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Orlando Senna*
No dia 28 de dezembro o cinema completou 119 anos e uma trajetória de construção de linguagem lastreada na narrativa dramática e na encenação, esta última herdada do teatro, via a expressão francesa mise en scène.
Tanto a narrativa dramática como sua encenação são planejadas, às vezes minuciosamente, às vezes deixando brechas para o acaso como nos documentários. Assim ou assado, uma linguagem, ou uma postura histórica dessa linguagem, voltada para articulações racionais (pensamento, organização, ação, clareza), apesar de ter como objetivo nuclear a geração de emoções.
Atualmente uma nova atitude com relação a essa linguagem está florescendo em várias partes do mundo, inclusive e com muito ânimo na América Latina, sob a denominação Cinema de Fluxo. Essa tendência estética privilegia a imagem e o som em estado puro, a imagem como imagem e o som como som, significante e significado amalgamados, conteúdo e forma unificados, e não como veículos de enredos e tramas. O pensamento dialético do cinema narrativo é substituído pela contemplação (ou convive com ela, como é o caso do atual estágio dessa tendência). A dialética cede espaço à fenomenologia, à reflexão a partir diretamente do que estamos vendo ou ouvindo, dos fenômenos que chegam à nossa consciência através dos sentidos e não dos mecanismos do raciocínio.
O desenvolvimento da narrativa a partir do conflito cede lugar a um fluxo de sons e imagens sem o encadeamento, sem o jogo de causa/efeito que formulam as narrativas aristotélicas, a sensação do ver e ouvir é mais importante que o sentido racional forjado pela narração, pela atração/rejeição (Eisenstein) entre as partes do relato. Trata-se de um novo paradigma. Desde algum tempo, talvez desde o início do cinema, experiências nessa perspectiva foram realizadas. A diferença para o que está acontecendo atualmente é que se trata de um movimento amplo, envolvendo cineastas de todas as latitudes e uma razoável aceitação do público, que vê nesses filmes com linhas argumentais tênues, sem grandes confrontações psicológicas ou de ação, sem a rigidez lógica das artes narrativas, a possibilidade de um novo tipo de prazer cinematográfico.
Existem vários trabalhos acadêmicos sobre o assunto, é uma espécie de moda nas teses e dissertações universitárias. Alguns apontam o despertar dessa tendência nas décadas 1980 e 1990, quando aconteceu na linguagem do cinema um “momento maneirista” (conceito herdado das artes plásticas, significando o envelhecimento de uma linguagem e a angústia de grandes artistas que, sem conseguir renová-la, repetem seus cânones). A “fadiga da matéria” que atingiu a linguagem audiovisual naquela época (li em algum lugar “fadiga da alma”) levou muitos cineastas a repensar a sintaxe fílmica, a função das imagens e sons no relato. As novas tecnologias da comunicação potencializaram esse repensar.
A crítica destaca alguns cineastas que surfam essa onda, como o chinês Hou Hsiao-Hsien, de Café Lumière (2003) e A Viagem do Balão Vermelho (2007), e suas cenas estendidas, sua concentração nos detalhes, a plasticidade incessante da luz — e a quase inexistência de uma história, ou a finíssima sutileza de uma possível história sendo levada na fruição de muitas e outras informações visuais e auditivas, de situações aparentemente irrelevantes, dando a impressão que não há começo ou fim. Outros cineastas, como a francesa Claire Denis (O intruso, 2004) e o estadunidense Gus Van Sant (Gerry, 2002) são apontados como destaques. Na América Latina, o trabalho mais em evidência é o da argentina Lucrécia Martel, principalmente por A mulher sem cabeça (La mujer sin cabeza, 2008), onde vários gêneros se insinuam, se anunciam e não se concretizam em torno de uma mulher que perde contato com a realidade. Também o do chileno José Luis Torres Leiva (Verano, 2011), e o da brasileira Júlia Murat (Histórias que só existem quando lembradas, 2011).
O cinema de fluxo, no atual estágio, muitas vezes se organiza como narrativa tradicional, em três atos, plano e contraplano, dentro e fora de campo, para desarticular-se progressivamente sobre o próprio leito, como um riacho que vai encontrando pedras, curvas, empoçamentos, revelações, epifanias. Às vezes entrega-se inteiro ao sensorial, como o recente Brasil S/A, de Marcelo Pedroso. Um cinema de planos longos e lentos, de detalhes observados com calma, de câmeras lambendo a vida sem pressa, colhendo fragmentos da realidade, essencialmente sensual e reflexivo, indiferente ao deus Cronos, indiferente à “força da gravidade” da narrativa tradicional, sem giros e sem clímax, direcionado para um entendimento direto do olhar, do aprender a sentir a imagem em si mesma, buscando distanciar-se do discurso, do decurso e do percurso. Uma boa novidade.
Por Orlando Senna, cineasta e colaborador da Diálogos do Sul.
* Link para outros textos de Orlando Senna no Blog Refletor http://refletor.tal.tv/tag/orlando-senna