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Cinco passos para frente, oito para trás – parte I

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Paulo CannabravaFilho*

Paulo Cannabrava Filho. Perfil DiálogosFinal de um ano e início de outro sempre impõem a moda de fazer balanços e projeções. Abundam os profetas, tanto da boa-venturança como do apocalipse. Mao disse certa vez que era necessário saber dar três passos para frente e um para trás para ter êxito na luta. Esse pensamento serve para certificar que os processos evoluem por caminhos tortuosos, de muitas idas e voltas, êxitos e fracassos.

Entretanto, ocorre que o que se tem visto nas últimas décadas é que se foram dados cinco passos para frente em questões de tecnologia e ciência avançada, paralelamente foram dados oito passos para trás nas questões éticas, ou seja, em tudo o que implica e tem que ver com a preservação e a evolução da humanidade.

O líder chinês Mao Tse Tung.
O líder chinês Mao Tse Tung.

Quando se olha, por exemplo, o que se diagnosticava e prognosticava para a comunicação nas décadas 1960 e 1970 e o estado das coisas na atualidade, seguramente o recuo não é simplesmente de oito passos, mas de gerações relegadas a um atraso mental e histórico. Vejamos alguns exemplos:

Grande parte dos meios de comunicação de massa pertencia a oligarquias retrógradas, mas havia proprietários comprometidos com outros interesses e também forças sociais cuja presença não podia ser ignorada nem tergiversada. As denúncias eram contra o monopólio que exerciam cinco agências de notícias internacionais que respondiam a interesses de países de vocação colonialista ou imperialista. AP e UPI dos EUA, AFP da França, Reuters do Reino Unido.

Os embates pela democratização da comunicação que se travaram nessa época levaram à criação, no seio da Unesco, da Comissão Sean McBride, cujo informe final deveria constituir cátedra em todas as escolas de jornalismo do planeta. Esse debate resultou na formulação de políticas de estado de comunicação, criação de agências informativas estatais e inclusive a tentativa de juntar forças com o Pool de Agências dos Países Não Alinhados e o sistema Asin na América Latina. Havia oferta de informação alternativa oferecida por instituições como IPS, Prensa Latina, a soviética TASS ou a chinesa Xinhua.

O ponto álgido das iniciativas por democratização foi atingido no Peru quando a revolução dos coronéis, liderada pelos generais Juan Velasco Alvarado e Edgardo Mercado Jarín, expropriou  os jornais pertencentes às diferentes oligarquias e os entregou às associações de trabalhadores. O diário que pertencia a oligarcas proprietários de terras passou às mãos da confederação dos trabalhadores agrícolas; o que defendia os interesses do setor industrial e financeiro passou às mãos das organizações sindicais de trabalhadores no setor industrial. A televisão se tornou pública.

Não é difícil imaginar a gritaria dos membros da SIP e de todos os agentes de inteligência do mundo capitalista de então, um bloco que era minoritário e a muito custo mantinha uma débil hegemonia. Em um mundo pentagonal conformado pela URSS e o Pacto de Varsóvia; China Popular; Europa buscando sua integração; Estados Unidos buscando sua hegemonia; e os países do Terceiro Mundo, organizados no Movimento dos Não Alinhados. A América Latina se comportava como modelo alternativo e os países africanos recém libertados do colonialismo europeu construíam novos modelos. No início dos anos 1970 mais de dois terços da humanidade contestava o capitalismo.

É muito diferente o mundo que vemos pós Consenso de Washington.

Nas questões de tecnologia foram dados cinco passos para frente. Resultado: entre 80% e 90% dos domicílios possuem televisor, telefone, água e energia elétrica. Quase 50% já têm computador, dos quais 37% conectados à Internet. Graças à boa qualidade de algumas de nossas universidades passamos décadas exportando cérebros, principalmente para o Japão (300 mil), EUA (1.8 milhão) e Europa (l milhão). Diáspora que arrastou milhões de brasileiros.

Os meios de comunicação que pertenciam às oligarquias conservadoras, em grande parte e principalmente nos grandes centros urbanos, passaram às mãos de grandes conglomerados empresariais, geralmente capitaneados por instituições financeiras. Impôs-se nas redações o pensamento único e a desonestidade intelectual para defender o indefensável. Do Canadá à Patagônia, passando pela União Européia, os diários parecem ter sido editados por uma única pessoa. As forças sociais agora só aparecem para ser criminalizadas. A televisão, por sua parte, cada vez cumpre com mais eficácia seu papel de imbecilizar as pessoas, seja como promotora do consumismo ou por inocular doses exageradas de produção estadunidense de apologia à violência e outros costumes alheios a nossa tradição.

A política indígena que nunca andou para frente em 500 anos, passou por etapas de maior ou menor grau de extermínio e ganha novo auge depois de um curto período em que parecia que se caminhava para a aceitação da diversidade étnica e cultural. Nunca se mataram tantos índios como nas últimas décadas do século XIX até a metade do século XX. O incremento á emigração européia, o estabelecimento de colônias de imigrantes nos Estados do Sul e Sudeste, a ocupação das fronteiras agrícolas no Oeste de São Paulo, seguida para o Sul do Mato Grosso, Norte do Paraná, tudo isso sobre terras habitadas por indígenas que foram expulsos ou exterminados de diferentes maneiras.

O que mudou para os índios?

A líder indígena Sonia Guajajara
A líder indígena Sonia Guajajara

“Se antes lutávamos pelo cumprimento de nossos direitos, hoje lutamos por não perder esses direitos”, diz Sonia Guajajara, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira.  As novas fronteiras agrícolas e também as já velhas áreas de lavoura, agora são ocupadas por grandes corporações agro-industriais, através de una política de terra arrasada, sem o mínimo respeito à natureza. Tudo isso por um modelo que reverteu o país a mero exportador de commodities. Essa voracidade por terras provocou nova etapa de confronto com os povos originários. Povos que têm como única arma sua razão de ser e de pretender ser reconhecidos. Contra eles os pistoleiros, os paramilitares e as forças policiais.

Com uma população rural de mais de 60% em 1950, a população urbana superou 70% em 1970, 86% em 2010 e hoje supera os 90% em São Paulo, o mais rico e povoado dos estados brasileiros. As políticas de desenvolvimento executadas tinham em vista criar uma base industrial que pudesse incluir essas massas de migração interna ao processo produtivo. Como resultado se via funcionando um poderoso parque industrial, exportava-se com alto valor agregado e se chegou ao pleno emprego.

Antes que terminasse a década de 1970 já o país se afundava no atoleiro da recessão com o abandono das estratégias de desenvolvimento a favor da ditadura do capital financeiro especulativo. O resultado do período, que ficou conhecido como “décadas perdidas”, representa, sem dúvida, muito mais do que oito passos para trás.

Com um crescimento demográfico em torno 3% ,com o PIB chegando quase a zero, deixou-se de criar 1,5 milhões de novos empregos para abrigar as novas gerações que anualmente ingressam ao mercado de trabalho. A esse exército se juntam os despedidos pelo fechamento de fabricas, pela concentração das propriedades em mãos dos grandes conglomerados e pela desnacionalização.

Essa imensa massa de desempregados subempregados, precarizados, sobrevivendo na informalidade se concentrou nos arredores das cidades, formando uma outra cidade, marginalizada, excluída do processo de desenvolvimento econômico e social. Nas cidades vive-se em clima de guerra civil, que deixa mais de 50 mil mortos por ano. Um verdadeiro genocídio praticado principalmente contra jovens, na maioria negros.

No extremo dessa marginalidade social encontram-se os 40 milhões contemplados com os programas sociais tipo fome zero, bolsa família e outros. Esses milhões incorporados ao consumo seguramente constituem uns cinco passos para frente, mas insuficientes quando foram dados muito mais que oito passos para trás durante as décadas perdidas.

 O projeto para a má educação

A anunciada universalização do ensino foi uma das maiores fraudes dessas décadas passadas. Serviu para gerar bons negócios e péssima educação.

O índice de escolaridade que em 1970-80 era de 2,8 anos subiu para 7 nos anos 2000, mas isso pouco significou, pois o nível de analfabetismo se mantém em taxas próximas a 20% e o analfabetismo funcional ultrapassa os 70% em todo o país, inclusive em estados como São Paulo, com universidades de excelência e um sistema de produção que requer mão-de-obra qualificada. Em vista disso é que o antropólogo e educador Darcy Ribeiro dizia que a má educação no Brasil não é conseqüência, é projeto. De fato, projeto para manter as massas marginalizadas paralisadas pela ignorância, pelo medo e pela desesperança.

Hoje se reconhece que o principal obstáculo ao desenvolvimento é a ausência de quadros preparados para se incorporar ao processo produtivo. E a questão crucial é a qualidade da educação.

Leia a segunda matéria desta série: Cinco passos para frente, oito para trás – parte II

*Paulo Cannabrava Filho é jornalista e historiador, editor de Diálogos do Sul.

 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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