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Como ideia de propriedade permite ao ser humano transformar vida alheia em um inferno

Não é preciso ir longe para perceber como essa posição de prepotência levou às piores ações bélicas e a praticamente todos os sistemas de escravidão da história
Carolina Vásquez Araya
Diálogos do Sul
Cidade da Guatemala

Tradução:

A ideia de que a vida nos pertence vem de muito atrás, procedente de uma ideologia primitiva e fanaticamente centrada no homem como dono absoluto de tudo quanto o rodeia. Por isso, termina por não ser tão evidente o deformado sentido de propriedade que marca nossa educação, iniciado desde a infância com o pintinho de brinquedo esquartejado porque a criança queria ver como funcionava. No final, é só um pintinho esquartejado que se atira no lixo e a única consequência é que a mamãe diga “sem mais pintinhos de brinquedo…”

Assim, da mesma maneira arbitrária e incompreensível, nos pertence a vida da árvore que estorva a vista desde a sacada e por essa razão caiu sob o fio do machado, transformando em lenha verde e inservível esta pujante amendoeira cheia de brotos. “O jardim é meu e é minha árvore. E eu corto quando quero”. Com animais sucede outro tanto. Como está na moda ter cachorrinhos finos ou gatos de exibição, tenhamos um. Não importa o que façamos com ele, enquanto nos pertença. 

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E então, aí vai um ser vivo que pertence a outros seres vivos que possuem o poder suficiente para fazer de sua pequena vida um inferno ou um paraíso. No entanto, a vida, esse conceito que mobilizou os neurônios de filósofos, artistas, cientistas e teólogos em todas as épocas, continua sendo um mistério; um arcano que nos escapa e nos deixa sempre perplexos diante de seu milagre. 

Talvez este transtornado sentido de propriedade tenha derivado também no costume de menosprezar a vida das criaturas chamadas inferiores por questão de força física, poder econômico, posição social ou diferença étnica. E aí entram crianças, velhos, mulheres e outras comunidades humanas. De que protocolo machista deriva o estereótipo de que os seres física ou socialmente mais débeis são inferiores? Voltando ao pintinho de brinquedo… como podemos aceitar que um ser vivo seja entregue a outro ser vivo para que pratique seus jogos de poder e dominação? 

Não é necessário ir muito longe para extrair dessa posição de prepotência muitas das piores ações bélicas de todos os tempos, e praticamente todos os sistemas de escravidão que ainda predominam em países que pretendem erigir-se como modelos de democracia. A vida dos demais não nos pertence. Se queremos ser depositários dela, como no caso dos animais domésticos, ou pretendemos desfrutar de sua beleza, como seria o caso do mundo natural, não seria demais começar a pensar que ao possuí-los adquirimos o compromisso de respeitar sua integridade e prover os recursos mais adequados de subsistência.

O caso da família é similar. Não é “minha família e com ela faça o que me dá na telha”. É um grupo de seres em situação de convivência ou de vínculo legal, mas aqueles não formam parte do patrimônio do mais forte, como se costuma crer em muitas das nossas sociedades. 

Universo paralelo criado por excesso de (des)informação alimenta máquina contra direitos

Esta atitude eminentemente masculina e, portanto, patriarcal, é um dos fatores mais decisivos no enfraquecimento moral da comunidade humana. O poder absoluto sobre a vida alheia é a via mais rápida para a perda de valores e a consolidação de um materialismo que justifica o horror das guerras de extermínio, justifica as ações bélicas fundamentadas no racismo e nos faz crer que os mais fortes cometem os piores crimes para proteger-nos, os mais fracos, de nós mesmos. 

O conceito de propriedade privada tem limites, não inclui a vida de outros seres. 

Carolina Vásquez Araya | Colaboradora da Diálogos do Sul na Cidade da Guatemala.
Tradução: Beatriz Cannabrava.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Carolina Vásquez Araya Jornalista e editora com mais de 30 anos de experiência. Tem como temas centrais de suas reflexões cultura e educação, direitos humanos, justiça, meio ambiente, mulheres e infância

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