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Com 48 assassinatos em menos de 20 anos, povo Guajajara resiste às invasões

Entre 2006 e 2019, 44 casos de invasão foram registrados em terras indígenas onde ocorreram assassinatos de indígenas da mesma etnia
Renato Santana
CIMI
Brasília (DF)

Tradução:

Edward Said escreveu sobre o destino dos palestinos como, de algum modo, o de não terminar onde começaram, mas em algum lugar inesperado e remoto. Se o Oriente Médio parece uma fronteira distante, a realidade a aproxima das terras tradicionais no Brasil em busca de infligir ao destino dos povos indígenas a mesma sina dos palestinos. Não terminar onde começaram, mas em algum lugar inesperado e remoto.

Como em um pesadelo saído de um conto de Julio Cortázar, onde a casa vai sendo invadida cômodo a cômodo, confinando seus moradores ao diminuto espaço da despensa escura e apagada, os palestinos veem o governo de Israel se apossando de seus territórios, descumprindo acordos internacionais. Os Guajajara, autodenominados Tenetehar, ano após ano, veem os incêndios de origem criminosa, os madeireiros e os grileiros ocupando as terras demarcadas com o incentivo e a autorização do presidente da República, aliado do governo de Israel.

Se dezenas de palestinos entregam as vidas em defesa de seu chão, os Guajajara seguem também marcados por tal sina. O Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), registrou, nos anos 2000, pelo menos 48 casos de assassinatos de indígenas do povo Guajajara – 47 deles no Maranhão e um no Pará. O ano de 2019 já é o quarto a registrar mais assassinatos de Guajajara no período, com seis casos identificados até o dia 19 de dezembro, entre eles o de Erisvan Guajajara, de 15 anos, morto na cidade de Amarante. Nos últimos vinte anos, os maiores números de assassinatos Guajajara foram registrados nos anos de 2007 e 2016, com dez casos cada, e de 2012, com sete casos.

Entre 2006 e 2019, 44 casos de invasão foram registrados em terras indígenas onde ocorreram assassinatos de indígenas da mesma etnia

Tiago Miotto / Cimi
Indígenas do Pará e do Amapá protestam, em Brasília, contra a violência e os assassinatos de lideranças.

Segundo os dados, o território mais afetado pela violência contra os indígenas é a Terra Indígena (TI) Arariboia, que registrou 18 assassinatos de indígenas do povo Guajajara – mais de um terço do total. A terra é compartilhada pelos Guajajara com os Awá-Guajá livres, em situação de isolamento voluntário. Além destes casos, foram também registrados outros seis homicídios ocorridos nos municípios de Grajaú e Arame, aos quais esta terra indígena se sobrepõe – o que significa que o número de casos na TI Arariboia e seu entorno chega a 24, ou metade do total.

Mais detalhes sobre os assassinatos de indígenas do povo Guajajara podem ser acessados na plataforma Caci – Cartografia de Ataques Contra Indígenas, atualizada com os casos já registrados em 2019.

A plataforma Caci reúne os registros dos 48 assassinatos sofrido pelos Guajajara nos últimos 20 anos. Crédito: reprodução 

Guardiões da floresta e emboscada

Nos últimos anos, a TI Arariboia tem sofrido com a forte investida de madeireiros, e também de fazendeiros – no início de 2019, indígenas denunciaram a invasão e o loteamento de partes da terra indígena. Sem a fiscalização necessária, dificultada ainda mais pelos cortes orçamentários da Fundação Nacional do Índio (Funai), os indígenas vêm organizando grupos de Guardiões da Floresta para fiscalizar o território e repelir os invasores. No contexto de proteção territorial que os guardiões Paulino Guajajara e Laércio Souza Silva sofreram uma emboscada no início de novembro, quando partiram da aldeia Lagoa Comprida, norte da Terra Indígena, a 100 km do município de Amarante, para caçar. Já na mata, foram surpreendidos por cinco madeireiros armados.

Os homens, com as armas em punho, exigiram que Paulino e Laércio entregassem arcos e flechas, instrumentos tradicionais usados para caçar. Como Guardiões da Floresta, portanto conhecidos destes habituais invasores da TI Arariboia, os Guajajara não tiveram muita chance de defesa. Sem esperar qualquer reação, os madeireiros, em maior número, começaram a atirar contra os indígenas. Um dos disparos fatais atingiu Paulino no rosto. Laércio foi alvejado no braço e nas costas, conseguindo escapar pela mata para pedir socorro.

A prima de Paulino, a liderança indígena Sônia Guajajara, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), declarou à imprensa que “o racismo mata, e foi esse racismo que matou meu parente Paulo Paulino Guajajara, no Estado do Maranhão (…) Convidamos a todas e todos para lutarmos juntos contra esse genocídio programado”. A indígena estava percorrendo países europeus no dia do ataque. “Nossa agenda é de denúncia ao que vem ocorrendo contra os povos indígenas no Brasil. Liguei pros meus parentes e confirmei. Foi uma dor, mas aproveitamos para levar a notícia ao mundo”, disse.

De 2006 para cá, a TI Arariboia detém o segundo maior número de registros de invasão no estado do Maranhão, com 20 casos identificados no banco de violências do Cimi. As terras em que houve registro de assassinato de indígenas Guajajara neste período tiveram 44 casos de invasão possessória. Quase metade destes casos – um total de 20 – ocorreram nos últimos cinco anos. Foi nesse contexto que, em 2016, ocorreu uma sequência de quatro assassinatos de lideranças da TI Arariboia em apenas um mês.

Dos 130 casos de invasão registrados no Maranhão entre 2006 e 2019, 44 ocorreram em terras onde foram registrados assassinatos de indígenas Guajajara.

Assassinado em 2016 na Terra Indígena Arariboia, Assis Guajajara – na foto, à frente – foi um dos Guardiões da Floresta vitimados pelo conflito que assola seu povo. Foto: Luis Carlos Guajajara 

Terras indígenas Cana Brava e Bacurizinho: juntas, 15 assassinatos

Além da Arariboia, destacam-se nos casos de assassinatos de indígenas do povo Guajajara as TIs Caru, com 13 assassinatos, Cana Brava/Guajajara, que registrou oito homicídios, e Bacurizinho, que teve sete casos. Homicídios de indígenas do povo Guajajara também foram identificadas nas TIs Morro Branco (1) e Rio Pindaré (1). O recente assassinato de dois caciques da TI Cana Brava ilustra um modo muito comum de se eliminar lideranças Guajajara neste período de levantamento realizado pelo relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil.

Quando voltavam de uma reunião na aldeia Coquinho, onde se encontraram com diretores da Eletronorte Energia, um grupo de indígenas do povo Guajajara foi atacado a tiros num sábado, 7 de dezembro, enquanto percorria em motocicletas um trecho da rodovia BR-226 próximo à aldeia El Betel, na TI Cana Brava, município de Jenipapo dos Vieiras. Firmino Prexede Guajajara, de 45 anos, da aldeia Silvino, TI Cana Brava, e Raimundo Benício Guajajara, de 38 anos, da aldeia Decente, TI Lagoa Comprida, morreram em razão dos disparos. Dois indígenas ficaram feridos. Na reunião, participaram 60 caciques e lideranças Guajajara.

O coordenador da Funai no Maranhão, Guaraci Mendes, declarou à Agência Amazônia Real que “apenas as principais lideranças Guajajara estavam reunidas para tratar dos recursos da compensação com a Eletronorte. Era toda a cúpula, caciques e lideranças, da Terra Indígena Cana Brava. Parece que foi ação planejada”.

Desde outubro de 2018, após o segundo turno das eleições presidenciais, as organizações indígenas e indigenistas denunciam o aumento da violência, invasões, emboscadas, atentados e ameaças. “Parece que se sentem autorizados, é como se dissessem: agora podemos barbarizar com os indígenas, chegamos ao poder”, declarou Dinamã Tuxá, da coordenação da Apib, durante o Acampamento Terra Livre (ATL) 2019.

Em 19 de dezembro, o governo federal havia liquidado apenas 59,7% dos 37 milhões de reais destinados neste ano à demarcação e fiscalização de terras indígenas.

Indígenas do Pará e do Amapá protestam, em Brasília, contra a violência e os assassinatos de lideranças. Foto: Tiago Miotto/Cimi 

Pouca demarcação, muita violência

De 2006 para cá, incluindo dados preliminares de 2019, as terras indígenas localizadas no Maranhão registraram 130 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio. Mais da metade destes casos – 72, no total – foram registrados nos últimos cinco anos. Embora a diferença possa assinalar uma possível subnotificação de casos no período, é mais um indicativo do avanço das pressões sobre os territórios indígenas no estado.

Mais de um terço destes casos – 44, no total – ocorreram em terras nas quais foram registrados assassinatos de indígenas do povo Guajajara. A TI Arariboia é a segunda com o maior número de registros de invasão no Maranhão de 2006 para cá, com 20 casos identificados no banco de violências do Cimi. A intensificação dos ataques e invasões, denunciada por diversos povos ao longo do primeiro ano do governo Bolsonaro, é agravada pela baixa execução do orçamento destinado à fiscalização das terras indígenas no Brasil.

Segundo dados do Siop, em 19 de dezembro o governo Bolsonaro havia liquidado apenas 59,7% dos 37 milhões de reais destinados neste ano à regularização, demarcação e fiscalização de terras indígenas e proteção dos povos indígenas isolados. A situação é ainda mais grave se levarmos em conta que, nos últimos cinco anos, o mesmo período que concentra a maior parte dos casos de invasão e violência, o orçamento destinado a esse conjunto de ações caiu quase pela metade.

“Estamos diante de um ataque programado, organizado, com a intenção de expulsar os povos indígenas de seus territórios. O aval tem sido periodicamente dado pelo presidente da República. O extermínio dos povos indígenas se tornou uma política de governo”, aponta Gilderlan Rodrigues, coordenador do Cimi Regional Maranhão. “Não é apenas um cenário de guerra, estamos num campo de batalha onde o ódio disseminado pelas forças políticas conservadoras, autoritárias, racistas são estimuladas pelo fascismo que já extrapolou todos os seus limites”, completa Sônia Guajajara.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Renato Santana

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