização, a desnacionalização, a retirada de direitos, o modelo preconizado pelo Consenso de Washington. Na prática, quais foram as consequências?  

Acredito que os neoliberais têm razão de colocar o Chile como exemplo em termos do seu modelo, de sua visão de mundo. Mas se equivocaram porque acharam que não iria haver reação, não avaliaram, não viram que a sociedade estava acumulando e reagrupando forças. Por isso ficaram perplexos diante das mobilizações de 2019.  

Outro ponto é que o modelo chileno funcionava enquanto a economia mundial e, também latino-americana, funcionava. Vale lembrar que na década de 2000, a América Latina viveu um tipo de pequena primavera, de crescimento, e inclusive em alguns países houve uma considerável diminuição da pobreza. Porém, esse não era um avanço estrutural.  

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O neoliberalismo diz que jorra recursos abundantemente e os redistribui a todos, mas, na verdade, ele pinga por conta-gotas para muitos, só é mesmo abundante para bem poucos. É totalmente enganoso que todos vão receber algo.  

Além disso, modelos neoliberais como o chileno e latino-americano são de dependência econômica e funcionam de uma forma bem clássica: quando a economia mundial está em expansão, exportam matérias-primas. E para que o modelo siga funcionando seria preciso comprimir ainda mais o salário dos trabalhadores. Isso só seria possível com uma terrível repressão, uma reação da ultradireita que hoje em dia no Chile não é mais possível. Então a derrubada do exemplo chileno tem a ver com o debilitamento do neoliberalismo mundial.  

Qual o papel do Estado, do investimento público, nesta mudança de modelo dominado por cartéis transnacionais?  

Acredito ser esta uma tarefa crucial, mas que não é fácil. Penso que as forças sociais e políticas que vêm recuperando a esquerda – tanto a nova como a esquerda histórica – podem iniciar um processo que não será concluído em um único período presidencial. Quatro anos não bastam para mudar a realidade chilena. Necessitaremos, portanto, um grande acordo, na linguagem mais clássica um grande bloco histórico pelas mudanças, que desse continuidade a estes anos. Porque há muitas coisas que são de lenta redefinição.  

Os desafios de um governo de esquerda agora no Chile são ter uma ampla maioria para aprovar e aplicar os temas chaves, que são as leis trabalhistas; a passagem a uma segunda fase exportadora com maior valor agregado, a partir da industrialização; a descentralização do Estado, com o investimento na regionalização [atualmente todo o poder está extremamente concentrado em Santiago]; e uma melhor inserção do país na economia mundial. Mas para isso necessitamos um amplo acordo. Aí vem o paradoxo, porque na política não há nada que venha de graça. E o paradoxo é que teremos de fazer uma grande aliança em direção ao centro e isso pode nos debilitar pela esquerda. Agora se fazemos alianças somente pela esquerda, nos debilitamos pelo centro. 

Há a necessidade de uma ampla frente.  

Sim, uma frente muito ampla de forças. Pelo que escutei de Boric, em suas intervenções e escritos, ele tem claro esta necessidade. A questão não é fácil. Não é pelo fato de eu querer isso que seja conseguido, mas é este o desafio: um grande bloco social e político pelas mudanças, profundamente democrático, capaz de entender o mundo atual, capaz de compreender os desafios da ciência, da cultura, da educação, da integração latino-americana – que é chave.  

Ao mesmo tempo, é preciso entender que, para jogar neste campo mundial, um país como o Chile necessita exercer um papel de liderança, ser protagonista no Cone Sul. Não pode depender das relações internacionais apenas do comércio e dos negócios, tem que fazer propostas políticas de integração. Todos esses fatores dialogam com outros elementos que precisamos levar em consideração: são dois tipos de opções políticas muito distintas que estão se confrontando no Peru; como evolui a situação da Argentina e o que vai ocorrer no Brasil. Porque este elenco do Cone Sul pode ser que tenha se distanciado, mas sempre está se olhando como referência e como reflexão.  

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Aqui é necessário ter uma integração mais pragmática que a da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), mas é preciso que exista uma política de integração. Não somente por fatores que são evidentes, como o de comércio e de intercâmbio, a livre circulação das pessoas — isto é século 21. É também preciso ver como encarar os negócios no novo quadro político mundial, em que a disputa entre os Estados Unidos e a China vai ser cada vez mais forte. Como a América Latina vai baixar suas cartas e jogar sua força em um contexto mundial muito mais complexo.  

Acredito que este é um tema central, que nos obriga a uma análise bem pormenorizada. Aqui o Estado tem que desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento deste novo modelo chileno, a democracia tem que ser o território. A educação é chave, pois mesmo que haja avanços, temos déficits que precisam ser sanados na questão da ciência e tecnologia. Não podemos continuar vendendo commodities ao mundo. Muitos governantes dizem isso, mas fazem pouco. E a questão da cultura, porque se não conseguimos chegar da política até a cultura, as mudanças, as aberturas de mentalidade ficam extremamente frágeis.

E como garantir os recursos para viabilizar mudanças tão profundas?   

Acredito que há três passos que são fundamentais e que se complementam: o Estado deve melhorar as políticas de impostos, a tributação. Esta é uma questão importante porque há empresas nacionais e estrangeiras que pagam poucos impostos. Podemos aumentar consideravelmente os recursos do Estado somente melhorando a tributação, fazendo com que paguem os devidos impostos.  

A segunda questão é que recursos estratégicos como o lítio, que o nosso país tem em abundância, devem ser parte de empresas estatais, ou da Corporação Nacional de Cobre do Chile (Codelco) ou de um novo projeto de recursos naturais chilenos. Isso é preciso iniciar, porque a questão do lítio é urgente. Da mesma forma que o cobre, obviamente. 

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A terceira medida é melhorar a saúde pública. E aqui é preciso prestar muita atenção, porque com toda a precariedade da saúde pública na América Latina, pois sabemos que funciona mal, se não contássemos com seus serviços a pandemia de Covid teria sido ainda mais terrível. O coronavírus nos demonstrou que sem Estado a quantidade de mortos e a intensidade do sofrimento social teria sido muito maior.

Por isso temos que fortalecer a saúde, a educação, a ciência, a cultura e a construção de moradias populares, que com o aumento da migração tornou-se uma questão emergencial.

E o papel da industrialização dentro do novo projeto?

De posse dos recursos da tributação e das nacionalizações, precisamos melhorar e fortalecer o processo de industrialização da economia chilena. O Estado precisa ter uma centralidade que o faça motor da economia, da integração e do desenvolvimento das áreas chaves para o atendimento à população e para as quais precisamos de mais recursos.  

É preciso maior eficácia. Há também um problema estrutural na economia latino-americana, a baixa produtividade. Ela tem a ver com a falta de incorporação de tecnologias avançadas, que podemos solucionar por meio de créditos estatais às pequenas e médias empresas. Da mesma forma, é preciso investir no aperfeiçoamento, por meio da especialização dos trabalhadores. Porque não há como aumentar a produtividade sem aumentar o desgaste do capital humano, por isso este é um tema essencial. As pessoas acabam trabalhando muito e produzindo pouco, porque as tecnologias são antiquadas e os modelos organizativos são bestiais, são super exploradores. Daí a relevância do momento que estamos vivendo e do novo modelo que vamos construir

Leonardo Wexell Severo, colaborador da Diálogos do Sul


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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