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Clara Zetkin: as mulheres, o feminismo, as lutas e a revolução socialista

As lutas das mulheres e a resistência do liberalismo clássico burguês em relação à extensão dos direitos políticos às mulheres
Augusto C. Buonicore
Fundação Maurício Grabois
São Paulo

Tradução:

Neste ensaio, o autor traça um amplo painel da luta das mulheres pela sua libertação e analisa o papel desempenhado pelo movimento socialista nesse prolongado e complexo processo. Mostra a resistência do liberalismo clássico burguês em relação à extensão dos direitos políticos às mulheres. E as contribuições dos marxistas à construção de uma concepção emancipacionista entre os séculos XIX e XX. Por fim, aborda os avanços e impasses na situação da mulher na experiência soviética.

I. OS LIBERAIS E A IGUALDADE DA MULHER

Os direitos políticos das mulheres constituem, atualmente, uma condição para qualquer democracia moderna – burguesa ou socialista. Hoje nenhum país que recuse os direitos políticos e sociais às mulheres poderia ser considerado democrático. Mas, esta é uma situação relativamente nova – nascida no século XX – e conquistada depois de muitas lutas.

Entre os pensadores iluministas Condorcet foi um dos poucos a abraçar a causa da emancipação política das mulheres. Em 1791 escreveu o solitário Ensaio sobre a admissão das mulheres na cidade. Era uma exceção à regra, pois o nascente mundo intelectual liberal-burguês não via com bons olhos a proposta de participação política do sexo feminino.

Os revolucionários norte-americanos que elaboraram a famosa Declaração da Independência tinham claro sua posição de superioridade sobre as mulheres e pretendiam conservá-la a qualquer preço. Diante da reivindicação de direitos para mulheres, feita por sua própria esposa, o líder da Independência John Quincy Adams afirmou: “Estejam certas, nós somos suficientemente lúcidos para não abrir mão do nosso sistema masculino” (ALVES E PINTANGUY, 1981:31). A jovem república norte-americana havia sido criada para o gozo exclusivo dos homens proprietários e de pele branca.

Na Revolução Francesa, iniciada em 1789, se repetiria o mesmo fenômeno. A Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos pretendia realizar o que efetivamente prometia: “garantir os direitos dos homens” e não os direitos “de homens e mulheres”. Os homens ali não eram entendidos, como viriam a ser interpretados mais tarde, como “gênero humano” e sim como membros do sexo masculino.

O principal filósofo democrático do século XVIII, e que inspirou a ala radical da Revolução Francesa, foi Jean-Jacques Rousseau. Mesmo para ele ao homem deveria caber o mundo da política (e do trabalho produtivo) e à mulher o restrito espaço do lar. O seu livro Emílio ou Da educação, especialmente o capítulo “A idade da sabedoria e do casamento”, é paradigmático neste sentido.

Segundo ele, a mulher teria sido criada pela natureza para agradar ao homem e para ser subjugada por ele, pois um era “ativo e forte” e o outro “passivo e fraco”. O seu destino era o casamento e a maternidade. Por isso: “a rigidez dos deveres relativos a ambos os sexos não pode ser a mesma. Quando a mulher se queixa a esse respeito da injusta desigualdade que o homem institui, ela está errada; tal desigualdade não é uma instituição humana, ou pelo menos não é obra do preconceito, mas da razão” (ROUSSEAU, 1995:492-493).

Já em 1789, após a Queda da Bastilha, uma comissão de mulheres levou um manifesto à Assembleia Nacional no qual afirmavam: “Destruístes os preconceitos do passado, mas permitistes que se mantivesse o mais antigo, que exclui dos cargos, das dignidades das honrarias e, sobretudo, de sentar-se entre vós, a metade dos habitantes do reino (…). Destruístes o cetro do despotismo (…) e todos os dias permitis que treze milhões de escravas suportem as cadeias de treze milhões de déspotas” (ALVES E PINTANGUY, 1981:33). As mulheres começavam lentamente a se rebelar contra a opressão milenar que pesava sobre elas.

A situação em que foram colocadas as mulheres depois da revolução fez com que Olympe de Gouges publicasse, em 1791, a sua Declaração dos direitos da mulher e da cidadã – uma resposta feminina aos limites da Revolução Francesa que, como a inglesa e a norte-americana, não garantiu às mulheres o direito ao voto, ao acesso às funções públicas e nem mesmo o direito pleno à propriedade. As revoluções em curso mais do que burguesas eram masculinas. 

“As mães, as filhas, as irmãs, representantes da nação, reivindicam constituir-se em Assembleia Nacional”, assim se iniciava a Declaração dos direitos da mulher que, no seu 10º artigo, afirma: se “a mulher tem o direito de subir ao cadafalso, também lhe deve ser dado o direito de subir à tribuna” 

Gouges subiu ao cadafalso e foi guilhotinada em novembro de 1793. O radical Chaumette escreveu em Le Moniteur: “Lembrem-se de Olympe de Gouges, a primeira a instituir as associações de mulheres e que abandonou os cuidados do lar para se intrometer na República, de quem a cabeça rolou sob o ferro vingador das leis”.

A sua morte, no entanto, se deve mais a razões de ordem política imediata. Ela havia defendido teses que iam contra o poder revolucionário, dirigido pelos jacobinos. Por exemplo, advogou a necessidade de um plebiscito para que os franceses decidissem se desejavam a República ou a Monarquia. Posicionou-se contra a pena de morte, mesmo para a família real, e ficou ao lado dos girondinos que começavam a ser proscritos.

O terror revolucionário recrudesceu após o assassinato de Marat, um dos mais populares propagandistas revolucionários. A sua assassina foi justamente uma mulher, a jovem girondina Charlotte Corday. O ódio contra as mulheres girondinas tomou conta das massas populares. A feminista Théroigne de Méricourt foi atacada na rua – despida e apedrejada – e acabou enlouquecendo, e, anos depois, morreu esquecida num asilo de alienados.

Logo após a execução de Olympe de Gouges todos os clubes políticos femininos foram fechados. Chaumette ao propor a lei que proibia os clubes afirmou: “A Natureza disse à mulher: seja mulher! Os ternos cuidados para com a infância, as doces inquietudes da maternidade, eis aí teu trabalho”. Assim, a revolução popular minava as suas próprias bases sociais.

Robespierre e os jacobinos foram derrubados em 1794. Ao terror vermelho seguiu-se o terror branco. O líder jacobino e cerca de cem de seus seguidores foram imediatamente degolados sem julgamento. As mulheres francesas, rapidamente, sentiriam este revés da revolução. 

Em 1795 um decreto determinou que “todas as mulheres se retirarão, até ordem contrária, a seus respectivos domicílios. Aquelas que, uma hora após a publicação do presente decreto, estiverem nas ruas agrupadas em número maior que cinco, serão dispersas por força das armas e presas até que a tranquilidade pública retorne a Paris” (ALAMBERT, 1986:9-10). A nova Convenção antijacobina proibiu as mulheres de assistirem a suas reuniões, a menos que estivessem acompanhadas de um homem.

A consolidação da derrota das mulheres se deu com a aprovação dos Códigos Civil e Penal, aprovados respectivamente em 1804 e 1808, já sob o governo de Napoleão Bonaparte. Neles se restabelecia o princípio de que “a mulher deve obediência ao homem”. O marido passava a ter legalmente, entre outras coisas, o direito de exigir que os Correios entregassem a ele todas as cartas endereçadas à esposa, de dispor livremente do seu salário – muitos receberiam os salários pelas esposas. Para tudo a mulher necessitava da autorização do pai ou do marido. 

Segundo o “código napoleônico” a mulher adúltera poderia ser condenada de três meses até dois anos de prisão. O adúltero, pelo contrário, deveria pagar apenas uma pequena multa. Um dos seus redatores justificou tal disparidade: “A infidelidade da mulher supõe mais corrupção e tem o efeito mais perigoso que aquela do marido”. E Engels, por sua vez, ridicularizou o artigo do código que decretava solenemente que “a criança concebida durante o casamento terá por pai sempre o marido” e concluiu irônico: “Eis aí o último resultado de três mil anos de monogamia”.

As lutas das mulheres e a resistência do liberalismo clássico burguês em relação à extensão dos direitos políticos às mulheres

Fundação Maurice Grabois
Clara Zetkin

II. A RESPOSTA SOCIALISTA AO ANTIFEMINISMO LIBERAL BURGUÊS

Ao contrário dos liberal-burgueses, os principais socialistas utópicos foram bastante sensíveis ao problema da emancipação das mulheres. Saint-Simon, na sua Exposição da Doutrina, escreveu: “Nós teremos que mostrar como a mulher, primeiro escrava, ou pelo menos em uma condição que se avizinha da servidão, se associa ao homem e adquire cada dia maior influência na ordem social e como as causas que determinam até aqui sua subalternidade estão se enfraquecendo sucessivamente, devendo enfim desaparecer e levar com elas esta dominação, esta tutela, esta eterna minoridade que ainda se impõe às mulheres e que seriam incompatíveis com o estado social do futuro que prevemos” (SAFFIOTI, 1976:70).

Mas, sem dúvida, Fourier é que levou mais longe as formulações feministas. Entre outras coisas, argumentou que a “mudança de uma época histórica sempre se deixa determinar em função do progresso das mulheres em relação à liberdade, porque é aqui, na relação da mulher com o homem (…) que aparece de maneira mais evidente a vitória da natureza humana sobre a brutalidade. O grau de emancipação da mulher é a medida natural do grau de emancipação geral”. E, continuou, “ninguém fica mais profundamente punido do que o homem quando a mulher é mantida na escravidão” (MARX, 1987:190).

Infelizmente nem todos os socialistas foram favoráveis a conceder direitos políticos e sociais às mulheres. Dentro da esquerda talvez tenha sido Proudhon (1809-1865), o pai do anarquismo, aquele que mais se colocou contra as reivindicações femininas. Para ele a mulher era, sob todos os aspectos, inferior ao homem. Inclusive tentou expressar essa inferioridade em porcentagens pseudocientíficas. Pelos seus cálculos a mulher possuía apenas 8/27 da capacidade masculina.

Segundo Evelyne Sullerot, Proudhon chegou ao absurdo de “pregar uma seleção genética que permitisse eliminar as esposas más e formar uma raça de boas esposas disciplinadas, como se formava uma raça de boas vacas leiteiras. Aspirava a uma legislação que desse ao marido o direito de vida e de morte sobre sua mulher” (SULLEROT, 1970:88). As ideias preconceituosas de Proudhon fariam carreira no movimento operário europeu.

Marx, Engels e Bebel – A descoberta das origens da opressão

As posições feministas dos socialistas utópicos teriam um forte impacto no pensamento de dois jovens revolucionários alemães: Marx e Engels. Ainda nos seus primeiríssimos artigos na Gazeta Renana, em 1842, Marx assumiu a defesa da mulher, particularmente quanto ao direito do divórcio. Rejeitou a ideia predominante de que o casamento deveria ser indissolúvel. Escreveu Saffiotti: “Ao casamento, enquanto conceito, Marx opôs o casamento como fato social e, como tal, ele nada tem de indissolúvel, pois os fatos sociais se transformam, perecem, são substituídos por outros” (SAFFIOTI, 1976:72).

Nas suas obras de transição da juventude para a maturidade Marx e Engels se interessaram mais diretamente pela questão da opressão da mulher. Esta preocupação já pode ser sentida em A Sagrada Família (1845) e nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos (1844). Nestas obras eles incorporaram a ideia-força de Fourier de que “o grau de emancipação da mulher é a medida natural do grau de emancipação geral”. Nos Manuscritos de 1844 escreveram: “A relação imediata, natural, necessária dos seres humanos é a relação do homem com a mulher (…). Eis por que, com fundamento nesta relação, se pode aquilatar o grau de desenvolvimento do homem” (SAFFIOTI, 1976:73).

Mas o que os socialistas utópicos, e os jovens Marx e Engels, ainda não sabiam eram quais as bases da opressão feminina e os caminhos mais adequados para superá-la. O materialismo-histórico é que lhes permitiria decifrar o enigma da esfinge. O grande passo foi dado com a elaboração conjunta de A Ideologia Alemã (1846) e, posteriormente, do Manifesto do Partido Comunista (1848).

Na Ideologia Alemã já afirmavam: “Esta divisão do trabalho, que implica todas estas contradições e repousa, por sua vez, sobre a divisão natural do trabalho na família e sobre a separação da sociedade em famílias isoladas e opostas umas às outras, esta divisão do trabalho implica, ao mesmo tempo, a repartição do trabalho e de seus produtos, distribuição desigual, na verdade, tanto quanto à quantidade como quanto à qualidade; onde a mulher e os filhos são os escravos do homem. A escravidão certamente muito rudimentar e latente na família é a primeira propriedade que, aliás, corresponde já plenamente aqui à definição dos economistas modernos segundo a qual ela é a livre disposição da força de trabalho de outro” (SAFFIOTI, 1976:76).

Assim, o primeiro passo para a emancipação – e não o último – seria a incorporação da mulher no trabalho social produtivo. “Para que a emancipação se torne factível é preciso, antes de tudo, que a mulher possa participar da produção em larga escala social e que o trabalho doméstico não a ocupe além de uma medida insignificante”, afirmou Engels (ENGELS, 1974:182). Este era apenas o primeiro passo, que o capitalismo já começava a realizar. A superação definitiva desta opressão milenar se daria através de uma revolução social que transformasse os meios de produção, e a riqueza por eles produzida, em propriedade social. A revolução socialista limparia o terreno para que a libertação da mulher pudesse, finalmente, ser completada.

Sem dúvida, entre os marxistas, Augusto Bebel (1840-1913) foi o primeiro a se debruçar especificamente sobre o problema da emancipação da mulher. Ele publicou A mulher e o socialismo em 1879. Dez anos depois, após o fim das leis contra os socialistas, fez uma ampla revisão e atualização desse livro. Bebel era operário, autodidata e se tornaria o principal líder político da social-democracia alemã até sua morte em 1913, às vésperas da eclosão da Primeira Guerra Mundial.

A eminente socialista e feminista alemã Clara Zetkin escreveu: “As debilidades teóricas e algumas lacunas científicas deste livro ficam reduzidas a nada se se comparam com sua grande importância histórica”. A principal virtude do livro foi ter se oposto à “equivocada conclusão de que a reivindicação da igualdade das mulheres deveria esperar a atuação de um futuro Estado (…). O principal dirigente do proletariado alemão proclamou a luta pela plena equiparação do sexo feminino como um componente da luta do proletariado e como uma tarefa do presente” (ZETKIN, 1972:107).

Bebel reconheceu as especificidades da luta feminista, que permitiria unir as mulheres de várias classes em torno de algumas bandeiras. O conjunto do sexo feminino, escreveu, “sofre duplamente: de um lado sofre debaixo da dependência social dos homens, a qual se suaviza, porém não se elimina com a igualdade formal de direitos diante da lei, e, de outro lado, devido à dependência econômica em que se acham as mulheres em geral (…)”. Por isso “as irmãs adversárias têm em maior proporção que o mundo masculino (…) uma série de pontos em comum ao qual podem dirigir sua luta (…)” (BEBEL, 1977:44).

No entanto, alertava que, para as socialistas, “não se tratava apenas de realizar a igualdade de direitos da mulher como o homem no terreno da ordem social e política existente, o qual constitui o objetivo do movimento feminino burguês, mas de eliminar todas as barreiras que fazem que o homem dependa do homem e, portanto, um sexo ao outro (…). Daí que quem persiga a solução total da questão feminina deve se unir a quem tem inscrita em sua bandeira a solução da questão social e cultural para toda a humanidade, ou seja, os socialistas” (BEBEL, 1977:45).

Nem todos desposavam as opiniões avançadas de Bebel. Vários socialistas alemães eram contra colocar no programa partidário o voto feminino e a inclusão das mulheres no mundo do trabalho assalariado. Os lassalianos, por exemplo, inverteram as teses dos socialistas utópicos ao afirmarem: “A situação da mulher só pode melhorar se se melhorar a situação do homem”. 

Na sua história do movimento operário alemão Eduard Bernstein descreveu uma assembleia da social-democracia berlinense que, em 1866, “superou o dilema teórico transferindo a emancipação da mulher ao Estado socialista do futuro e estigmatizando as aspirações ao trabalho feminino na indústria, já que as considerava um meio dos capitalistas conseguirem força de trabalho a preços mais baratos” (ZETKIN, 1976:60).

Mesmo a corrente vinculada a Marx e Engels no interior da social-democracia alemã não seguia as indicações de seus mestres. O programa socialista de Eisenach (1869), elaborado por Wilhelm Liebknecht, estipulava apenas a necessidade de se conquistar o “sufrágio universal, direto e secreto concedido a todos os homens de mais de 20 anos”. O Programa de unificação entre lassalianos e marxistas, ocorrido em Gotha (1875), por proposta de Bebel, estabeleceria a bandeira: “Sufrágio universal, direto, secreto e obrigatório para todos os cidadãos com pelo menos 20 anos” (MARX, ENGELS, LENIN, 1971:90). O fato de estar escrito apenas cidadão e não “cidadão e cidadã” deu margem a interpretações díspares.

A dúvida só foi resolvida quando, finalmente, o Programa de Erfurt (1891) estabeleceu explicitamente que o Partido social-democrata alemão deveria lutar “por direitos e deveres iguais de todos, sem exceção de sexo ou de raça” e pelo “sufrágio universal igual, direto e secreto para todos os membros do império com mais de vinte anos, sem distinção de sexo, em todas as eleições”. Por fim, propugnava a “abolição de todas as leis que, do ponto de vista do direito (…), colocam a mulher em estado de inferioridade em relação ao homem” (MARX, ENGELS, LENIN, 1971:96).

Clara Zetkin: feminismo e revolução socialista

Clara Zetkin (1857-1933) foi a primeira grande líder feminina (e feminista) do movimento socialista alemão e internacional. Em 1891 passou a ser redatora do órgão de imprensa feminina da social-democracia alemã, considerado o jornal feminista de maior influência na história. Em 1896 apresentou o seu famoso informe sobre a questão da mulher no Congresso do Partido em Gotha.

Neste congresso é possível observar ainda uma visão estreita sobre a questão da mulher, que seria superada posteriormente. Ali ela afirmou: “O princípio-guia deve ser o seguinte: nenhuma agitação especificamente feminista, apenas agitação socialista entre as mulheres. Não devemos pôr em primeiro plano os interesses mais mesquinhos do mundo da mulher (…). Nossa agitação entre as mulheres não incluem tarefas especiais” (ZETKIN, 1976:107).

Em 1907 ocorreu, em Stuttgart, um congresso da Internacional Socialista. Nele Zetkin apresentou uma proposta de resolução que afirmava: “Os partidos socialistas de todos os países têm o dever de lutar energicamente pela conquista do sufrágio universal feminino (…) direito que deve ser reivindicado vigorosamente em todos os lugares de agitação e no parlamento” (ZETKIN, 1976:113).

Neste conclave, Zetkin, com o apoio de Lênin, combateu os socialistas austríacos e ingleses que tergiversavam na sua propaganda do sufrágio universal feminino. Eles defendiam uma tática gradualista na qual primeiro deveria ser garantido o voto masculino. Zetkin achava que neste ponto não poderia haver qualquer concessão e ela acabou sendo vitoriosa.

Mas na sua justificação sentiu necessidade de esclarecer que o “reconhecimento do direito de voto ao sexo feminino não suprime a contradição entre exploradores e explorados (…). Para nós socialistas, o direito de voto das mulheres não pode ser o objetivo final, diferentemente das mulheres burguesas, porém consideramos a conquista deste direito como uma etapa bastante importante no caminho que levará até o nosso objetivo final” (ZETKIN, 1976:113). No congresso internacional ocorrido em 1910, em Copenhague, defenderia a realização de um dia internacional das mulheres.

Apesar das resoluções aprovadas nos seus congressos, a social-democracia não colocou no centro de sua ação a luta pelos direitos sociais e políticos das mulheres. Zetkin fazendo um balanço crítico a respeito da ação socialista escreveu: “A II Internacional tolerou que as organizações inglesas afiliadas lutassem durante anos pela introdução de um direito de voto feminino restrito (…), permitiu também que o Partido social-democrata belga e, mais tarde, o austríaco se negassem a incluir, nas grandes lutas pelo direito ao voto, a reivindicação do sufrágio universal feminino (…), que o Partido dos socialistas unificados da França se contentasse com platônicas propostas parlamentares para a introdução do voto da mulher (…). A II Internacional nunca criou um órgão que promovesse em escala internacional a realização dos princípios e reivindicações a favor das mulheres. A formação de uma organização internacional das mulheres proletárias e socialistas para uma ação unitária e decidida nasceu à margem de sua organização, de forma autônoma” (ZETKIN, 1976:143-144).

Zetkin foi uma das poucas, ao lado de Rosa de Luxemburgo, a romper com a direção reformista do Partido Social-democrata alemão, após a eclosão da Primeira Guerra Mundial, e a ajudar a organizar o Partido Comunista. Foi eleita membro do Comitê Executivo da Internacional Comunista e presidente do Socorro Vermelho, organização mundial de solidariedade às vítimas da reação e do fascismo. Quando Hitler assumiu o poder ela era deputada comunista no Reichstag e teve que se exilar na URSS, onde veio a falecer ainda em 1933. Seu corpo foi enterrado nas muralhas do Kremlin ao lado dos heróis da revolução.

A Revolução Socialista de outubro de 1917 na Rússia abalaria o movimento socialista e afetaria profundamente a luta feminista de todo o mundo. 

III. AS MULHERES NO SOCIALISMO: AVANÇOS E IMPASSES

As conquistas da revolução

A situação das mulheres na Rússia czarista – como, aliás, na quase totalidade dos países capitalistas – era deplorável. No começo do século XX, 88% das mulheres russas não sabiam ler nem escrever. Em algumas regiões mais atrasadas os homens ainda tinham o direito de vida e de morte sobre suas esposas e filhas – uma tradição medieval que era tolerada pelo regime.

As perspectivas para as mulheres russas não pareciam muito boas. Em 1906 uma revista especializada – Mensageiro da Educação – apresentaria estudos afirmando que seria preciso 280 anos para que se conseguisse alfabetizar toda a população feminina russa. Na verdade, o Estado socialista, implantado em outubro de 1917, precisaria de apenas 50 anos para realizar esta façanha.

As mulheres russas também não podiam votar e nem participar de qualquer organização política. Não existia matrimônio civil, apenas religioso. Por isso eram vetados os casamentos entre pessoas de religiões diferentes. O divórcio era quase uma impossibilidade para as trabalhadoras e o seu ritual extremamente vexatório até mesmo para as mulheres da burguesia. 

A Revolução Socialista viria abalar profundamente este estado de coisas e colocar a mulher em outro patamar na luta pelos seus direitos. Na verdade, a reviravolta já havia se iniciado meses antes quando o governo provisório, sob a direção de Kerenski, sob a pressão das massas insurgentes, especialmente das mulheres, promulgou o direito ao voto feminino.

A Rússia revolucionária foi o primeiro grande país europeu a instituir tal direito. O segundo foi a Alemanha, após a revolução operária de 1918. A França e a Itália só viriam instituir o sufrágio feminino em 1945, após a vitória estrondosa das forças de esquerda antifascistas. A conquista dos direitos políticos e sociais das mulheres, direta e indiretamente, sempre esteve ligada aos avanços da revolução socialista no mundo.

Quatro dias após a tomada do poder, em outubro de 1917, os bolcheviques estabeleceram para as mulheres a jornada de 8 horas diárias de trabalho e proibiram-lhes o exercício de serviços noturnos e nas minas. Logo em seguida, aprovaram subsídios à maternidade e uma licença remunerada de oito semanas antes e oito semanas depois do parto para a mulher trabalhadora. 

A nova legislação, também, determinou que: “o salário das mulheres e dos homens fossem iguais quando efetuassem o mesmo trabalho e na mesma quantidade”. Como disse Evelyne Sullerot, “pela primeira vez uma nação proclamava o princípio de ‘para trabalho igual, salário igual’”.  Um sonho distante para muitas mulheres do mundo capitalista naquela oportunidade.

Outro sinal de que as coisas mudariam para as mulheres na nova ordem foi a indicação da líder socialista e feminista Alexandra Kollontai para o cargo de Comissária do Povo de Assistência Pública – título equivalente ao de ministro de Estado. Assim, Kollontai foi a primeira ministra da história. Embora tenha ficado poucos meses no cargo, é um fato que merece ser destacado. 

John Reed no seu antológico livro Dez dias que abalaram o mundo descreveu este momento histórico: “Alexandra Kollontai, nomeada em 3 de novembro para o Comissariado da Assistência Pública, foi saudada por uma greve geral dos funcionários. Só quarenta deles se conservaram nos seus postos. Os pobres nos asilos estavam quase nus. Delegações de inválidos caindo de fome, órfãos com as faces encovadas e lívidas, assaltaram o edifício. Kollontai, com os olhos rasos de água, foi obrigada a mandar deter os grevistas para obrigá-los a entregar as chaves das salas e dos cofres. E, quando as recebeu, verificou que o antigo ministro, a Condensa Panina, havia levado todo o dinheiro existente, negando-se a entregá-lo sem uma ordem da Assembleia Constituinte” (REED, 1978:232). A burguesia e a direita socialista não estavam dispostas a aceitar alguém com Kollontai num Ministério até então sob controle do clero e dos filantropos burgueses.

A primeira Constituição soviética estabeleceu que as mulheres desfrutariam de “direitos iguais aos homens em todos os terrenos da vida econômica, pública, cultural, social e política”. O Código Penal, por sua vez, determinou punições para os que buscassem impedir que isto se realizasse.

Após a Primeira Guerra Mundial, com a volta dos homens dos campos de batalhas, grande parte das mulheres foi desalojada dos postos que haviam assumido nas empresas. Na Rússia revolucionária, devido à ocupação estrangeira e à guerra civil, os homens permaneceram em armas até 1921. Quando o conflito terminou tudo indicava que as russas teriam o mesmo destino das mulheres dos demais países que participaram da guerra.

Mas, esta tendência prejudicial à emancipação da mulher foi detida por intervenção direta do governo soviético. Em 1924, tomaram-se medidas concretas para impedir que as mulheres fossem demitidas e substituídas por homens. Uma nova legislação proibiu a demissão de mães solteiras ou separadas. Naquele mesmo ano criaram-se incentivos especiais e foram contratadas 217 mil novas operárias. Isto, segundo os bolcheviques, era uma necessidade política do socialismo.

Para que pudessem cumprir novas e maiores responsabilidades, as mulheres foram integradas massivamente nos cursos técnicos e superiores. Em 1928 o número de mulheres nestes cursos era de 83.137 mil e em 1933 já havia subido para 548.832 mil (SULLEROT, 1970:191). Uma verdadeira revolução educacional feminina. A maior já vista na história até então.

Quando teve início o processo de industrialização forçada e colocou-se um fim na Nova Política Econômica, em 1929, as mulheres representavam 34,2% dos empregados nas indústrias e em 1933 já constituíam 37,7% da mão-de-obra. O maior símbolo daquela fase foram as sete mil motoristas de tratores. No Ocidente eram usadas como exemplos negativos da masculinização e degradação das mulheres no socialismo.

Não somente no plano do trabalho e da educação as mulheres soviéticas foram beneficiadas. Uma lei aprovada em dezembro de 1917 estabeleceu que o casamento passava a ser uma “união livre e aberta de um homem e uma mulher” e, portanto, poderia “ser dissolvido, de acordo com a vontade dos dois cônjuges, bem como de acordo com o desejo de apenas um deles”. Em caso de comum acordo o processo tramitava em menos de duas semanas. Escreveu Alexandra Kollontai: “o divórcio deixou de ser um luxo acessível aos ricos; daqui em diante, a mulher operária não terá que solicitar durante meses, ou até durante anos, um passaporte para se tornar independente de um marido brutal, ou ébrio, que a espanca” (KOLLONTAI e LAFAGUE, 1979:47).

Mas, lembrou Heleith Saffioti, “a instituição do divórcio tem que ser vista dentro desse clima de moralidade retratado por Lênin. Não se trata de aplicá-lo em quaisquer circunstâncias, tornando uniões precárias e pouco duradouras, mas de legalizar as separações irremediáveis, dando à mulher o direito de se desligar juridicamente de um comparsa que não lhe convém. O divórcio é, assim, considerado peça fundamental de um programa de integração da mulher na sociedade em pé de igualdade com os homens” (SAFFIOTI, 1976:88). Veremos a posição de Lênin mais abaixo.

No mesmo mês de dezembro outro decreto deixou de reconhecer a validade do casamento religioso. No início do ano seguinte, 1918, seria aprovado um Código da Família que regulamentava o casamento civil.

Por fim, o “país dos sovietes” é que, em primeiro lugar, legalizou o aborto, dando às mulheres o direito sobre o seu próprio corpo. O decreto de outubro de 1920 afirmava: “O governo dos operários e camponeses (…) faz, em grande escala, uma sistemática propaganda contra os abortos e prevê, no caminho da estabilidade do regime socialista e dos progressos à maternidade e à infância, a extinção gradual desse fenômeno perigoso. Mas, na hora atual, as superstições de ordem moral herdadas do passado e a pressão das condições econômicas do momento ainda continuam a encaminhar certa parte da população feminina aos riscos desta operação. O Comissariado do Povo para a Saúde Pública e o Comissariado da Justiça, decretam:

1) A operação do aborto, efetuada livremente e a título gratuito, é autorizada pela lei, com a condição de que ela seja praticada nos hospitais soviéticos, onde o máximo de segurança pode ser dado à paciente; 2) uma proibição formal para efetuar esta operação é dirigida contra toda a pessoa sem diploma de médico; 3) as parteiras culpadas pela realização dessa operação são privadas do direito de exercer sua profissão e são citadas perante o tribunal popular; 4) todo médico que, por motivos de lucros pecuniários, tenha feito esta operação fora das condições exigidas será citado perante o tribunal” (NUNES, 2006).

Damos a palavra, novamente, à ministra Kollontai: “a República dos trabalhadores reconheceu que o abordo não era um delito. Essa lei foi promulgada por iniciativa e com a fervorosa participação da seção das mulheres (…). Reconhecemos que a URSS sofre não de um excesso de força de trabalho, mas, ao contrário, carece dela (…). Como então se pode decretar que o abordo não é condenável? (…) O abordo é um fenômeno ligado ao problema da maternidade, resulta da situação precária das mulheres (…). O abordo existe e floresce em todos os países, e nem leis nem medidas de repressão puderam extirpá-lo. (…) Mas a ajuda clandestina às mulheres grávidas só serve para mutilá-las (…). Um abordo feito nas condições de uma intervenção cirúrgica normal é muito menos prejudicial, muito menos perigoso” (KOLLONTAI, 1982:99-100).

Existiam limites à sua aplicação – vinculados à saúde e à segurança da mulher. O aborto era permitido apenas até os três primeiros meses da gravidez e exigia um parecer médico sobre os riscos da operação. Ana Lúcia Nunes constata que “o código penal soviético punia severamente a realização dos abortos fora das condições especificadas na lei. A pena poderia ser, dependendo do caso, prisão ou multa; e penas mais graves quando a ação tinha caráter profissional mercenário, realizada sem o consentimento da mulher ou a levava à morte” (NUNES, 2006). Sem dúvida, as melhores condições da gestação, parto e maternidade ajudaram a reduzir significativamente a mortalidade infantil na URSS nas décadas de 1920 e de 1930.

Mas, existiam regiões econômica e culturalmente muito atrasadas no interior das Repúblicas Soviéticas. Locais nos quais as conquistas femininas demoraram a chegar e onde elas encontraram grandes resistências. Mesmo ali a revolução foi fazendo seu trabalho profilático, ainda que lentamente.

A jornalista comunista Anna Louise Strong, que visitou a URSS no final dos anos 1920, deu o seu testemunho sobre a cultura reacionária que ainda persistia nestas regiões e a atitude ativa do poder soviético para superá-la. Mesmo com o risco de cansar os leitores, citamos uma longa passagem de um de seus artigos sobre a situação das mulheres na Ásia soviética: 

“Ali, as mulheres eram tratadas como bens semoventes, vendidas em matrimônio. Mesmo assim, quando muito jovens, e nunca, depois disso, eram vistas em público sem o horroroso véu preto feito com crina de cavalo tecida, que cobria toda a face, dificultando a respiração e a visão das mulheres. A tradição conferia aos maridos o direito de matar as esposas caso retirassem o véu e os mulás, sacerdotes muçulmanos, justificavam tal prática através da religião”.

“Quando visitei Tashkent pela primeira vez, em 1928, uma conferência de mulheres comunistas estava denunciando: ‘Nossas camaradas estão sendo violentadas, torturadas e assassinadas. Por isso, ainda este ano, teremos que acabar com essa horrorosa obrigação do uso de véus; este deve ser um ano histórico’”. 

“Enquanto isso, incidentes chocantes deram razão a esta resolução. Houve o caso da garota de uma escola de Tashkent, que recebeu férias para que pudesse participar de agitações pelos direitos das mulheres na aldeia de sua casa. Como resposta, seu corpo desmembrado foi mandado de volta à escola em uma carroça, onde se lia: Isto é para a liberdade de suas mulheres”.

“Uma outra mulher havia recusado as atenções de um proprietário de terras e casara-se com um camponês comunista. Em consequência, um grupo de dezoito homens, incitados pelo proprietário, a violou no oitavo mês de gravidez e lançou seu corpo em um rio”. Mas, “ao tomar conhecimento deste fato, o Poder Soviético usou várias armas para libertar as mulheres, como a educação, a propaganda e a lei em todas as partes. Grandes julgamentos públicos condenaram duramente os maridos que assassinaram suas esposas. Com a pressão das novas exigências, juízes confirmaram a pena de morte para os praticantes do que o velho costume não considerava como crime” (STRONG, 2003). Eis o Estado socialista agindo a favor da libertação da mulher.

Lênin e as mulheres

Ao pensar nas grandes conquistas das mulheres sob o socialismo não podemos desassociá-las do nome do líder revolucionário Vladimir Ilitch Lênin. Uma de suas máximas, seguindo a velha tradição socialista, era “o proletariado não pode lograr a liberdade completa sem conquistar a plena liberdade para as mulheres”. Em 1902 ele é que propôs a inclusão no programa do Partido Social-Democrata Russo do item: “estabelecimento da plena igualdade de direitos do homem e da mulher”.

O projeto de Programa, aprovado em 1903, incluía, entre outras coisas, a proibição do trabalho noturno, excetuando-se naqueles que fosse absolutamente necessário por razões técnicas. Propunha ainda a proibição do trabalho feminino em ramos que fossem prejudiciais ao seu organismo. Também apregoava o fim do trabalho infantil.

Em 1907, Lênin ficou do lado de Clara Zetkin quando, no Congresso da Internacional Socialista, ela condenou as políticas de alguns socialistas que colocavam no centro de suas reivindicações o voto masculino e relegavam para um segundo momento a luta pelo voto feminino. Escreveu ele: “Os social-democratas alemães, sobretudo Zetkin, protestaram quando os austríacos iniciaram a campanha pelo sufrágio universal. Zetkin declarou na imprensa que de maneira alguma se devia adiar a reivindicação do sufrágio feminino; que os austríacos sacrificavam de maneira oportunista os princípios por consideração de conveniência e que, longe de debilitar o alcance da agitação e o impulso do movimento popular, a defesa, com a mesma energia do direito eleitoral feminino, daria maior vigor ao movimento popular. (…) Por essa discussão entre as social-democratas austríacas e alemãs, poderá o leitor constatar quão severa é a atitude dos melhores marxistas ante os menores desvios de uma tática revolucionária conseqüente de princípios” (LÊNIN, 1980:21-22).

Lênin, ainda, se pronunciou decididamente a favor do divórcio livre. “Não se pode ser democrata e socialista, afirmou, sem exigir imediatamente a plena liberdade de divórcio, pois a falta desta liberdade implica a máxima ofensa ao sexo oprimido, da mulher, ainda que não seja nada difícil compreender que o reconhecimento da liberdade de deixar os maridos não significa convidar a todas as mulheres procederem desta forma”.

No entanto, continuou ele, “no capitalismo, o direito ao divórcio, como todos os direitos democráticos, sem exceção, é difícil de ser exercido, é convencional, limitado, estreito e formal; não obstante, nenhum social-democrata honesto tomará por socialista, nem sequer democrata, a quem negue este direito. Aí está o essencial. Toda ‘democracia’ consiste proclamar e realizar ‘direitos’, cuja realização no capitalismo é muito escassa e muito convencional; porém, sem esta proclamação, sem a luta pela concessão imediata dos direitos, sem a educação das massas no espírito de tal luta, o socialismo é impossível” (LÊNIN, 1980:41-44).

O líder bolchevique, por outro lado, era um crítico ácido das teses do “amor livre”, conforme defendidas por várias feministas, inclusive socialistas. Em janeiro de 1917 pediu que sua amiga Inessa Armand suprimisse de um de seus folhetos a “reivindicação (feminina) do amor livre”. A preocupação de Lênin era de que esta “reivindicação” fosse confundida com a defesa da licenciosidade amorosa. Numa outra carta propôs contrapor “o amoral e sujo matrimônio pequeno-burguês- intelectual-camponês sem amor (…) ao matrimônio civil proletário com amor”  (LÊNIN, 1980:39).

Nas longas conversas que teve com Clara Zetkin, Lênin expressava suas opiniões e apreensões sobre o debate em curso sobre o “amor livre”, que ganhava corpo entre a juventude: “Ainda que eu não tenha nada de asceta sombrio, a chamada ‘nova vida sexual’ da juventude – e frequentemente dos adultos – me parece com bastante frequência (…) uma variedade das respeitáveis casas burguesas de tolerância. Tudo isto não tem nada em comum com o amor livre, como o entendem os comunistas. Você naturalmente conhece a famosa teoria de que, na sociedade comunista, satisfazer o desejo sexual e as inquietudes amorosas é uma coisa tão simples e de tão pouca importância como beber um ‘copo d’água’ (…) Os partidários dela afirmam que é uma teoria marxista (…). Creio que a famosa teoria do ‘copo d’água’ não tem nada de marxista e, além disso, é antissocial (…). Beber água é realmente coisa individual. Porém, no amor participam dois e surge uma terceira, uma nova vida. Aqui, aparece já o interesse social, surge o dever ante a sociedade (…). Não que eu queira, com minha crítica, pregar o ascetismo. Nem pensar em tal coisa. O comunismo deve trazer consigo não o ascetismo, mas a alegria de viver e o otimismo suscitado também pela plenitude da vida amorosa”. E concluiu irônico: “Nem um monge nem um Dom Juan, nem tampouco um filisteu alemão como termo médio” (LÊNIN: 1980: 108-110).

Antes mesmo que outros revolucionários o fizessem, em 1913, num artigo contrário ao neomalthusianismo, Lênin defendeu abertamente o direito das mulheres ao aborto: “somos incondicionais inimigos dos neomalthusianos (…). Mas, isto não nos impede de modo algum, de exigir a abolição absoluta de todas as leis que castigam o aborto ou a difusão de obras de medicina, nas quais se expõem medidas anticoncepcionais etc. Semelhantes leis não indicam senão a hipocrisia das classes dominantes. Estas leis não curam as doenças da sociedade capitalista, mas as fazem particularmente malignas e perniciosas para as massas oprimidas” (LÊNIN, 1980:29).

Ele sabia da importância da luta das próprias mulheres trabalhadoras para o seu processo de emancipação. Por isso afirmou em tom provocativo: “a emancipação dos operários deve ser obra dos próprios operários, e da mesma maneira a emancipação das operárias deve ser obra das próprias operárias”. As mulheres não poderiam ficar à espera da vontade soberana dos homens, mesmo sendo eles sinceros revolucionários.

Em As tarefas do proletariado em nossa revolução, escrito em abril de 1917, Lênin afirmou: “Sem incorporar a mulher na participação independente tanto na vida política em geral como no serviço social permanente que deve prestar todo cidadão, é inútil falar só em socialismo, e nem sequer de uma democracia completa e estável” (LÊNIN, 1980:46).

Nas suas propostas para a revisão do Programa do Partido Bolchevique, elaboradas também em abril de 1917, entre outras coisas propugnou: “Proibição do trabalho feminino nos ramos nos quais é prejudicial para o organismo feminino; proibição do trabalho feminino noturno; liberar a mulher do trabalho de oito semanas antes e oito semanas depois do parto, mantendo o salário completo durante todo este período, com assistência e medicamento gratuitos” e “instalação em todas as fábricas e demais empresas onde trabalhem mulheres, de creche para crianças de peito e de pouca idade e de locais para as amamentar; liberar as mulheres que amamentem do trabalho cada três horas no máximo, e não menos de meia hora cada vez; concessão de subsídio às mães que amamentam e redução de sua jornada de trabalho a seis horas” (LÊNIN, 1980:51).

Menos de dois anos após a Revolução de Outubro, no artigo Uma grande Iniciativa, Lênin afirmava: “Nenhum partido democrático do mundo, em nenhuma das repúblicas burguesas mais avançadas, tem feito, neste aspecto, em dezenas de anos, nem a centésima parte do que temos feito no primeiro ano do poder soviético. Não temos deixado pedra sobre pedra (…) das vergonhosas leis que estabeleciam a inferioridade jurídica da mulher, que punham obstáculo ao divórcio e exigiam para concretizá-lo requisitos odiosos, que proclamavam a ilegitimidade dos filhos naturais (…). Em todos os países civilizados subsistem numerosos vestígios destas leis, para a vergonha da burguesia e do capitalismo. Temos mil vezes razão para nos sentirmos orgulhosos do que temos feito neste sentido. Entretanto, quanto mais nos desfazemos do fardo de velhas leis e instituições burguesas, tanto mais claro vemos que somente preparamos o terreno para a construção, porém esta ainda não começou” (LÊNIN, 1980:65).

Em outro artigo, O poder soviético e a situação da mulher (1919), ele escreveu: “Em palavras, a democracia burguesa promete igualdade e liberdade. Mas, de fato, as repúblicas burguesas, por mais avançadas que sejam, não têm dado à mulher, que constitui a metade do gênero humano, plena igualdade com o homem ante a lei nem a têm libertado da tutela e da opressão do homem (…). Abaixo a vil mentira! Não pode haver, não há, nem haverá ‘liberdade’ verdadeira enquanto os privilégios que a lei concede aos homens impeçam a liberdade da mulher” (LÊNIN, 1980:76).

O orgulho de Lênin era plenamente justificado, em poucos anos a URSS tinha realizado plenamente o programa do movimento feminista de então: direitos políticos iguais, salários iguais, direito ao divórcio e ao aborto (livres e gratuitos), ensino misto e igual para os dois sexos, rede de creches e escolas públicas etc. A União Soviética passou a ser um exemplo para as mulheres avançadas de todos os países.

Também era claro para Lênin que as coisas não poderiam andar no mesmo ritmo em todo o imenso território soviético. Ele sabia que “a igualdade na lei não significava igualdade na vida”. Era necessário que as trabalhadoras conseguissem a igualdade com os trabalhadores não somente perante a lei, mas também na vida.

Os Debates da década de 1920

Entre 1925 e 1926 a sociedade soviética foi sacudida pelo debate em torno do novo Código da Família. Nele voltaram à tona temas polêmicos como a emancipação da mulher, a moral socialista, o papel do Estado na defesa da família e das crianças etc. Como já vimos, o primeiro Código da Família soviético foi promulgado no final de 1918. Ele instituiu na Rússia soviética, pela primeira vez, o casamento civil e estabeleceu que “só o casamento civil laico, registrado no órgão apropriado dos atos de estado civil, implica direitos e deveres dos esposos”.

O Comissário do Povo da Justiça, Koursk, explicaria a diferença entre os dois Códigos: “Enquanto o Código de 1918 logo nos seus primeiros artigos centrava a atenção sobre a criação de órgãos de registro, quer dizer, sobre a regulamentação das relações matrimoniais e familiares, o novo projeto concentra a sua atenção sobre a fixação dos direitos e deveres matrimoniais, sem ter em conta o fato de o casamento ter sido ou não registrado” (VOLKOVA, 1978:95). Portanto, segundo ele, significava um avanço sobre o Código anterior. Quando ocorreu a Revolução de Outubro não havia casamento civil, apenas o religioso. Então, a primeira medida do novo Estado foi trazer o controle para si e tirá-lo das mãos do clero conservador. Assim, passaram a ser considerados apenas os casamentos registrados nos órgãos estatais. Se a lei conseguiu separar o Estado da Igreja manteve uma disparidade de direitos entre os casamentos reconhecidos (antes pela Igreja e agora pelo Estado) e os não reconhecidos. Isso ocasionava danos aos últimos na hora da separação – especialmente para as mulheres com filhos.

A esta lacuna jurídica é que a lei de 1926 procurava preencher. A legislação tinha de dar conta da realidade existente e não o inverso. A lei tinha de se adaptar ao fato de centenas de milhares de casais conviverem maritalmente, mas se recusarem por inúmeras razões a registrar em cartório a sua situação – e esse tipo de relação resultava em certo patrimônio material e filhos. Quando ocorria a separação estava criado um vazio jurídico que pesava contra a mulher, pois era esta que ficava com o filho e não podia requerer pensão alimentar, e partilhas de bens, restritas às separações dos casamentos registrados.

A filosofia de um Estado Socialista deveria ser proteger todas as crianças e mulheres independentemente dos casamentos terem sido registrados ou não. Por isso a proposta do novo Código estendia para todas as mulheres separadas os mesmos direitos.

Um dos artigos do novo Código, por exemplo, proclamava: “Estabelece-se o registro do casamento com o objetivo de facilitar e salvaguardar os direitos pessoais e os direitos de propriedade, assim como os interesses dos cônjuges e das crianças”. Mas ele não era o único meio de convalidação de uma união dos cônjuges.

Afirmou outro defensor do novo Código, Brandenbourgsky: “Na lei soviética a família e as relações familiares se assentam no parentesco de fato e não na formalidade do casamento registrado” e concluiu: “o casamento tem por base não o registro, mas o puro fato da coabitação conjugal” (VOLKOVA, 1978:96).

Prevendo a futura legislação na transição ao comunismo, Koursky escreveu: “Virá o tempo, estou disso perfeitamente convencido, em que colocaremos o casamento registrado e o casamento de fato em pé de igualdade sob todos os pontos de vista e aboliremos o registro (…). O legislador deve (…) dar um passo em frente e reconhecer que o registro é a bem dizer mais do que uma transição para uma forma mais elevada da união liberta de toda e qualquer formalidade” (VOLKOVA, 1978:97).

Segundo os comunistas – assentados nas prospecções de Marx e Engels –, poderia se prever que, no futuro, o Estado (e depois a sociedade autorregulada) assumiriam integralmente as necessidades das crianças. Assim, tais mecanismos legais, como registros de casamentos e de divórcios, necessidade de pensões e indenizações monetárias, seriam extintos naturalmente.    

O Código soviético de 1927, sem dúvida, foi o mais avançado do mundo até aquele momento. Acabava com a predominância masculina no casamento, característica de todas as outras legislações. Punha fim à distinção entre casamento registrado e o “de fato”, entre filhos legítimos e “bastardos”, dava garantia às mulheres e aos filhos de direitos até então inexistentes. Muitas dessas concepções, por pressão do movimento socialista e feminista, passariam a ser incorporadas às legislações das principais democracias burguesas ocidentais nas décadas que se seguiram. Os liberais não podem tirar dos comunistas este pioneirismo.

Mas, também, existiram aqueles que no interior do Partido Bolchevique se colocavam contra a proposta de alteração do Código da Família de 1918. Eles defendiam que o Estado soviético deveria regulamentar de maneira mais rigorosa as relações familiares. O principal mecanismo de controle familiar e social deveria ser o registro civil.

Segundo eles, o registro civil seria uma exigência do nível econômico e cultural do povo russo. Belodorov afirmou: “O Estado não pode dizer: é-me totalmente indiferente que o casamento dure ou não dure; ou que não se dissolva muito frequentemente; com efeito, da estabilidade dos casamentos dependem inúmeras consequências de importância inegável para a sociedade” (VOLKOVA, 1978:100).

Os contrários à nova legislação acreditavam que o casamento obrigatório seria uma arma ainda necessária contra o casamento religioso, que continuava a predominar em várias regiões da Rússia e contra a poligamia, ainda praticada pelas populações muçulmanas. A legislação ainda deveria ter um caráter organizador e pedagógico nesta primeira fase da construção do socialismo. Uma certa estabilidade na família deveria existir para que os elementos da nova sociedade pudessem se manter e se desenvolver.

Riazanov foi um dos mais azedos críticos da proposta de novo Código. Na sua crítica utilizaria o argumento de autoridade, citando Lênin que havia morrido alguns anos antes: “Segundo a nova lei, o registro dos casamentos é efetuado no interesse do Estado e da sociedade. Da antiga lei, de que Lênin dizia com razão ser uma das leis mais radicais da Revolução de Outubro, querem os nossos demasiados zelosos inovadores fazer uma simples lei burguesa (…). Bom trabalhador do partido comunista, o camarada Preobrajensky sabe perfeitamente que toda a discussão sobre este assunto não passa de conversa burguesa e anarquista”. “Vivemos hoje num período transitório em que a sociedade evolui para uma sociedade socialista. Já realizamos as condições prévias; o poder está nas mãos do proletariado e os principais meios de produção estão nas mãos da sociedade. Mas não realizamos ainda o socialismo. É uma tarefa para um grande número de anos”. “A própria sociedade socialista é apenas uma primeira fase da evolução para o comunismo, que é uma fase superior. Sob o regime socialista libertar-nos-emos de toda uma série de normas jurídicas e outras que ainda conservamos no período de transição. Hoje, podemos apenas atenuar o efeito dessas normas, para que elas não perturbem o desenvolvimento do socialismo” (RIAZANOV, 1975:52-54).

Riazanov foi derrotado no debate e o novo Código seria aprovado pela ampla maioria do partido e dos órgãos soviéticos. Alguns anos mais tarde Riazanov seria afastado do Partido Comunista por “desvio de direita”, acusado de menchevismo. Ironicamente uma versão mais radicalizada – e bem mais conservadora – das teses de Riazanov seria defendida pela alta cúpula do Partido e do Estado Soviético, sob a direção de Stalin. Muitas das ideias presentes no Código de 1927 seriam consideradas ultrapassadas e condenadas como desvio de esquerda.

Impasses e regressões

A partir de meados da década de 1930 ocorreu um arrefecimento do debate em torno do problema da emancipação da mulher. Predominou amplamente uma visão economicista (produtivista) e perderam-se as múltiplas dimensões da questão feminina – que se traduziu no campo político, teórico, cultural, moral etc.

Podemos dizer que os componentes que conduziram à crise do socialismo foram os mesmos que conduziram à crise do feminismo soviético, pois o desenvolvimento do socialismo acompanha o desenvolvimento do processo de emancipação da mulher. Um se alimenta no outro. Quando um retrocede o outro também tende a retroceder. Esta é uma conclusão dos clássicos do marxismo.

Em 1934, pela primeira vez desde 1917, a homossexualidade foi criminalizada. Dois anos depois, em 1936, uma nova lei sobre a proteção da mãe e da criança proibiu a realização do aborto e passou a se exercer forte repressão sobre aqueles que a praticavam. A nova lei estipulava que a mãe receberia uma reprimenda pública e pagaria uma multa. O médico que o realizasse cumpriria uma pena que variaria de 2 a 3 anos de prisão.

Stalin afirmou no alto de sua autoridade de principal dirigente do Estado Soviético: “O aborto que destrói a vida é inadmissível em nosso país. A mulher soviética tem os mesmos direitos que o homem, porém isso não a exime do grande e nobre dever que a natureza lhe há designado: ser mãe da vida”.

Trotsky retrucou: “Eles esqueceram visivelmente que o socialismo deveria eliminar as causas que levam a mulher ao aborto e não fazer intervir a polícia na vida íntima da mulher para lhe impor as ‘alegrias da maternidade’”. “No outono passado, o Izvestia revelou de súbito que ‘cerca de mil mulheres que se dedicavam nas ruas de Moscou ao comércio secreto do seu corpo’, acabavam de ser detidas. Entre elas, cento e setenta e sete operárias, noventa e duas empregadas, cinco estudantes etc. O que as lançava nas ruas? A insuficiência de salário, a carência ou a necessidade ‘de arranjar algum suplemento para comprar sapatos ou um vestido’. Em vão tentamos conhecer, mas só em aproximação o conseguimos, as proporções deste mal social (…). Ninguém sonhará em censurar particularmente o regime soviético por esta praga tão velha como a civilização. Mas é imperdoável falar no trunfo do socialismo enquanto existir a prostituição” (TROTSKY, 1977:172).

“A verdadeira família socialista, libertada pela sociedade das pesadas e humilhantes tarefas cotidianas, não terá necessidade de nenhuma regulamentação. Até mesmo a ideia da lei sobre o divórcio e o abordo não lhe parecerá melhor do que a recordação das casas de prostituição ou dos sacrifícios humanos. A legislação de outubro tinha dado um passo firme na direção dessa família. O estado atrasado do país sob os aspectos econômico e cultural provocou uma cruel reação. A legislação termidoriana recua para modelos burgueses, não sem cobrir a sua retirada com frases falsas sobre a santidade da ‘nova’ família” (TROTSKY, 1977:178).

Estas medidas regressivas coincidiam com o crescimento da repressão política contra a oposição e o início dos chamados processos de Moscou. Graças à repressão e à violação da legalidade socialista na URSS, sob a direção de Stalin, a “teoria progredia de maneira insuficiente, passava por uma fase de relativa estagnação. Surgiram variados problemas decorrentes do desenvolvimento objetivo da sociedade em construção. Escasseavam respostas teóricas a tais problemas, gerando ausência de perspectiva. Medrava, em certa medida, o subjetivismo, o empirismo e o dogmatismo” (AMAZONAS, 2005:256). Isto teve consequências no campo das relações sociais – que tinha como um de seus elementos centrais a relação entre homens e mulheres.

Entre 1944 e 1946 vários livros e brochuras de divulgação das mudanças da situação da mulher e da família circularam pelo mundo. Destacamos aqui Maternidade, matrimonio y família na lei soviética, de Sverdlov e A mulher na União Soviética, de Serebrennikov. Através deles, especialmente o de Sverdlov, é possível acompanhar claramente as mudanças ocorridas na construção teórico-ideológica e nas políticas públicas relativas à mulher e à família na URSS. Sobre o novo papel da família soviética escreveria Sverdlov: “O Estado Soviético vê na família a base da educação normal e sã das crianças. A família desenvolve e afiança no homem aquelas qualidades que devem ser norma de conduta de cada cidadão do país dos sovietes: o sentimento de solidariedade, de ajuda mútua, de responsabilidade pelo bem-estar da coletividade”. “O Estado está vitalmente interessado no crescimento da população, que só pode ser assegurado ali onde se há criado as condições necessárias para uma vida normal da família. Deste modo e com este fim, o Estado trata de afiançar fortemente a família”. “O Estado tem fundamentos sobrando para ver na família a célula em que pode apoiar-se e que é capaz de sustentá-lo. Por isso o Estado vê na família sua base real. Ao afiançar à família, se afiança a si mesmo, consolida sua força, sua potência” (SVERDLOV, 1946: 21-22).

Foi visando a “estabilizar” e “fortalecer” a família soviética que um decreto de 1944 estabeleceu que “somente os casamentos legais assegurariam direitos e deveres para o marido e para a mulher. As pessoas vivendo maritalmente deveriam legalizar a sua união”. Assim, somente os casamentos registrados e os filhos assim concebidos passariam a ser reconhecidos pelo Estado. Voltava-se, por via indireta, à antiga distinção jurídica entre filhos legítimos e naturais.

Escreveu Sverdlov: “A lei soviética reconhece o valor jurídico só daquele casamento que se realiza ante o poder civil e se registra nos órgãos de inscrição de atas de matrimônio (…). Até 8 de julho de 1944 a lei soviética reconheciam também o matrimônio não legalizado. A coabitação efetiva do homem e a mulher, ainda que não tivesse registrado nos organismos da SAGS (Registro de atas do Estado civil) trazia consigo os mesmos direitos e deveres do matrimônio registrado (para a solução de questões sobre os alimentos, repartições de bens, direito de herança).”

“O decreto de 8 de julho de 1944 introduziu sérias modificações neste assunto. Agora somente através da legalização do matrimônio, os cônjuges têm direito aos alimentos, à parte dos bens adquiridos durante o matrimônio, dos bens depois da morte do esposo etc. De tal maneira o ‘matrimônio efetivo’ carece de proteção jurídica”.

O não registro pareceria, aos olhos do Estado, um fenômeno “que expressa atitudes frívolas, irreflexivas, em relação ao matrimônio e à família (…). O Estado soviético está interessado na legalização do matrimônio, já que isto possibilita influir sobre as relações matrimoniais num sentido útil e necessário (…)”. O registro seria “um ato mediante o qual Estado soviético, com toda força de sua autoridade, reconhece estas relações matrimoniais, as aprova, as apoia e as coloca sob sua defesa e proteção” (SVERDLOV, 1946:32).

O divórcio, por sua vez, somente seria concedido em casos considerados graves e após a decisão de um juiz. Desde a década de 1930 o divórcio passou a ser pago e em caso de reincidência ele aumentava de valor. A partir de então o casal que quisesse se separar deveria pensar duas vezes, pois teria de arcar com o ônus financeiro. Deixamos novamente a palavra com Sverdlov: “Em 1936, o governo soviético considerou necessário – para eliminar a possibilidade de uma atitude ligeira em relação à família e aos deveres familiares – introduzir algumas emendas na lei sobre o divórcio. Foi estabelecida como obrigatória a presença no SAGS dos cônjuges que desejam se divorciar. Foi introduzida a anotação do passaporte de divórcio e elevado o custo do seu registro”. “Um passo posterior foi dado pelo Decreto do Presidium do Soviete Supremo da URSS, de 8 de julho de 1944. Ao não introduzir de maneira alguma a proibição do divórcio, permitido, se para ele houver motivo sério. O direito soviético introduz normas restritivas para impedir o divórcio não fundamentado e evitar a atitude ligeira diante do casamento”. “Tendo estabelecido o motivo, o Tribunal Popular está obrigado a tomar medidas para reconciliar os esposos. Se o tribunal não conseguir reconciliar, a causa será examinada por um tribunal de instância superior (…). Deste modo, a nova lei concede ao tribunal o direito de anulação do matrimônio ou negá-lo” (SVERDLOV, 1946:42-43).

Aprovada a separação legal, os requerentes deveriam pagar 100 rubros ao juizado e entre 500 e 2000 rubros para o SAGS. Os trabalhadores com menor remuneração eram os que mais sofriam com tais medidas restritivas.

No final da Segunda Guerra Mundial o Estado soviético ainda criaria condecorações para as mulheres que tivessem mais filhos: a de “Glória maternal” para aquelas que tivessem entre sete e nove filhos e a de “Mãe heroica” para aquelas com dez ou mais filhos.

Num documento soviético se podia ler: “os interesses da mulher como mãe (…) estão melhor assegurados quando mais sólidas e constantes sejam as relações entre os esposos. (…) Precisamente a família assegura as condições normais para o nascimento e a educação dos filhos, cria as premissas mais favoráveis para que a mulher cumpra com seu nobre e alto dever de mãe”. Fortaleceu-se, assim, a imagem da mulher apenas enquanto mãe. Um estereótipo com o qual a Revolução de 1917 tentou acabar.

Nestes anos cresceu o moralismo no campo das relações familiares e sociais, que em tudo se distanciava do antigo espírito libertário forjado por Lênin e Kollontai. Em algumas regiões, por exemplo, foi reintroduzido o ensino separado entre meninas e meninos. Este clima se espalhou pelo movimento comunista internacional nas décadas de 1940 e 1950.

Alguns anos mais tarde, em 1950, um documento do PCF, a exemplo dos soviéticos, procurou justificar as alterações na legislação relativa à mulher e à família com tais medidas: “Os êxitos dos planos quinquenais consolidaram a família soviética. A partir do 2º Plano Quinquenal, a contínua elevação do nível de vida, o crescente bem-estar dos trabalhadores, a multiplicação das maternidades, das creches, das escolas, tornaram caduca e absurda a prática do abordo (…). A defesa e o desenvolvimento da família passaram a ser uma das preocupações primordiais do governo soviético (…). A guerra contra o invasor hitleriano tinha que impelir ao reforço da família. O decreto de 8 de julho de 1944 estabelece que ‘só o casamento legal’ assegura direitos e deveres para o marido e para a mulher. As pessoas vivendo maritalmente deverão legalizar a sua união. O divórcio só será concedido em casos importantes e após decisão do tribunal”. “Assim, a legislação soviética sobre a família, inspirada nas ideias do marxismo-leninismo, obedece, na evolução por que passa desde há 30 anos, à preocupação de libertar e defender a mulher. Esta preocupação conduziu o legislador soviético do divórcio livre ao divórcio regulamentado, do aborto legal à proibição do aborto. Multiplicou as instituições de ajuda à família, protegeu a mãe e o filho, deu à maternidade um lugar de honra ao recompensar as mães (em 1º de junho de 1949 contavam-se mais de dois milhões de mães de 5 a 6 filhos, com medalha da maternidade, 700 mil mães com 10 ou mais filhos, titulares da medalha de ‘mãe heroica’), aumentando-se nesta base os abonos e subsídios. O Estado soviético vela pela solidez e estabilidade da família. Porque a família abre ao indivíduo uma vida plena e total. É ela que educa as crianças no espírito do socialismo; é ela que assegura a capacidade de produção do país” (FREVILLE, 1950).

Apenas cinco anos depois, em 1955, o que era “caduco” e “absurdo” voltaria a ser permitido na URSS, novamente com os aplausos do PCF e demais partidos comunistas.

As razões de algumas destas medidas estavam ligadas às necessidades econômicas de incrementar a população – devido à aplicação dos planos quinquenais e a sangria em sua população ocasionada pela Segunda Guerra Mundial. Mas, a argumentação oficial era de que a proibição do aborto, do homossexualismo, do casamento livre, e os novos obstáculos impostos ao divórcio se deviam ao fato de a URSS ter entrado numa fase superior do socialismo, que a conduziria diretamente ao comunismo. Limitar os direitos das mulheres em nome da defesa do socialismo e do comunismo era um contrassenso político e teórico para qualquer marxista sério.

Nestes anos foi visível a redução do papel das mulheres no núcleo duro do poder de Estado e no Partido Comunista. A URSS não produziu mais nomes expressivos como Krupskaia, Alexandra Kollontai ou Inessa Armand. A explosão da participação política das mulheres, iniciada com a Revolução Russa, não foi concluída e refluiu. Os comitês femininos que jogaram um grande papel pós-revolução perderam força e desapareceram. O feminismo, inclusive na sua vertente socialista, passou a ser considerado um desvio pequeno-burguês.

Outro problema estava ligado às opções econômicas adotadas pelo governo soviético, expressas nos Planos Quinquenais. Sobre isso, escreveu Saffioti: “O grande esforço que a URSS concentrou na formação e desenvolvimento da indústria pesada retardou o aparecimento e crescimento da indústria de eletrodomésticos e de produtos alimentícios que notoriamente representam um grande auxílio à mulher economicamente ativa e que só agora estão sendo implementados”  (SAFFIOTI, 1976:89).

Volkova constata também que no Partido Comunista “o número de mulheres manteve-se por todo um período à volta de 20%; nenhum esforço foi feito no sentido de recrutar para o partido em proporções mais representativas do seu lugar na economia” (VOLKOVA, 1978:33). Em 1929 as mulheres representavam 13,7% dos membros do Partido; em 1941, 14,9%; em 1945, 17%; em 1950 subiram para 20,7% e se mantiveram no mesmo patamar nos anos seguintes – em 1970 chegou a 21%. O auge da participação no PCUS se deu no final da década de 1970 e início de 1979 que chegou a 25,6% de participação feminina no interior do Partido (PCUS, 1980:93).

Mas, o recuo não foi completo e a mulher soviética continuou, por longos anos, usufruindo de direitos que as mulheres no capitalismo estavam longe de conseguir. Lembramos apenas que o aborto e o divórcio livres não eram reconhecidos em quase nenhum país. Portanto, mesmo na sua fase mais “conservadora”, a URSS não ficou aquém de nenhuma das democracias ocidentais no campo do direito da família e da mulher.

Houve também um aumento gradual da participação da mulher no mercado de trabalho até o final da década de 1950. Em 1928 elas representavam 24% da mão de obra; em 1940, 39%; em 1945, 56%; em 1950, 47%; por fim em 1960, 57%. O boom de 1945 deveu-se à guerra mundial, mas em 1960 os mesmos índices seriam alcançados – embora tenha ocorrido uma relativa queda na participação nos anos seguintes. Em 1965 as mulheres representavam 49% dos trabalhadores e em 1970 51% (VOLKOVA, 1978:26).

Ao lado da alta porcentagem de mulheres no mercado de trabalho havia uma “divisão sexual do trabalho” menos assimétrica que em outros países. Na URSS as mulheres estavam distribuídas em quase todas as profissões. Isso não significa que não houvesse desajustes que desfavoreciam as mulheres – como o fato de as profissões predominantemente femininas terem sido, em geral, menos remuneradas.

Segundo Heleith Saffioti, “as mulheres representavam (em 1959) 54% das pessoas possuidoras de instrução superior, superior incompleta ou secundária especializada. Dentre as pessoas possuidoras de instrução superior e ocupadas na economia nacional, as mulheres representavam, em 1961, as seguintes porcentagens: engenheiros, 31%; agrônomos, zootécnicos, médicos veterinários; 41%, economistas, estatísticos, especialistas em mercadologia, 59%; juristas, 32%; médicos (dentistas não compreendidos), 74%; professores, especialistas tendo uma instrução universitária, bibliotecários, 67%” (SAFFIOTI, 1976:90). Na década de 1970 as mulheres representavam 31% dos membros do Soviete Supremo – contra 28% em 1966. Proporções bastante altas comparadas às dos países capitalistas no mesmo período.

Mesmo uma crítica ao stalinismo como Volkova foi obrigada a reconhecer que “a posição jurídica das mulheres soviéticas e o seu papel na produção encontram-se mais avançados em relação aos países capitalistas, sob todos os pontos de vista. São presentemente melhor educadas, vivem melhor e têm um estatuto social mais elevado do que antes da revolução. Desapareceram muitos dos aspectos negativos da era stalinista, que tornaram a sua vida particularmente difícil nos anos 1930 e 1940. A educação mista foi reintroduzida, o aborto voltou agora a ser autorizado e embora os divórcios continuem sendo pagos, não custam caro (…). Existe uma disponibilidade maior de bens de consumo (…) e um aumento dos equipamentos comunais que aliviaram o trabalho das mulheres nos últimos anos” (VOLKOVA, 197864).

Na mesma linha escreveu Heleith Saffioti: “a experiência soviética demonstra que, se a libertação da mulher e sua consequente integração na sociedade não se realizaram plenamente sob o regime socialista, foi sob este regime que ela atingiu seu maior grau” (SAFFIOTI, 1976::89-90). Aprender com os acertos e os erros desta rica experiência é necessário para que possamos retomar em outro patamar a luta pelo socialismo e pela emancipação das mulheres no século XXI.

Augusto C. Buonicore é historiador e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.

*Ensaio publicado originalmente no livro Revolução Russa: Processos, personagens e influências, publicado em 2007 pelo Centro Popular de Estudos Contemporâneos (CEPEC) de Goiás, e organizado por David Maciel, Cláudio Maia e Antônio H. Lemos. Republicado na coletânea do autor Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Augusto C. Buonicore Augusto Buonicore é historiador, mestre em Ciência Política pela Unicamp e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois

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