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"China tem se transformado em espelho para quem busca alternativa ao neoliberalismo"

Em entrevista, geógrafo Elias Jabbour diz que país é “primeira experiência de uma nova classe de formações econômico-sociais”, o chamado “socialismo de mercado”
Ricardo Machado
Revista IHU On-line
Porto Alegre (RS)

Tradução:

Compreender o protagonismo dos países asiáticos, em especial o da China, no cenário econômico global é “o maior desafio intelectual do momento presente”, diz o geógrafo Elias Marco Khalil Jabbour, autor do livro “China Hoje: Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado” (São Paulo: Anita Garibaldi, 2012). Ao fazer o exercício de analisar a ascensão e o papel da China na geopolítica internacional em contraposição aos países ocidentais, Jabbour diz que o crescimento do país nos últimos 40 anos indica uma “capacidade de flexibilização ao longo dos tempos”, enquanto o “Ocidente caminha para uma estagnação secular”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Jabbour afirma que a China é a “primeira experiência de uma nova classe de formações econômico-sociais”, o chamado “socialismo de mercado”, em desenvolvimento no país desde 1978. Segundo ele, esse tipo de socialismo é resultado da fusão entre a economia monetária, o keynesianismo e a planificação soviética. “Na verdade, ‘socialismo de mercado’ seria o nome fantasia do que eu chamo de Nova Economia do Projetamento, em alusão à Economia do Projetamento pensada por Ignácio Rangel para designar o modo de produção que surgia da fusão entre a economia monetária, o keynesianismo e a planificação soviética. O surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica na China dão margem para dizer que por lá está surgindo uma “Nova Economia do Projetamento”, explica. Segundo ele, ao mesmo tempo em que a China avança na fronteira tecnológica, “novas e superiores formas de planificação econômica surgem no país com a aplicação direta à ‘economia real’ de instrumentos como o Big Data, a Inteligência Artificial e a Plataforma 5G”.

Elias Marco Khalil Jabbour possui graduação em Geografia pela Universidade de São Paulo – USP e mestrado e doutorado em Geografia Humana também pela USP. É professor adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas. Foi assessor econômico da Presidência da Câmara dos Deputados.

Em entrevista, geógrafo Elias Jabbour diz que país é “primeira experiência de uma nova classe de formações econômico-sociais”, o chamado “socialismo de mercado”

PxHere
É com uma construção histórica, e amplamente pacifista, que a China tem se reencontrado.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que ordem são os desafios à ciência social contemporânea para compreender o protagonismo chinês e asiático no cenário econômico global?

Elias Jabbour – Trata-se do maior desafio intelectual do momento presente. As razões são múltiplas, mas o fato é que a China cresce há 40 anos seguidos, enquanto o Ocidente caminha para uma estagnação secular. O sistema político chinês tem demonstrado capacidade de flexibilização ao longo dos tempos e mantido o país em relativa estabilidade social, enquanto as democracias ocidentais foram capturadas por uma cleptocracia financeira que abriu espaço para o surgimento de líderes protofascistas nos EUA e no Brasil. O fascismo é um fenômeno mundial e as “eleições livres” no Ocidente são cada vez mais manipuladas, conforme os escândalos em torno da Cambridge Analytica, e a viralização de Fake News nos processos eleitorais estão em processo de naturalização.

A ordem “globalizada” e a entrada do capitalismo em uma era financeirizada não somente dão conta das imensas contradições sociais que nos cercam, como as mesmas têm-se aprofundado, criando no mundo capitalista uma massa de “indesejáveis” cujo destino são as cadeias, o subemprego ou mesmo o limbo completo. A China faz uma trajetória oposta. Também com suas contradições. Mas está na completa contramão da decadência humana e social que percebemos no chamado “mundo livre”. A China tem se transformado em um espelho para quem busca uma alternativa ao neoliberalismo e às ditaduras dos mercados financeiros.

Por que as categorias econômicas e sociológicas hegemônicas no Ocidente não ajudam a compreender o crescimento econômico da China e da Ásia-Pacífico?

A questão não está no fato de as categorias criadas no Ocidente em si não ajudarem a entender a China e a Ásia do Pacífico. A questão é que o processo de desenvolvimento daquelas sociedades não seguiu os padrões que percebemos ao analisar a trajetória ocidental. Economias de mercado surgiram naquela parte do globo há pelo menos 3500 anos; um poderoso e estruturado Estado Nacional surgiu na China há 2500 anos. O concurso público, na mesma China, seleciona as melhores cabeças do país para ingressar no aparelho do Estado há 1500 anos. O confucionismo e o taoísmo são contemporâneos da filosofia clássica grega. Porém, enquanto na China o confucionismo e o taoísmo continuam a formar subjetividades civilizatórias e tolerantes, no Ocidente a filosofia clássica grega perde espaço em prol de ideologias nascidas no Mediterrâneo Oriental e que dão base a ideologias do tipo “destino manifesto” e outras aberrações.

Entender a Ásia partindo dessas premissas históricas é um caminho muito mais sofisticado do que relacionar o crescimento chinês com a oferta ilimitada de mão de obra barata ou mesmo “trabalho escravo” como muitos intelectuais repetem com muita tranquilidade. O que ocorre na Ásia é um reencontro de determinadas sociedades com suas profundas origens estatizantes e mercantis gerando formações econômico-sociais capitalistas e socialistas dinâmicas. A China se encaixa como a primeira experiência de uma nova classe de formações econômico-sociais — o “socialismo de mercado”.

Como se caracterizou historicamente o desenvolvimento das formas mercantis na Ásia?

São sociedades de mercado que surgem às margens de vales férteis irrigados por grandes rios onde o excedente econômico e a troca surgiram de forma precoce dando margem ao surgimento de um modo de produção muito específico, o “modo de produção asiático”. Foi este modo de produção que deu contorno ao surgimento de estruturas estatais-mercantis que não necessariamente desembocaram em sociedades industriais como a Inglaterra, mas que foram suficientes para manter a China na dianteira das inovações tecnológicas no mundo por alguns séculos. A necessidade de construção de grandes obras hidráulicas para contenção de enchentes e a formação de grandes cidades administrativas e comerciais deu sentido a formas precoces de planificação econômica. É com essa construção histórica, e amplamente pacifista, que a China tem se reencontrado.

Como o sistema econômico chinês, em perspectiva histórica, se diferencia do caso ocidental, marcado por revoluções industriais, e quais suas implicações políticas?

Historicamente a Revolução Nacional-Popular de 1949 se assemelhou a uma rebelião contra a “lei das vantagens comparativas” elaboradas por David Ricardo. O que acorre em 1949 é uma transformação que intentou com sucesso o direito da China de desenvolver-se e planificar seu desenvolvimento. Gramsci de forma muito feliz classificou o Partido Comunista como o “Príncipe Moderno”, o modernizador. E o Partido Comunista da China tem sido, de fato, este “Príncipe Moderno”.

Por outro lado, tenho defendido que o sistema econômico chinês passou por transformações profundas não somente após 1949 e, de forma mais intensa, a partir de 1978. Na verdade, ao permitir o surgimento e o florescimento de um nada pequeno setor privado e, de outro, reformas institucionais aceleradas desde a segunda metade da década de 1990, levaram ao surgimento tanto de um ambiente propício ao que Keynes chamou de “socialização do investimento” quanto de cerca de 100 grandes conglomerados empresariais estatais e um robusto e capilarizado sistema financeiro também estatal como o núcleo duro, ao lado do poder político de novo tipo exercido pelo Partido Comunista da China, do “socialismo de mercado”.

A implicação política de todo esse processo é que o capitalismo ocidental se vê diante de um concorrente estratégico nada modesto e pronto a se tornar o centro dinâmico da economia internacional. Em grande medida a humanidade, nas próximas décadas, terá à sua disposição a alternativa que vem da China e o caos em que o Ocidente está envolvido. Eis aí a grande implicação política: após proclamarem o “fim da história” em 1991, um regime nascido das entranhas da Revolução Russa de 1917 está a desafiar e reverter uma ordem global nascida há mais de 500 anos…

De que forma poderíamos caracterizar o socialismo de mercado?

O socialismo de mercado como uma nova classe de formações econômico-sociais é algo em desenvolvimento na China desde 1978 e no Vietnã desde 1986. Cuba dá passos iniciais nesse sentido, mas muito lentos. Na China, pesquisas que tenho desenvolvido demonstram que, no concreto, desde a crise de 2009 ficam mais evidentes os contornos desta nova formação econômico-social quando o Estado demonstrou imensa capacidade de coordenação para colocar suas dezenas de conglomerados e sistema financeiro a executar imensas obras de infraestruturas que amorteceram os efeitos da crise financeira desde então. Esta formação econômico-social de novo tipo é caracterizada pela coexistência em uma mesma formação econômico-social de modos de produção distintos.

Na China existe um setor estatal na economia que é o dominante e único capaz de irradiar efeitos de encadeamento para toda a economia chinesa, inclusive ao setor privado. A agricultura está em processo de transição de modo de produção em que a “pequena produção mercantil” está dando lugar a formas superiores de propriedades não capitalistas. O Partido Comunista, além de exercer o poder político, espalha seu poder sobre toda a economia não somente através de empresas públicas, mas também com os comitês de fábrica que se capilarizaram e passaram a ter voz, inclusive no setor privado em um processo que se acelera desde 2012.

É muito complicado falar na existência de um “socialismo puro”, porém a China certamente é a forma de engenharia social mais avançada que existe no mundo, mais distante de um capitalismo, seja liberal ou de Estado e mais próximo de formas socializantes, o que não encerra as imensas contradições existentes por lá, ao contrário: são as contradições o principal motor das transformações do país. Interessante notar que o setor público na China detinha o controle de 77% das forças produtivas no país em 1978 e hoje diminuiu para 30%. Porém a capacidade de realização do Estado é muito maior. Na mesma medida em que a China vai tocando na fronteira tecnológica, novas e superiores formas de planificação econômica surgem no país com a aplicação direta à “economia real” de instrumentos como o Big Data, a Inteligência Artificial e a Plataforma 5G.

Ampliando o campo de abstração, tenho colocado que a China está moldando um novo modo de produção. Na verdade, “socialismo de mercado” seria o nome fantasia do que eu chamo de Nova Economia do Projetamento, em alusão à Economia do Projetamento pensada por Ignácio Rangel para designar o modo de produção que surgia da fusão entre a economia monetária, o keynesianismo e a planificação soviética. O surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica na China dão margem para dizer que por lá está surgindo uma “Nova Economia do Projetamento”. Neste sentido, como Marx nos lembrava, quando muda o modo de produção, deve-se mudar suas teorias correspondentes. A maxirracionalização da economia promovida pelo socialismo na China é a chave para concluirmos que ou dominamos a ciência da planificação econômica, ou não entenderemos nada. Enquanto isso no Brasil economistas ortodoxos propõem retorno a relações de produção do século XIX…

Voltando um pouco na linha do tempo, o que foram as Reformas de 1978 na China e como elas reorganizaram o mercado interno e externo? Como isso se conecta às formas milenares de trocas comerciais da China?

As reformas de 1978 foram uma solução chinesa aos impasses gerados pela adoção de um determinado modelo socialista que foi eficiente para um período histórico e que deixou de ser diante de desafios que iam além da instalação de uma poderosa indústria de base. É certo que Mao Tsé-tung apoiou-se nos camponeses pobres para fazer sua revolução e que Deng Xiaoping percebeu a capacidade comercial milenar dos camponeses médios para promover a modernização do país. Acredito que 1978 marca a fusão do Estado Revolucionário fundado por Mao Tsé-tung com o Estado Desenvolvimentista asiático internalizado por Deng Xiaoping. O mercado interno se rearticulou com as reformas na agricultura em que o Estado ao permitir trocas mercantis produziu elevações de produtividade e aumento do consumo rural, logo fazendo florescer indústrias rurais precocemente ligadas ao mercado tanto interno quanto externo.

Para termos uma ideia, o Estado fabricou o mercado por onde o sistema socialista pode se reinventar e “fabricou fabricantes” com o surgimento de oito milhões de empresas familiares. A abertura ao investimento estrangeiro permitiu a absorção de capitais chineses ultramarinos via Zonas Econômicas Especiais que foram sendo instaladas ao longo de toda a década de 1980, linkando a China com a economia internacional. A China beneficia-se de toda uma reorganização geográfica da grande indústria localizada na América do Norte e no Japão que se deslocaram para a China. Ou seja, percebemos que o mercado, uma instituição tão cara à China milenar, foi a operadora do reordenamento das relações da China consigo mesma e dela com o resto do mundo. Vejamos o profundo significado do projeto “Um cinturão, uma rota” lançado por Xi Jinping em 2013.

O que foram as reformas realizadas nas indústrias estatais chinesas na década de 1990? Como isso abriu caminho para a entrada do país na Organização Mundial do Comércio – OMC em 2001? 

As reformas nas estatais iniciaram-se muito antes da entrada da China na OMC. As empresas estatais passaram por sucessivas reformas desde o início da década de 1980, sobretudo no sentido gerencial. As empresas estatais perderam muito market share para empresas privadas e as rurais (Township and Village Enterprises – TVEs). Expostas pouco a pouco ao mercado, foram ganhando alguma capacidade de caminhar sem subsídios, mas muito aquém das formas modernas de gerenciamento. Porém, somente na segunda metade da década de 1990 é que as empresas estatais passaram por um processo profundo de mudanças que passou pela fusão de milhares de empresas e privatização de outras tantas. Ao fim desta reforma surgiram 149 conglomerados empresariais estatais com crescente capacidade de atuar no mercado. Separação entre a gestão e a propriedade, maior qualificação de quadros administrativos e completa orientação ao mercado transformaram muitas dessas empresas em gigantes globais. 

Em 2003, o Conselho de Estado forma uma instituição única no mundo, a Comissão de Supervisão e Administração de Ativos do Estado (SASAC, sigla em inglês), substituindo um emaranhado burocrático ineficiente por uma instituição ligada diretamente ao Conselho de Estado. É a instituição cuja tarefa, além de garantir que essas empresas atuem em concordância com os objetivos do Estado, é modernizar continuamente todo o corpo empresarial estatal chinês. Eu chamaria essa instituição de a “manager” do socialismo de mercado chinês. Não à toa que as empresas estatais chinesas são o maior alvo de Trump no momento. 

É possível pensar, de alguma forma, um modelo econômico no Ocidente capaz de unir instituições públicas e grandes corporações empresariais em um projeto de crescimento econômico?

Cada país deve encontrar seu próprio caminho ao progresso social e econômico. É evidente que esse caminho na atualidade demanda desarmar a bomba-relógio da crescente financeirização das economias. Num país como o Brasil, os bancos registram recordes de lucro enquanto o setor industrial privado sofre um verdadeiro bullying, seja por operações irresponsáveis — e comandadas externamente — como a conduzida por procuradores e um juiz até então sediado em Curitiba, seja pela proibição de o Estado gerar demanda efetiva, pois a lei do “teto de gastos” criminaliza a possibilidade de o Estado fazer política fiscal. O problema do Brasil e do Ocidente é político. A desregulamentação dos sistemas financeiros soltou para fora da garrafa algo que para voltar ao estágio anterior demandaria muita força política. Cromwell, quando percebe que o rei da Inglaterra era um empecilho ao progresso do país, ordenou a decapitação do mesmo. Quem será o Cromwell do século XXI? Quem colocará o setor financeiro em seu devido lugar? Eis o “x” da questão.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Ricardo Machado

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