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Com lítio, Evo Morales tentou romper processo neocolonial e integrar desenvolvimento

“Temos lítio na América Latina, mas não produzimos o carro elétrico. Toda essa riqueza vai para fora, para ganhar valor agregado e depois ser vendido de volta”
Leonardo Wexell Severo
ComunicaSul
São Paulo (SP)

Tradução:

Em mais de uma hora de entrevista, o economista e professor universitário Fábio Castro, doutorando em Economia Política Mundial pela Universidade Federal do ABC, e o economista Fernando Ustariz, mestre em Política Mundial pela UFABC, destacam o papel do lítio – metal que a Bolívia detém a maior reserva mundial – para romper com o neocolonialismo, potencializar a industrialização, o desenvolvimento e resgatar a soberania do país andino.

Para “ter força no mercado e ser um ator ativo”, o governo do Movimento Ao Socialismo (MAS) investiu US $2 bilhões em uma empreitada independentista que abre a possibilidade de transformar a matriz energética mundial. A resposta de Elon Musk, presidente da Tesla, maior produtora de carros elétricos do mundo, foi imediata, assumindo ter sido um dos patrocinadores do golpe de novembro de 2019. 

Na avaliação de Fábio Castro, os receios do dono do mundo com a Yacimientos de Litio Bolivianos (YLB) se explicam, já que “o ponto de partida não é só industrializar o lítio na Bolívia, é a internalização de toda a cadeia produtiva das baterias”. “Esse é o grande desafio que foi colocado inicialmente pelo programa do governo Evo Morales”, ponderou.

Como o mineral é um “componente estratégico no processo econômico e social das próximas décadas” e o governo do Movimento Ao Socialismo (MAS) apontou um caminho de soberania política e econômica, confrontou os países ricos. Neste sentido, assinalou Fábio, a vitória de Luis Arce e David Choquehuanca, no próximo dia 18 de outubro, é chave para dar avançar no processo de mudanças iniciado pelo MAS. “Temos lítio na América Latina, mas não produzimos o carro elétrico. Toda essa riqueza vai para fora, para ganhar valor agregado e depois ser vendido de volta”, ressaltou.

Fernando Ustariz discutiu a estratégia e os desafios da construção do projeto nacional alternativo boliviano, das parcerias autônomas e altamente promissoras com países como a Alemanha e a China para romper com a camisa-de-força estadunidense. Mais do que um projeto do lítio, enfatizou Fernando, está em jogo nas urnas uma perspectiva de país.

“A forma como vai se dar esse projeto está em disputa nessas eleições agora: será um projeto industrializante, que envolva desenvolvimento tecnológico, produtivo e comercial para a Bolívia, ou um processo de venda pura e simples de commodities; de desestruturação de um projeto de desenvolvimento para um apenas de sobrevivência e manutenção das pessoas que governam a Bolívia”, sublinhou.

“Temos lítio na América Latina, mas não produzimos o carro elétrico. Toda essa riqueza vai para fora, para ganhar valor agregado e depois ser vendido de volta”

Infobae
O governo de Evo Morales apontou um caminho de soberania política e econômica, confrontou os países ricos.

Confira a íntegra da entrevista:

ComunicaSul – Fábio Castro, qual a importância de a Bolívia investir no lítio e ter na industrialização um caminho soberano nesta caminhada rumo à construção de um projeto nacional de desenvolvimento?

Fábio Castro – Acredito que este é um debate fundamental, não só para a Bolívia, como para toda a América Latina. O ponto principal que coloca o lítio como componente estratégico no processo econômico e social das próximas décadas é o fato dele ser o fundamento das baterias que compõem a possibilidade de transformar a matriz energética mundial. 

O lítio não gera energia, evidentemente, mas a possibilidade de armazenar faz com que a geração de energia possa vir de formas distintas, abre espaços para a descarbonização.

O nosso sistema energético é baseado fundamentalmente em energia de origem fóssil, ou seja, gás, petróleo e carvão. Aqui no Brasil temos uma matriz mais renovável, com uma produção de energia hidrelétrica muito grande, mas na Bolívia até hoje mais de 50% é baseada em termelétricas, com a queima do gás natural.

Então o lítio entra como componente chave dessa transformação energética em que você pode armazenar energia com alta capacidade. Esse é o ponto chave para pensar o lítio como possibilidade da energia do futuro.

“Com a maior fonte de lítio do mundo, a Bolívia se posicionou no mercado, no governo  Evo, com o fator de vantagem comparativa”

O fato de a Bolívia ter a maior fonte de lítio do mundo se posicionou no mercado, através do governo de Evo Morales, cumprindo com o que chamam de fator de vantagem comparativa. Ou seja, temos a maior fonte de lítio do mundo, então pretendemos ter força no mercado e ser um ator ativo, não simplesmente passivo, que vai vender a matéria-prima. 

O ponto de partida não é só industrializar o lítio na Bolívia, é fazer a internalização de toda a cadeia produtiva das baterias, esse é o grande desafio colocado pelo programa do governo Evo Morales. Até antes do golpe havia dentro do Ministério de Energia uma vice-presidência de Altas Tecnologias Energéticas, onde esse projeto do lítio estava colocado como estratégico para as gerações futuras.

Portanto o lítio não é, nunca foi pensado, em ser uma fonte material da economia boliviana do momento, mas para as gerações futuras, para garantir autonomia e soberania da Bolívia, produzir baterias dentro do país e se colocar como um ator estratégico no mercado mundial.

O lítio ganha ainda mais força na segunda década do século 20, e o processo do lítio na Bolívia tende a se acelerar porque os carros elétricos começam a se massificar. Vários países desenvolvidos passam a propor que até 2050 a frota de automóveis seja totalmente elétrica. 

Para a produção de um automóvel elétrico hoje você precisa de 63 quilos de carbonato de lítio [a commodity que a Bolívia produz], o equivalente a dez mil celulares. Ainda não existe a quantidade de lítio necessária para transformar essa frota de veículos no mundo. Portanto, a matéria-prima boliviana vai ser determinante.

Daí a Bolívia fazer acordos com países para desenvolver mais rapidamente tecnologias a fim de produzir baterias dentro do país. Nesse caso, foi fechado um acordo com uma empresa alemã para produzir baterias de lítio e materiais catódicos em La Palca, planta numa área de segurança nacional, isolada, próxima à cidade de Potosí, que tive a oportunidade de visitar. Só nessa região os alemães teriam acesso à produção, sem acesso à matéria-prima, apenas a resíduos da produção, que é feita no Salar de Uyuni.

A Bolívia assume a produção de carbonato de lítio, através de 100% do Estado, e os resíduos que sobram disso essa empresa alemã, que tem uma capacidade tecnológica maior, pode produzir hidróxido de lítio. Essa questão gerou muito conflito na véspera das eleições. O lítio é uma aposta para o futuro, futuro de manutenção de uma política autônoma e de distribuição e aumento da renda. Uma maior produtividade também possibilita maior renda. 

“O lítio entra como elemento estratégico, produzir baterias dentro da Bolívia, no centro da América do Sul, gera uma cadeia ao seu redor, por isso é importante para a região”

Nesse sentido o lítio entra como elemento estratégico. E o fato de você produzir baterias de dentro da Bolívia, que está no centro da América do Sul, gera uma cadeia produtiva ao seu redor. Por isso também tem uma importância para a região, pois fica muito mais barato produzir carro elétrico, computador, celular, no Brasil, na Argentina ou no Paraguai. Ou seja, há uma possibilidade de industrialização. 

Então esse projeto boliviano focava industrializar os recursos naturais, um projeto de mudança, atingir a soberania econômica e social.

Os bolivianos chegaram a falar que por meio da parceria com a China, em 2019, se iria garantir mercado de consumo por 50 anos e um novo quadro do ponto de vista científico e tecnológico. Como é isso?

Fernando Ustariz – Este interesse chinês e alemão pelo lítio boliviano é uma consequência do atual estágio da geopolítica do lítio, porque como o Fábio falou, se trata de um metal que tem uso indispensável na produção de baterias, e que será tendencialmente muito mais demandado. 

Neste sentido, a produção de carros elétricos, de satélites, e até mesmo de celulares e computadores com a bateria mais eficiente, está ligado a uma maior corrida pela alta tecnologia de ponta.

Os países que mais estão concorrendo nessa disputa tecnológica e comercial são quatro: Estados Unidos, China, Coreia do Sul e Cingapura. Já as duas regiões que estão numa descendente, que estão caindo, são Japão e Europa – notadamente a Alemanha e a França. 

Eles têm uma importância muito grande porque o lítio é utilizado para os carros elétricos, e a Europa tem uma grande cadeia automotiva, de suma importância no mundo, totalmente relacionada ao futuro da cadeia. Porque se o carro elétrico vai ser mais comumente utilizado, a corrida tecnológica para se fazer o carro elétrico competitivo será fundamental para que se consiga baratear o produto final. Assim será de grande importância e interesse dos países das produtoras, das montadoras, terem acesso a esse material.

“A Bolívia tem o maior número de reservas de lítio, metal que se encontra muito concentrado, poucos países produzem”

E mais importante é o fato de que a Bolívia tem o maior número de reservas de lítio, metal que se encontra atualmente muito concentrado. São poucos os países que produzem. Portanto, isso significa que você ter acesso a um país que produz lítio, significa já de antemão ter um produtor com uma inserção ao mercado das commodities muito alto. Faz muito sentido você se associar ou buscar interesse num projeto desse tipo. 

Mas e os países produtores vão ficar de fora dessa corrida tecnológica e desse mercado todo? Bom, como ele está concentrado, abre-se uma janela de oportunidades para poucos países como o ABC do lítio (Argentina, Bolívia e Chile), Austrália, Portugal e a própria China de conseguirem ter a possibilidade de desenvolver esta cadeia tecnológica, uma cadeia competitiva muito grande. 

E como o Fábio bem falou, a Bolívia garantiu a soberania, o que abriu a possibilidade de garantir a extração a partir dos seus próprios meios, da sua própria criação tecnológica, da sua adaptação. Isso vai permitir se associar com certos produtores. O objetivo é que a América Latina se integre e não fique como falsa exportadora.

A ideia boliviana é justamente conseguir ascender a esses setores que tenham alta produtividade, com um futuro muito grande pela frente. Hoje, de acordo com dados do US Geological Survey – que são quem faz as medições de todos os salares -, 65% do lítio já é utilizado para a produção de baterias. Isso tende a crescer ao longo do tempo na medida em que os carros elétricos vão ser mais demandados, na medida que o número de satélites, smartphones e computadores portáteis vai aumentar. 

Quero agregar uma questão: o lítio voltou com força após Elon Musk ter dito que atuou no golpe da Bolívia. Em nova declaração polêmica, ele disse que vai reduzir o preço dos carros elétricos, que hoje são muito caros, para US$ 25 mil, o que tornaria esse tipo de veículo popular e bastante acessível. Dentro desta perspectiva, gostaria que falassem a respeito da recolonização dos países.

Fábio Castro – A declaração de Elon Musk é bastante polêmica, mas antes disso teve uma declaração que não foi muito falada de um de um senador americano, Richard Black, que disse que os EUA precisavam parar de interferir na política externa dos países da América Latina. Eles viram que a China estava muito forte na América Latina e que esse tipo de associação com os chineses iria prejudicar os negócios norte-americanos. Essa declaração de Musk, pelo Twitter,  também é muito importante para pensar esse processo, mas pareceu ser de um menino mimado. 

A Argentina e o Chile já exploram o lítio há bastante tempo. O Chile está entre os maiores produtores do minério. Eles o fazem através de multinacionais que exploram a riqueza do país. Diferentemente da Bolívia, eles produzem commodities, o carbonato de lítio, o hidróxido de lítio. A Bolívia se propõe a produzir isso, mas também avançar com a endogeneização da cadeia produtiva [trazer para dentro do modelo]. Essa é a grande diferença do projeto boliviano. 

O ponto chave por que países como Chile e Argentina avançaram antes da Bolívia na produção é porque o lítio boliviano tem uma característica que alguns especialistas vão chamar de “mais suja”. Antes de Morales já se sabia da existência do lítio, mas nenhum tipo de associação deu certo porque cada salmoura – o lítio é um metal que se produz através da evaporação de salmoura – possui uma configuração diferente e o da Bolívia tem muito magnésio, o que deixa mais caro fazer a extração. Por isso, quando começa a se avançar com a indústria do lítio em âmbito global, foi muito mais barato explorar no Chile e na Argentina.

Na Bolívia tentou-se uma associação com uma empresa americana, chegaram a firmar um acordo, mas quando viram a qualidade do lítio, saíram e foram para o Norte da Argentina, onde é mais barato. 

Quando Evo Morales assume, ele resolve fazer uma endogeneização e prepara a possibilidade de a Bolívia ser um país produtor de lítio. Porque se você for pensar bem, Morales entrou em 2005 e estamos em 2020 e até agora não se explora o lítio de verdade.

Há uma falta de estrutura, de integração, de comunicação no país, que inviabilizava qualquer negócio na região do Salar do Uyuni. Se era difícil o acesso à região há dez anos, imaginem há 20 anos. Além disso, a Bolívia não tem saída para o mar, o que dificulta qualquer interesse de uma empresa estrangeira em trabalhar nesse país. Enquanto houvesse reserva suficiente na Argentina e no Chile, a Bolívia podia ficar para depois. Só que agora mudou de patamar, o carro elétrico muda a estrutura. Essa busca de ampliação das frotas de carro elétrico muda radicalmente a estrutura do mercado de baterias e do lítio. É uma quantidade totalmente diferente a necessária para produzir um veículo ou um smartphone.

A produção de lítio na Bolívia por mais “cara” que seja, já que o país desenvolveu a própria capacidade de explorar, agora é necessária pela quantidade desse mineral que o mercado precisa. Essa necessidade fez os olhos virarem para o país. Essa mudança ocorreu a partir de 2013, 2014, e a Bolívia passou a ser vista como a Arábia Saudita do lítio, o novo petróleo. 

A Bolívia por um tempo conseguiu se desenvolver, criou estrada, fez satélite para ter comunicação. É difícil fazer uma integração de telecomunicações na região do Salar del Uyuny, por exemplo, onde está a planta mais importante. Então o satélite Túpac Katari resolve este problema, porque você não chega com um cabo de fibra ótica. Os chineses vão emprestar o dinheiro, fazer o satélite, lançar, ensinar os bolivianos a manusearem, porque têm interesse que a região esteja adequada.

Até esse momento a maior parceria estratégica da Bolívia era a China. Então, para além do golpe, um fator determinante é a presença chinesa, porque os discursos de Trump são anti-China. Esse tipo de desenvolvimento soberano não interessa para Elon Musk nem para o governo estadunidense.

Fernando Ustariz – Com relação à extração de lítio, temos que entender a dificuldade de acesso logístico. Mas hoje as tecnologias melhoraram e, com relação à extração de magnésio, isso foi um acerto, um ganho tecnológico muito grande para os bolivianos.

Para a indústria dos recursos evaporativos, houve um processo de dois, três, quase quatro anos, onde foi necessário o aprendizado para se extrair o lítio. E com relação ao grande número de dejetos de magnésio que se deixava houve uma adaptação, um desenvolvimento tecnológico chamado de “línea de los sulfatos”. 

Esse método de extração permite lidar com a quantidade de magnésio particular do Salar, que foi fruto de investimento em pesquisa, ciência e tecnologia. Isso foi muito importante para viabilizar a extração, ainda que de maneira piloto, e desenvolver a cadeia produtiva do lítio. 

Eles estão preparando um projeto integral. A extração tem que ser competitiva, de fato, e também a industrialização, porque o ano passado o preço do lítio caiu. A industrialização é a cereja do bolo. É aí que entra a ideia da colonização.

A entrada de Evo Morales no governo, se deu contra o que muitos dos analistas e até movimentos sociais chamavam de “colonização do Estado”, ou seja, o Estado que se submetia aos interesses estrangeiros, funcionando como uma neocolônia, que também buscava intervir para colonizar os costumes e a forma de vida do povo. 

A colonização do Estado é uma marca da extração mineral boliviana. As elites desse país estão “acostumadas” a funcionar desta maneira, como em outros países da América.

“A ideia do governo Evo era romper com o processo neocolonial e buscar o processo integrador de desenvolvimento a partir dos recursos naturais”

A ideia do governo Evo Morales era romper com isso. E daí vem a ideia do Estado plurinacional, romper com esse processo neocolonial e buscar o processo integrador de desenvolvimento a partir dos recursos naturais. 

O fato de a Bolívia ascender às cadeias produtivas em um segmento importante como é o de baterias de alta tecnologia, com alto valor agregado, e soberania na produção e extração, causa uma ruptura nas possibilidades de ação dos Estados Unidos, que está em guerra comercial com a China.

A China neste sentido tem interesse em crescer e aumentar a sua influência, se associar. E também tem o fator de que os europeus estão em uma descendente, há pelo menos oito anos, na cadeia do lítio. Então isso implica que haja concessões feitas por vários países, principalmente a China e a Alemanha, para conseguir o lítio boliviano em uma associação com transferência de conhecimento. E isso interfere na guerra comercial e tecnológica. A agressividade que os Estados Unidos estão tendo há vários anos é um reflexo dessa disputa com a China.

Desde que assumiu Evo Morales, em 2006, observamos que a política do lítio contou com a participação de diferentes atores. Inicialmente não era prioritária porque primeiro vinha a redistribuição da riqueza, houve a dura luta pela Assembleia Constituinte, o enfrentamento às tentativas separatistas de 2006, 2007 e 2008… Os governos tentam fazer algo com o lítio há cerca de 90 anos, no marco do que foi a substituição do estanho, do qual o país foi o principal produtor mundial até a primeira metade do século XX, e como foi no século XIX com a borracha. Como veem a importância da industrialização do lítio para a integração e o fortalecimento sul-americano?

Fábio Castro – Esta é uma pergunta muito importante porque busca propor saídas. Estou de acordo que, historicamente para a América Latina como um todo, a desintegração foi fundamental para manter nossos países segregados, nesse processo colonial. E não é diferente com o lítio, evidentemente.

Tanto a Argentina como o Chile produzem o lítio por meio de empresas multinacionais, voltadas para fora, como se diz na economia, e não para o mercado interno, para o mercado regional. Não se produz carro elétrico na América Latina. Toda essa riqueza vai para fora, para ganhar valor agregado e depois ser vendido de volta.

Vamos olhar o mercado da América do Sul. Com a quantidade de pessoas, com a capacidade de recursos naturais e a integração entre esses países, tendo acesso à maior parte dos recursos necessários ao movimento e à acumulação dos países ricos, isso seria um choque muito grande para a economia mundial. Com certeza vão trabalhar para que isso não aconteça.

“Temos lítio na América Latina, mas não produzimos o carro elétrico. Toda essa riqueza vai para fora, para ganhar valor agregado e depois ser vendido de volta”

Imagina só: a enorme quantidade de minério de ferro existente na própria Bolívia. Tem Mutum, uma usina sendo construída e já em disputa pelos golpistas. Temos baterias, temos aço, temos ferro, temos o necessário à produção dos bens de consumo da sociedade contemporânea. Mas temos um processo histórico de colônia que não conseguimos romper. E fica inviabilizada uma integração, por mais que durante o processo da Onda Rosa -, como alguns autores chamam, da virada à esquerda, do momento progressista na América do Sul, particularmente -, não tenha conseguido se dar esse salto de integração, econômico. Aqui ficou muito mais no âmbito político. Tentou-se a infraestrutura, onde a gente não tinha nenhum tipo de conexão entre os países. Até hoje a gente não tem uma rodovia interoceânica adequada, que passaria pelo Peru, Bolívia, Brasil e etc.  

“A possibilidade da autonomia e da soberania da América Latina sobre seus próprios recursos gera calafrios nos chamados donos do mundo”

A possibilidade de que os países resolvam ter autonomia e soberania sobre os seus próprios recursos, com certeza gera calafrios nos chamados donos do mundo. 

Mas ao redor do lítio, como um recurso muito concentrado, em que se Bolívia, Argentina e Chile realmente se integrarem vão controlar totalmente o preço do mercado mundial, entendo que seria uma chave para a transformação mais profunda da região. Isso depende de fatores como termos a nacionalização no Chile, é isso que vai ser discutido na Assembleia Constituinte? Os Fernández estão dispostos a algo para avançar assim na Argentina? A Bolívia, sim, já é nacionalizado. Óbvio que agora eles estão querendo legitimar o golpe para poder passar a bola para frente e acumular o dinheiro entre as classes dominantes. Mas é uma possibilidade que existe e por isso o lítio precisa ficar sob controle. Daí determinados tipos de golpes.

Fernando Ustariz – Eu compartilho de boa parte da visão do Fábio, portanto farei um tipo de advogado de diabo. Acredito que ao tentarmos uma integração produtiva, comercial e tecnológica com relação ao lítio, a bomba que vem do outro lado é muito grande. Só para fazer uma analogia em relação à OPEP (Organização dos Países Produtores do Petróleo) o que se tentou fazer, ou o que se faz hoje, é um tipo de desagregação. Você teve que fazer na época do nacionalismo árabe, do nacionalismo dos recursos naturais do Oriente Médio, na Ásia Central, uma força muito grande desses países e principalmente das suas elites para se apoderar do petróleo. 

Eu não vejo na América do Sul algo similar, um movimento das elites pela nacionalização ou pela apropriação das rendas da riqueza proveniente do lítio. Esse foi o fator fundamental para se formar a OPEP, não apenas dos movimentos de base naqueles países, mas também das elites. A Arábia Saudita até hoje é intocada, com a presença militar dos Estados Unidos defendendo o governo de qualquer tipo de ação, e eles têm a Saudi Amanco, a empresa estatal deles de petróleo que ninguém toca. 

O Irã também tem, mas houve a Revolução e outras coisas. A Venezuela colocou uma divisão de 50% para os produtores, 50% para o país, os Estados Unidos também não tentaram nada contra isso, até porque precisavam do petróleo. 

Portanto, é muito mais difícil esse tipo de concertação política. Isso não significa que não tenha que ser tentada. 

A Argentina conseguiu desenvolver um conhecimento tecnológico, acadêmico e político bastante interessante. Há empresas multinacionais que extraem o lítio, um conhecimento de muitos anos, você tem até a ideia da vinda de uma empresa italiana para industrializar as baterias de lítio. Isso foi tentado por um governo provincial na Argentina, tem até inclusive uma estatal que é parceira acionária na exploração de lítio. 

É diferente no Chile, com o seu modelo de privatização, de vinda de multinacionais. Eles têm inclusive uma empresa nacional privada que extrai o lítio, muito grande, que investe profundamente na extração, algo que mudou nos últimos cerca de 15 anos para cá. E para você ter uma ação conjunta teria que pensar melhor essas políticas. A Bolívia, por exemplo, criou esse setor a partir de 2006,  do nada, do zero. Investiram muito dinheiro, dois bilhões de dólares! 

Na Argentina, que teve um processo mais provincial, faltou dinheiro, ainda que tenham quantidade de conhecimento acumulado, tenham um Conselho de Ciência e Tecnologia muito importante para a coprodução do lítio.

Já o Chile, com relação ao fomento do cobre tem muito pouco aporte estatal, é pequena a possibilidade de fazer valer a vontade do Estado caso haja uma virada progressista, uma mudança de Constituição. 

Em relação ao lítio tem que se pensar que haverá uma reação muito grande do outro lado, e pensar muito bem feito, porque como o Fábio mesmo disse está tudo separado, as políticas estão muito diferentes. Pensar uma parceria, uma forma de articular, demanda inteligência, uma vontade política e técnica para se conseguir amarrar os diferentes caminhos, o que não se vê.

Dialogando com as autoridades bolivianas os chineses disseram que a Bolívia teria 50 anos de mercado interno garantido, colocando em outro patamar sua inserção a nível mundial. Dentro desta perspectiva veio a retaliação. Qual a avaliação de vocês? Qual a perspectiva de a Bolívia seguir com Luis Arce neste caminho de soberania e desenvolvimento? De êxitos no combate à desnutrição infantil à erradicação do analfabetismo, a Bolívia conseguiu se transformar em referência para a América Latina. Havia uma área de oncologia de um hospital de primeiro nível que precisou ser fechado porque haviam apenas dois médicos especialistas, porque são coisas que um processo de mudanças não pode resolver, por não ter tempo para formá-los. Com a industrialização do lítio estamos falando de uma das potências do mundo. Com investimento, em quanto tempo a Bolívia poderá ser um país soberano em seus recursos naturais e independente economicamente?

Fábio Castro – Eu organizei as perguntas em passado, presente e futuro, lembrando que estamos falando de um que país tinha 60% de pobreza no governo Evo Morales, caindo pela metade, com a miséria extrema recuando de 15% da população para menos de 5%. São saltos muito importantes desse chamado processo de câmbio.

Vindo do passado, buscando os acordos com o lítio, é o projeto do futuro boliviano, a aposta do futuro. Não há ainda uma produção que gere resultado, é um processo de investimento e posterior resultado.

É verdade a afirmação da Adriana Salvatierra [ex-presidente do Senado] de que o acordo com a China garante um mercado para 50 anos. Porque o fundamento dos acordos com empresas estrangeiras para explorar o lítio, industrializá-lo na Bolívia, tem como base que essas multinacionais garantam a produção para esse mercado. 

“Um dos fundamentos que está na estratégia do lítio boliviano: se uma empresa quer explorá-lo precisa garantir o mercado, é um ponto mínimo. Com os alemães era de 70 anos”

Este é um dos fundamentos que está na estratégia do lítio boliviano: se uma empresa quer fazer um acordo para explorá-lo precisa garantir mercado. Esse é um ponto mínimo do acordo. Então, por exemplo, no caso dos alemães, eles fizeram um acordo de 70 anos para explorar o lítio, para produzir hidróxido de lítio e baterias de lítio. De acordo com o decreto, a alemã ACI Systems deveria garantir o mercado de baterias de lítio, hidróxido de lítio e materiais catódicos produzidos em Potosí. Vejam só, é um mercado de longa duração.

Com os chineses, o acordo tinha a mesma característica, tendo em vista que são os maiores produtores de baterias do mundo. Não previa a produção das baterias em território boliviano, havia uma cláusula de que seria discutido a possibilidade de montar uma empresa comum entre os dois países com a possibilidade de produzir as baterias na China. Porque seria mais barato para fazer os carros na China. Fazer todo o processo de commodities, de materiais catódicos, utilizar todos os recursos, fazendo a industrialização dos resíduos, que é algo muito importante do projeto boliviano, e depois mandar para a China, industrializando com uma empresa boliviana lá. Estava previsto nessa minuta, mas ainda não foi feito um decreto como o da empresa alemã.

Um país que não é potência econômica extremamente relevante quer estar no centro do mercado mais dinâmico do atual sistema global e acontece o golpe. A pergunta chave para se pensar é: como foi dado o processo de ingerência externa que buscou fazer o poder mudar de mãos?

Os chineses propuseram fazer um acordo que seria mais ou menos bom para ambos. E acordo com a China é tudo o que os Estados Unidos não quer, então nem chegou a ser completado, ficou para ser finalizado como decreto. 

No processo de eleição do ano passado as manifestações se colocavam todo o tempo ao redor da empresa alemã, não sobre a chinesa. Diziam que o governo Morales era entreguista dos recursos naturais quando, na verdade, estava possibilitando somente a industrialização dos resíduos. Deixou uma parte da população, inclusive pessoas ligadas ao MAS, com uma pulga atrás da orelha. Isso foi perceptível e colocou em xeque o MAS em certa medida. Tanto foi assim que o Evo Morales acabou cancelando esse decreto que fundou a empresa alemã-boliviana. A empresa chinesa deu as cartas que possibilitariam um grande negócio, a Alemanha já tinha dado as cartas que eram benéficas para a Bolívia, pois eles aceitaram garantir mercado, mão de obra boliviana. Mesmo assim, encontraram formas de desestabilizar esse processo.

“O golpe surge ao redor do lítio, como um dos seus pilares. Por que um mês antes das eleições o grupo do Comitê Cívico de Potosí, na figura do Marco Pumari, resolve fazer greve de fome contra um acordo que já tinha sido feito há um ano?” 

Então o golpe surge ao redor do lítio, como um dos seus pilares. Não diria que é o fator determinante, total, mas de fato é importante. Por que um mês antes das eleições é quando o grupo do Comitê Cívico de Potosí, na figura do Marco Pumari, resolve fazer uma greve de fome contra esse acordo que já tinha sido feito há um ano? É nesse ponto que está colocado o golpe? A questão é como um país pobre quer ser o centro de um mercado dinâmico. 

Sobre as eleições, está colocada a continuidade do processo de câmbio. Luis Arce, candidato que tem a maior intenção de voto, que é do MAS, foi um dos articuladores de todo esse processo. Vejam só, não é um projeto comum de desenvolvimento capitalista, como qualquer outro. É um processo colocado como projeto de transição, não é vamos aumentar a renda e acabou, não. Está colocado como fundamento alcançar uma sociedade socialista comunitária, trabalhando para alcançar essa sociedade. Vamos elevar a renda, que é o que temos de fazer agora, mas nosso horizonte é alcançar o socialismo comunitário, ou seja, uma sociedade que viva em harmonia com a natureza, que tem o ponto central nessa orientação, que busca inspiração nas comunidades originárias e por isso tem tanta legitimidade junto à população boliviana. É a ideia do “Vivir Bien” dentro do processo boliviano, é esse horizonte que está sendo perseguido.

Então nada mais natural do que ser reinstalado esse processo, esse caminho de transição baseado nessas origens das comunidades andinas, articulando com as comunidades das terras baixas do país. Esse é o ponto chave do processo de transformação, não é algo pronto, uma receita de bolo, é um processo de transição, de construir equilíbrio entre a necessidade de satisfazer a fome, de dar condições materiais para as pessoas e transitar para uma sociedade mais justa.

Acho que essa é a chave do sucesso que teve o projeto boliviano e por isso não foi possível dentro de meios de lawfare, “legais”, derrubar o Evo Morales. Por isso foi preciso um golpe violento, com assassinato de pessoas que estavam simplesmente defendendo os seus direitos democráticos.

“O processo boliviano logrou avançar radicalmente o país, reduzindo a pobreza – foi a maior redução da desigualdade da região no período progressista” 

O processo boliviano tem essa característica, cheio de contradições, evidentemente, que são parte de um processo de construção, mas que logrou avançar radicalmente o país, reduzindo a pobreza – foi a maior redução da desigualdade segundo o indicador de Gini da região no período progressista.

O projeto é totalmente plausível de ser retomado. Agora resta saber se serão necessários alguns passos atrás, dada a crise econômica profunda que quem assumir vai ter na mão por conta, entre outras coisas, da pandemia e de um golpe que provavelmente limpou os caixas do Estado.  Esse é o desafio para continuar, mas possível é.  

E aí o lítio continua sendo a aposta do futuro. Só que isso vai ter que ser acelerado porque mais uma vez a pandemia coloca em xeque todas as formas de organização social, principalmente ao redor da questão energética, na utilização dos combustíveis fósseis. Esse impacto radical do ser humano na natureza. A busca pelo carro elétrico como uma saída nesse campo vai ser acelerada e a Bolívia, se quiser assumir o protagonismo nesse setor, vai ter que acelerar também. Só que acelerar em meio a um processo de desmanche nacional, feito por um golpe violento, é um desafio muito grande e leva tempo.

“O primeiro grande salto da Bolívia estava para 2023, exportando baterias, tendo já montada toda a cadeia produtiva de processamento da matéria-prima”

A perspectiva do projeto era em 2023 exportar baterias bolivianas para montar os carros alemães na Europa. Este era o primeiro grande salto boliviano, exportando baterias, tendo já montado toda a cadeia produtiva de processamento da matéria-prima e criado as condições para a endogenização do processo produtivo ao redor. Por exemplo: uma empresa privada de Cochabamba, criou um carro elétrico boliviano. Uma ousadia sem tamanho para um país pobre como a Bolívia. Veja só que interessante, isso gera convulsões.

Imagina o que o presidente da Tesla, o Elon Musk, está pensando. O fato de ter lítio na Bolívia e o Estado demonstrar capacidade de produzir fez com que empresários, que querem ganhar dinheiro, montassem uma fábrica de carros elétricos dentro do país.

O projeto do lítio ainda está de pé. Estava tão enraizado no imaginário social que ficou difícil para os golpistas, sem ganhar a eleição, desmancharem o que foi feito. Eles simplesmente paralisaram, trocaram várias vezes a direção da empresa. O Fernando que conseguiu ir à Bolívia e visitar as plantas após o golpe – eu fui antes, depois não consegui mais ir -, poderá falar um pouco mais.

Fernando Ustariz – A China pode vir a ser um mercado de commodities, caso o MAS não ganhe as eleições e vou dizer porquê.

Os ciclos econômicos que a Bolívia viveu em toda a sua história sempre foram marcados pela exploração de matérias-primas. Desde a colônia, a prata. Potosí tinha a maior reserva do mundo; depois o estanho, para produção de latas de vários tipos. Inclusive, tivemos a Disney fazendo um personagem baseado na riqueza, a exploração que havia sobre a mão de obra do minério boliviano, que é o Tio Patinhas. Depois disso, veio o gás natural.

“Os ciclos econômicos que a Bolívia viveu em toda a sua história sempre foram marcados pela exploração de matérias-primas. Disney tinha um personagem baseado nesta riqueza, na exploração da mão de obra, o Tio Patinhas” 

A Bolívia tem 0,1% das reservas de gás mundial. Isso é muito pouco e significa que as reservas bolivianas de gás no curto prazo tendem a acabar. Portanto, a Bolívia precisa iniciar outro ciclo, mesmo para as elites do país se manterem. 

Como tivemos as privatizações no período neoliberal, com o abandono das receitas do petróleo, nos anos 2000, isso gerou uma convulsão. A pobreza chegou a mais de 60% da população, com o abandono dos serviços públicos. Então até para o país se sustentar como tal, a transição do gás para o lítio é uma necessidade, independentemente de quem esteja no governo. A questão é como isso vai se dar. Como vai ser esse projeto?

Essa relação com a China talvez não tenha sido a melhor possível porque existem três ou quatro tipos de baterias de lítio diferentes, porque pode ser para um satélite, um celular, uma câmara fotográfica ou um carro elétrico. A Yacimientos de Lítios Bolivianos (YLB) conseguiu produzir três tipos, inclusive as mais utilizadas para carros elétricos e para as distribuidoras de energia solar. 

A questão de a Bolívia não conseguir fazer as baterias no próprio país era uma parte negativa do acordo com a China, mas ela se justificava na medida em que a química fina para a purificação do lítio já é um certo avanço. Outro ponto importante é a exportação de capitais estatais bolivianos dentro da China, dentro de um lugar que você tem mais aprendizado tecnológico, maior dinamismo econômico e onde se pode aprender mais através da negociação conjunta.

Com relação ao lítio, ao golpe e à Alemanha, o golpe na Bolívia se deu a partir de uma confusão que havia com relação ao acordo com a Alemanha. Para os alemães era muito interessante garantir o mercado, que não precisava ser da produção da commodity, poderia ser da produção de bateria, que é mais tecnológico. Hoje você tem a dispersão da cadeia produtiva ao redor do mundo. A Ásia conseguiu crescer muito em relação à distribuição produtiva que existiu. E então também seria vantajoso à Bolívia conseguir algo formidável, que era a produção de baterias mais robustas para os carros elétricos. E a Alemanha garantia um mercado quando o país está em decrescimento com relação à produção de baterias.

Essa confusão foi com relação ao seguinte fato: a Bolívia deveria ter a sua soberania na extração do material. Como a Bolívia não tinha as melhores tecnologias para purificar o lítio e produzir o hidróxido de lítio, que é um dos materiais anexos à produção de bateria, porque a bateria não é só o lítio, tem os materiais eletrônicos, o hidróxido de lítio entrava nos componentes anexos. 

Os dejetos produzidos pelo lítio boliviano seriam utilizados em uma empresa mista. Isso foi alvo, foi motivo de campanha de desestabilização com o dizer de que estava se entregando por décadas as riquezas bolivianas para os alemães através desse processo.

Isso deu muita confusão porque ao passar do tempo houve um processo de isolamento do governo boliviano, da empresa estatal boliviana YLB, frente à comunicação popular, de comunicação com a sociedade. Não houve um trabalho tão grande como com relação ao gás e à mineração. Não houve um processo tão grande de associação com os sindicatos, com a população organizada. Esse distanciamento pouco permitiu a defesa desse projeto. Houve inclusive a confusão de dizer que talvez estivesse se entregando mesmo, que talvez não fosse o melhor projeto, mas é preciso entender que a Bolívia ainda não tem as melhores tecnologias para produzir os materiais para purificar de maneira competitiva internacionalmente e por isso ela precisa das concessões.

Hoje a Bolívia não tem o mesmo padrão tecnológico que a Alemanha e a China, então a Bolívia precisa dessas parcerias de operação, que são super importantes. Essa confusão na forma com que se daria o processo permitiu o ataque ao governo, foi  uma campanha de desestabilização.

Os ciclos econômicos implicam que, independente do governo que tiver, precisará ter um projeto político para sobreviver. Seja soberano, de desenvolvimento, melhoria da qualidade da vida, ou com a Tesla.

Fernando Ultariz – O mercado de gás é muito importante, é determinante, é o maior produto exportado e que gera a maior renda na Bolívia. Eles sabem que precisam transformar urgentemente a matriz exportadora. Nesse sentido, vem o lítio e eles fizeram um projeto que se chama Bolívia Coração Energético da América do Sul. E criam a YLB (Yacimientos de Litio Bolivianos) neste sentido.

Em 2017 eles migram da Conmebol (Corporação Mineira da Bolivia), que era um departamento, para o Ministério de Energia. A Bolívia se coloca como um país que será fornecedor de energias. Nesse sentido, o lítio é a aposta para o futuro mais longe. No curto prazo a ideia é transformar a Bolívia no exportador de energia elétrica através da produção de hidrelétricas. Há um investimento muito grande para aproveitar a estrutura hídrica do país. Há muitas hidrelétricas sendo construídas para exportar energia para o Brasil e para a Argentina. O que seguraria, enquanto o projeto do lítio não se estabelece, o equilíbrio econômico.

Fábio – Quando teve a questão do pré-Sal, demorou quase 10 anos para a produção de petróleo chegar no nível tal que fosse de importância estratégica para o Brasil. Esse mesmo tipo de processo se dá na Bolívia. Assim como o Brasil teve um processo soberano para conseguir produzir petróleo a 10 mil metros abaixo da terra, pela Petrobrás, na Bolívia ocorre algo similar. 

Com relação ao projeto piloto, já tem o controle de todo o processo de produção do lítio, por exemplo, fazer a bateria de materiais catódicos… Inclusive, as baterias utilizadas foram colocadas em um projeto para distribuição energética de painéis de luz solar nas áreas dispersas e longínquas da Bolívia, onde você não tem acesso à rede elétrica, etc.

Com relação à produção dos fertilizantes, os dejetos da produção do lítio foram utilizados e, no ano passado, já obtiveram uma renda de 33 milhões de bolivianos (US$ 4,8 milhões). Então você já tem esses projetos andando e se não tivesse a pandemia e todo esse processo de desestabilização – porque depois do golpe caiu a produção de carbonato de lítio e também dos dejetos para produção de fertilizantes – talvez já teria início, como era a expectativa, a grande fábrica de extração de carbonato de lítio.

Temos que aumentar as parcerias internacionais que a Bolívia está fazendo, seja com chineses, ou outros parceiros como japoneses e coreanos, com acúmulo na indústria automotiva, para chegar no nível de renda que o gás está tendo atualmente, bem como conseguir um projeto de industrialização que gere emprego. Hoje a produção de baterias de lítio precisa de muito investimento em capital, mas a mão de obra não é tão ampla, daí o envolvimento da utilização de todo o processo produtivo em volta.

O que está em jogo é como vai se dar esse projeto. Mas a industrialização do lítio é um fato que terá de ocorrer por causa das transições de ciclos econômicos. Até 2026 o país não vai conseguir manter os atuais índices de exploração do gás, e, portanto, o lítio será um imperativo de sobrevivência econômico da balança comercial boliviana e do financiamento do Estado.

A forma como vai se dar esse projeto está em disputa nessas eleições agora: de um lado, um projeto industrializante, que envolve desenvolvimento tecnológico, produtivo e comercial para a Bolívia. Do outro, um processo de venda pura e simples de commodities, de desestruturação do projeto de desenvolvimento para financiar apenas de sobrevivência e manutenção das pessoas que governam a Bolívia.

Assista ao vídeo:

Leonardo Wexell Severo, Mariano Vásquez e Vanessa Martina Silva jornalistas da equipe da ComunicaSul


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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