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Como na Alemanha nazista, direita democrática desapareceu, dando espaço para bolsonarismo

Institucionalmente – e nisso o Brasil é diferente de outros lugares do mundo –, nenhuma instituição judaica brasileira acusou Bolsonaro de nazista
Patricia Fachin
Revista IHU On-line
São Leopoldo (RS)

Tradução:

A “percepção” que se tem no país desde o início das manifestações que estão ocorrendo após o encerramento do segundo turno das eleições presidenciais, segundo Michel Gherman, é de que a “extrema-direita está alcançando setores importantes da sociedade brasileira”. 

Mais do que isso: as pessoas que estão participando e apoiando as manifestações “leem a realidade a partir de perspectivas, letras e símbolos fascistas, como a ideia de uma visão conspiracionista que explica a realidade. 

Quem está dentro desse movimento percebe o mundo somente a partir dessa perspectiva. Estamos falando, portanto, de uma dimensão fascista e nazista que alcançou as massas”, disse na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Na interpretação dele, apesar de a extrema-direita receber o apoio de grupos religiosos, o movimento em curso é um fenômeno que “tem pouco a ver com religião; trata-se do fenômeno do messianismo religioso”. 

Ele explica: “O que a extrema-direita traz para o fenômeno religioso é o elemento do messianismo, do salvacionismo, da ruptura no horizonte, do retorno de Cristo, da chegada do messias, do pagamento das dívidas no tempo. Tudo está acontecendo daqui a pouco tempo. Trata-se da percepção da religião como fenômeno de emergência ou de urgência, Deus voltando à Terra como era para acontecer. Mais do que isso: a extrema-direita religiosa investe na ideia de que temos pouco tempo para resolver questões muito profundas”. 

Esse messianismo, complementa, é observado igualmente na ação de evangélicos latinos nos EUA e nos atentados terroristas de hindus contra muçulmanos na Índia. A que extrema-direita, resume, “produz para o mundo é uma nova utopia, que na minha percepção é distópica, mas, na percepção deles, é utópica”. 

E acrescenta: “Não sei muito bem como resolver essa questão, mas sei que não será com o diálogo no sentido raso da palavra. É preciso um diálogo muito mais profundo”.

Michel Gherman é graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Sociologia e Antropologia pela Universidade Hebraica de Jerusalém e doutor em História Social pela UFRJ. É docente adjunto do Departamento de Sociologia da UFRJ e coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos – NIEJ, do Instituto de História da UFRJ. Coordenada também o Laboratório de Religião, Espiritualidade e Política – LAREP do Departamento de Sociologia da UFRJ. É pesquisador associado do Centro de Estudos Judaicos da Universidade de São Paulo – USP, pesquisador associado do Centro Vital Sasson de Estudos de Antissemitismo da Universidade Hebraica de Jerusalém. Também é professor do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. É diretor acadêmico do Instituto Brasil Israel. Publicou recentemente o livro O não judeu judeu: a tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo (Fósforo Editora, 2022).

Confira a entrevista.

IHU: Como interpreta as manifestações que têm ocorrido no Brasil após o segundo turno das eleições presidenciais? O que elas revelam sobre os grupos bolsonaristas e sobre o Brasil?

Michel Gherman: Estou começando a chamar o que está acontecendo de epidemia do neonazismo no sentido bem estrito do conceito: uma epidemia é localizada quando a transmissão é comunitária e não mais importada. Um dos elementos mais importantes das manifestações de extrema-direita, com símbolos e uma gramática circulando por setores amplos da sociedade brasileira, é que a transmissão dessa perspectiva está muito consolidada em locais específicos e ela já está se desenvolvendo sem precisar da dimensão externa.

A dimensão externa é o que havia na década de 1980, com grupos específicos no Rio Grande do Sul, como a Editora Revisão, ou em São Paulo, com os Carecas do ABC. Ou seja, grupos étnicos vinculados à extrema-direita, mas essa já não é mais a realidade. A realidade é que se tem uma percepção de movimento de perspectiva de extrema-direita que está alcançando setores importantes da sociedade. Quando falo de extrema-direita, me refiro a um grupo que flerta tanto com o nazismo quanto com o fascismo.

Institucionalmente – e nisso o Brasil é diferente de outros lugares do mundo –, nenhuma instituição judaica brasileira acusou Bolsonaro de nazista

Tomaz Silva | Agência Brasil
Manifestantes expressam apoio a Jair Bolsonaro na Avenida Lúcio Costa, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro

Gramática fascista

A única maneira de perceber e entender isso é usando referências sobre a extrema-direita e o fascismo que têm mais realidade e conexão com aquilo que Walter Benjamin chama de política como estética: a imagem, o imaginário e as representações são muito mais importantes do que uma suposta coerência ideológica. No nazismo e no fascismo, essa coerência ideológica é pouco importante; o que mais importa é a representação pública do condicionamento fascista. Ela pode ser manifestada a partir de práticas de massa, com a Noite dos Cristais, em 1938 [1]. Ou seja, manifestações fascistas e nazistas como as motociatas dos bolsominions ou manifestações públicas, por assim dizer, articuladas e ensaiadas. É claro que tem uma dimensão ideológica, mas ela é muito mais fraca e fluida. O que é mais importante é a manifestação no espaço público e é isso que estamos vendo no Brasil, utilizando a mesma dimensão simbólica, os mesmos símbolos, a mesma linguagem e a mesma gramática dos movimentos de extrema-direita da Europa dos anos 1930.

Vou dar alguns exemplos: o que aconteceu em Santa Catarina, com o famoso Sieg Heil [salve a vitória]. Se perguntarmos para as pessoas que supostamente estavam cantando o hino com a mão direita esticada, cada uma delas vai ter uma percepção muito diferente da que tenho, que era uma atitude nazista. O que acontece ali é o estabelecimento da estética nazista, que tem a ver com a massa, com o conjunto das pessoas. Poderia citar vários outros exemplos, desde o slogan “Brasil acima de tudo”, da campanha eleitoral, passando pelo abraço de Bolsonaro em um sósia do Hitler, até o aparecimento, em alguma medida, da frase “o trabalho liberta”, durante o combate ou não combate da pandemia. Mas o que quero dizer muito claramente é que há uma exposição de setores importantes da sociedade brasileira a essas perspectivas, que estou chamando de letramento fascista.

Essas pessoas leem a realidade a partir de perspectivas, letras e símbolos fascistas, como a ideia de uma visão conspiracionista que explica a realidade. Quem está dentro desse movimento percebe o mundo somente a partir dessa perspectiva. Estamos falando, portanto, de uma dimensão fascista e nazista que alcançou as massas.

Isso se fortaleceu com a derrota de Bolsonaro porque ele, na sua perspectiva fascista, dividia a realidade em dois elementos: o elemento da superfície e o elemento do subterrâneo. Na superfície, vemos uma espécie de programa de auditório, uma política da galhofa, a brincadeira, o sarro, uma espécie de incorporação do homem médio que fala o que pensa sem estar comprometido com o politicamente correto. No subterrâneo, vê-se a produção daquilo que se chama de “apito de cachorro”. Não gosto muito desta expressão, mas ela produz um vínculo de símbolos específicos com a massa dos fascistas. Isso mexe com a massa, mas não só com a massa; acaba chegando a pessoas que não são vinculadas a essa dimensão e expande o grupo de fascista que faz uso desses símbolos.

Quando Bolsonaro sai, a galhofa e a superfície desaparecem. O que há é uma inundação do subterrâneo em relação à superfície. Então, a mediação da galhofa feita pelo bolsonarismo cede espaço para o ódio e o ressentimento que estão no subterrâneo. 

Michel Gherman

Foto: UFRJ

O senhor percebe uma diferenciação na pauta, no comportamento e no imaginário dos movimentos neonazistas atuais com os dos anos anteriores que menciona? Desde quando esse movimento contemporâneo está em curso no Brasil? Ele tem um vínculo direto com o bolsonarismo ou já estava sendo gestado antes?

A diferença fundamental entre a Editora Revisão, o Partido Nacional Socialista Brasileiro das décadas de 1980, 1990, os Carecas do ABC é que agora tem Bolsonaro flertando com a extrema-direita e grupos de extrema-direita neonazistas se aproximando de Bolsonaro. Os Carecas do ABC fizeram a primeira manifestação pública em favor de Bolsonaro em 2011, no vão do Museu de Arte de São Paulo – Masp, por conta de uma declaração racista que Bolsonaro fez para a cantora Preta Gil. Esses grupos foram se aproximando de Bolsonaro por causa de suas afirmações de caráter nazista. Quando ele disse, no púlpito do Congresso Nacional, que os alunos do Colégio Militar do Rio de Janeiro poderiam utilizar a figura do Adolf Hitler como paraninfo, isso chamou atenção desses grupos, que se aproximaram dele. Outro exemplo é o pai da vice-governadora de Santa Catarina, que acompanha Bolsonaro há 20 anos. Essas figuras continuam ao lado dele, mas são figuras de vanguarda, são figuras que dimensionam a ideologia a partir de símbolos que carregam há muito tempo.

Entretanto, a partir de 2017 e 2018, começou a surgir outra realidade: pessoas que não estavam comprometidas ideologicamente, que não têm domínio sobre os autores que tratam do nazismo, que não consomem os símbolos nazistas, começaram a se aproximar das perspectivas bolsonaristas mais inequivocamente. Então, as diferenças fundamentais são duas: primeiro, não é Bolsonaro que se aproxima desses grupos. Ao contrário, grupos são criados pelo bolsonarismo e as referências da extrema-direita chegam a eles. Em segundo lugar, estamos falando de grupos de massas e não mais de pequenos representantes de uma ideologia exótica. Estamos falando de pessoas que estão traduzindo essas ideologias para a realidade brasileira e se aproximam cada vez mais de públicos mais numerosos.

Há articulações entre os grupos bolsonaristas e grupos de direita israelense? Recentemente, o senhor comentou que a direita israelense se divide em quatro grupos: a liberal, a radical, a extrema-direita e a extrema-direita neonazi. Pode nos dar um panorama desses grupos? Quando e como surgiram, quais são as diferenças, aproximações e projetos?

Não posso responder a primeira pergunta porque ainda não tenho informações sobre isso. Posso dizer que há aproximações entre grupos de extrema-direita do mundo inteiro, que tinham Trump como a grande referência, mas, depois da derrota dele, chegaram a apostar em Bolsonaro como a referência internacional. Posso dizer claramente que em alguns países essa referência da extrema-direita está dialogando efetivamente com o bolsonarismo. Isso vai desde a extrema-direita até a direita radical, passando por perspectivas tradicionalistas, que é muito forte no Brasil. Estou me referindo aos EUA, à Rússia, à Hungria, à Itália, à Áustria e à Suécia.

Acho muito difícil o bolsonarismo não ter relação com a extrema-direita israelense, mas ainda não localizei isso. O que localizo em relação aos três partidos que estão na extrema-direita israelense é que o discurso deles é muito parecido com o discurso do bolsonarismo em todos os campos, desde a dimensão messiânica política, a importância da religião, até os discursos conspiracionistas. Um deles fala da limpeza racial, exclusão dos inimigos, conversão dos gays e a necessidade de controlar as escolas.

Três questões me fazem pensar se é possível falar em vínculo direto com o bolsonarismo e a extrema-direita israelense. A primeira questão é que Bolsonaro tem um desejo de aproximação com Benjamin Netanyahu, que é um político conservador, corrupto, que não vê limites na aproximação de grupos que podem salvar sua própria pele. Mas não consigo localizar em Benjamin Netanyahu uma dimensão de extrema-direita ou de direita neofascista. Ele se aproxima da extrema-direita como se aproxima da esquerda, se aproxima do centro como se aproxima dos fascistas. A questão dele é ele. Como Benjamin Netanyahu é a grande referência de Bolsonaro, isso acaba, de algum jeito, impossibilitando a aproximação de dele com a extrema-direita que hoje está coligada com Benjamin Netanyahu, mas não de modo estrito. É como se Benjamin Netanyahu fosse um sol tão forte que acabasse apagando a imagem da extrema-direita que fica ao lado dele. Bolsonaro é extremamente apaixonado por ele, mas há algumas contradições: Netanyahu não nega a ciência e combateu a pandemia, enquanto essas posturas foram deixadas de lado no Brasil.

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A segunda questão fundamental diz respeito àquilo que chamo de “Israel imaginário”, baseado em quatro elementos: branquitude, armas, ultracapitalismo e o judeu como sendo cristão. O cristianismo é uma percepção fundamental da extrema-direita brasileira, mas quando se olha para o judeu de quipá, é difícil incorporar nesse judeu a imagem do judeu cristão. E isso acaba criando um afastamento.

O terceiro ponto é que Bolsonaro e o bolsonarismo são profundamente antissemitas e tem uma dificuldade enorme de falar com judeus que realmente parecem judeus. A relação ideológica, estética e da gramática da extrema-direita israelense é muito clara no bolsonarismo. Mas esses dois pontos – o cristianismo e o antissemitismo – acabam produzindo um certo afastamento de Bolsonaro da extrema-direita israelense.

No Brasil, existe o seguinte fenômeno: de um lado, há uma adesão e um apelo religioso legítimo de uma parcela da população e, de outro, uma instrumentalização do discurso religioso por parte da extrema-direita. A partir do que acontece no país, como avalia a relação entre religião e política? Como evitar que a religião seja instrumentalizada para favorecer grupos políticos?

Primeiro, introspectando a ideia de que a religião é um fenômeno legítimo – estou fazendo a parte normativa da sua pergunta. É preciso dizer que a esquerda tem um problema enorme em lidar com a religião: a religião como um fenômeno epistemológico e que vai continuar existindo, que pode ser estudado e entendido. Nesse sentido, a esquerda também tem uma visão instrumental da religião. Ela começa a perceber que é preciso lidar com a religião e começa a dialogar, o que também é feito de modo instrumental.

Mas respondendo à segunda parte da questão, no caso da extrema-direita, o fenômeno tem pouco a ver com religião; trata-se do fenômeno do messianismo religioso. O que a extrema-direita traz para o fenômeno religioso é o elemento do messianismo, do salvacionismo, da ruptura no horizonte, do retorno de Cristo, da chegada do messias, do pagamento das dívidas no tempo. Tudo está acontecendo daqui a pouco tempo. Trata-se da percepção da religião como fenômeno de emergência ou de urgência, Deus voltando à Terra como era para acontecer. Mais do que isso: a extrema-direita religiosa investe na ideia de que temos pouco tempo para resolver questões muito profundas. A única maneira de resolvê-las é se convertendo de verdade.

É um equívoco dizer que isso está acontecendo no Brasil com os evangélicos. Isso está acontecendo com os religiosos de extrema-direita. Os católicos de extrema-direita talvez sejam mais importantes do que os evangélicos. Judeus de extrema-direita são fundamentais. Judeus de extrema-direita foram treinados pelo bolsonarismo para minimizar as questões do nazismo no Bolsonaro e olhar para o apoio aos judeus no sentido amplo – há uma identificação ideológica e política e não mais cultural e étnica. Isso é muito novo, mas só existe porque está se colocando à mesa a questão da emergência. Islâmicos pró-Bolsonaro existem no Brasil e não são poucos; eles criaram um racha dentro da comunidade islâmica brasileira. Mas não só no Brasil.

Nos EUA, há os evangélicos brancos acionando esse tipo de coisa, o que é um fenômeno muito novo. Os evangélicos latinos nos EUA começam a incorporar perspectivas messiânicas e emergenciais do cristianismo e acabam, inclusive, mudando o perfil do voto. Na última eleição para governador na Flórida, os eleitores votaram mais do que nunca no candidato republicado pró-Trump. Na Índia, há um discurso de emergência e atentados terroristas de hindus contra muçulmanos.

O que está em jogo neste campo é que os setores progressistas têm que aprender a lidar com uma referência de emergência. A referência de emergência acabou sendo impossibilitada na esquerda porque os progressistas e os que estão combatendo o fascismo começaram a ser os protagonistas dos setores da democracia, o que é muito pouco para o projeto político. O projeto político tem que, ao defender a democracia, conseguir alguma coisa: mais direitos, um mundo melhor, que as pessoas tenham mais solidariedade. Proteger a democracia é pouco na transformação da agenda política.

Nova utopia

O que a extrema-direita produz para o mundo é uma nova utopia, que na minha percepção é distópica, mas, na percepção deles, é utópica. Os setores progressistas que sempre lidaram muito bem com dimensões de utopia estão lidando agora com dimensões de moderação, enquanto quem está lidando com dimensões de utopia é a extrema-direita religiosa, olhando para Deus como um garantidor das vontades. É uma tarefa muito inglória. Nós, progressistas, perdemos muito tempo tentando normalizar as dimensões utópicas, disruptivas no bom sentido da palavra, os sonhos. 

Quem ocupou esse espaço foram aqueles que sonham com coisas que, para nós, progressistas, são pesadelos, que são disruptivos em uma dimensão impossível, que desafia a ordem democrática em nome de uma outra ordem que é transcendental. Temos que pensar em como lidar com isso, sim, mas o ponto-chave é entender que a religião de Bolsonaro não são os cristãos, os evangélicos, não são os católicos, mas um fenômeno que tem a ver com tudo isso.

Que desafios a emergência das transformações culturais e a proposta de “nova utopia”, propagada pela extrema-direita, traz para as religiões? Como a adesão à religião pode ser um caminho para mudar os ideários neonazistas se grupos religiosos estão rachados?

Para os grupos religiosos, a dimensão messiânica sempre existe e é combatida pelos grupos hegemônicos. Os grupos hegemônicos olham para os grupos messiânicos como grupos disruptivos que podem alterar a ordem e atrapalhar a prática religiosa cotidiana. Um dos elementos mais importantes nessa dimensão disruptiva é o dos sionistas cristãos que, no século 19, foram contra-hegemônicos e muito importantes em termos numéricos, mas desorganizaram, por assim dizer, o protestantismo do Norte e do Brasil nos últimos 30 anos.

Aqui temos uma contradição e é muito difícil sair dela: a religião existe para organizar o mundo. Só que o mundo em que a religião existe é o do aqui e agora. As práticas são as do aqui e agora, práticas cotidianas, sexuais, do uso do capital de maneira disciplinada, solidariedade com os mais pobres etc. Mas tem um elemento no mundo religioso que é contraditório a isso: o elemento da transcendência. Por que se faz isso tudo? Porque existe uma percepção de que é preciso trabalhar para o mundo vindouro, seja lá qual for.

Quando grupos e setores trazem essas questões, eles “quebram a mesa” e “roubam o jogo”, como se diz, porque trazem para a imanência o elemento mais importante da religião, que é a transcendência. Eles trazem o elemento mais importante da religião, que é Deus – e não o Deus que está nos homens, mas o Deus que está no céu, olhando o que os homens fazem –, para dentro da igreja, da sinagoga, da mesquita, e isso altera a dinâmica do jogo. A dinâmica passa a ser, em última instância, a de produzir uma guerra santa e estabelecer os homens de bem versus os homens que não estão com Deus.

Isso tudo é um processo produzido pela extrema-direita, inclusive pela extrema-direita neofascista nos últimos 30 anos. A extrema-direita, a partir do que chamei de religião da extrema-direita, foi quem trouxe, para dentro do debate religioso, a questão do messias e da transformação rápida do mundo em nome do mundo que é todo bom. Estamos em um beco sem saída e estou me contradizendo porque, de um lado, digo que é um desafio que os progressistas tentem entrar no mundo da religião para dialogar com os religiosos, mas, de outro lado, sei que a dimensão messiânica é muito sedutora. Deixou-se chegar a este ponto não só no Brasil, mas no mundo inteiro.

Conversando com bolsonaristas, é possível perceber que o slogan utilizado pelo presidente em torno das noções “Deus, pátria e família”, embora seja bastante difuso e instrumental, mobiliza setores da sociedade que o associam diretamente a uma recusa da esquerda, como se ela representasse uma oposição a todas essas questões. O que isso revela sobre a própria crise da esquerda e seus desafios na formulação de políticas públicas no sentido de se reaproximar dessa parcela do eleitorado e sobre o próprio crescimento da direita em setores populares?

Essas questões têm pouco a ver com religião e com pautas de costume. Elas têm a ver com uma visão conspiracionista da história. No final das contas, estão relacionadas com o antissemitismo. Explico rapidamente: a ideia de que a transformação rápida do mundo é produzida por alguém que detém o poder de transformar o mundo, é a definição mais geral do que chamo de perspectivas conspiracionistas da história. O capitalismo, as transformações tecnológicas, as grandes navegações, ou seja, isso tudo é sempre substituído ou sucedido de grandes dimensões conspiracionistas.

Não é casual que o grande debate sobre pedofilia começou no final da idade média, com uma crise sem precedentes em termos de ideias, de transformações das mentalidades e de expansão das perspectivas tecnológicas, que alcançaram transformações sensíveis. Mas, diante de momentos de mudanças, aciona-se o imaginário coletivo no sentido de dizer que quem está fazendo as transformações são pessoas quase invisíveis, que estão controlando o que acontece no mundo como fantoches.

Teses conspiracionistas

No caso da Europa, foram os judeus. Qual é a acusação feita contra os judeus? A mais perene e a mais grave que já fez: que eles alteraram o tabu do incesto e roubavam crianças para fazer sexo. O discurso da Damares [Alves], em Brasília, sobre as crianças de Marajó, é um discurso típico antissemita medievo, inclusive com as descrições mais terríveis. No caso, não matavam as crianças para fazer sexo, mas o sangue delas era utilizado para comer – e aí se vincula a dimensão bárbara. É disso que estamos falando, e não de agenda moral. São teses conspiracionistas. 

Estamos falando da disseminação da ideia de que a esquerda não é a favor da legalização do aborto, mas a esquerda quer obrigar todas as pessoas a fazerem aborto. Entende? Todos da esquerda viraram assassinos de crianças. Sobre a questão das drogas, divulga-se a ideia não de que há um debate sobre a liberalização das drogas, mas que há uma campanha e um projeto de viciar todos os jovens. Estamos falando de outra coisa. Estamos falando de conspiracionismo, de perspectivas neonazistas sendo apropriadas por uma dimensão religiosa.

Não sou formulador de políticas e não sei como resolver isso. Mas um dos nossos equívocos é discutir em termos racionais com essas pessoas. São pessoas que olham para uma militante feminista favorável à liberação do abortocomo alguém que quer assassinar crianças. É muito provável que haja ondas de violência no final destas manifestações. Não sei muito bem como resolver a questão, mas sei que não será com o diálogo no sentido raso da palavra. É preciso um diálogo muito mais profundo. É preciso produção de política pública de encontro e não somente de conversa. É preciso uma transformação para que essas pessoas coexistam e convivam com a diferença porque a alternativa de não viver com a diferença é a manutenção e produção dessas dimensões conspiracionistas.

Muitos pastores evangélicos perceberam que chegou o momento de sair desse cavalo quando Edir Macedo recuperou a dimensão mais básica do cristianismo e falou em perdão. Ou quando Silas Malafaia disse que é preciso rezar para o Lula. Eles perceberam que foram um pouco além do que era possível. Mas quem recuperou esse debate e incorporou a dimensão do messianismo na conspiração foi a extrema-direita, que hoje domina, mesmo sem Edir Macedo e Malafaia, setores importantes dos protestantes. A extrema-direita, hoje no Brasil, domina setores dos católicos que não reconhecem o estado do Vaticano e domina setores da comunidade judaica que relativizam o holocausto e o nazismo.

Recentemente, o senhor participou de uma palestra sobre a educação antifascista. O que seria um projeto de educação antifascista tendo em vista o crescimento da extrema-direita no país? Como permitir a manifestação política da direita sem cair em fascismo?

Tem um movimento interessante que tenho percebido nos setores da direita que começam a se convencer de que a única direita possível é a extrema-direita. É preciso resgatar uma direita liberal e democrática. O que aconteceu no Brasil é tal qual o que aconteceu na Alemanha nazista na década de 1930: a direita democrática minguou. A direita fascista é uma direita que educa para um projeto, é uma direita que educa com um projeto e não para refletir. É preciso investir muito profundamente em uma educação antifascista, onde não se fale somente de lembrar, mas de entender os processos que levaram a isso. A ideia de lembrar, na minha opinião, é uma ideia profundamente reacionária: é como se, ao se lembrar do que aconteceu, não se reproduzirá mais a possibilidade de um projeto fascista. Nem na psicanálise isso dá certo, quanto mais na educação.

É preciso produzir e criar uma outra forma de educação onde não o holocausto, mas a ascensão do nazismo seja trazida para o discurso, onde as perspectivas que ameacem a vida de outras pessoas não sejam legítimas. A pessoa não pode ter a liberdade total de dizer que quer que todos os judeus morram, porque aqui há um choque das liberdades: a liberdade da vida de um e a liberdade de opinião do outro. A liberdade da vida vale mais do que a liberdade da opinião. Temos que começar a fazer um dever de casa sobre essas questões de maneira mais incisiva: temos que produzir reflexões que já parecem ultrapassadas, mas não são. O debate sobre liberdade de expressão tem que ser revisitado.

O senhor comentou recentemente que “é preciso descolonizar e libertar urgentemente o judaísmo da colonização da extrema-direita, antes que seja tarde demais”. Como o judaísmo tem se aproximado e sido instrumentalizado por movimentos de extrema-direita?

Uso a palavra “colonizado” porque ela estabelece uma relação de apropriação e desapropriação típica do colonialismo. Não é somente o judaísmo que é apropriado pela extrema-direita, mas os judeus que não são de extrema-direita são deslegitimados pelos judeus de extrema-direita. Há um processo típico da colonização que, de um lado, incorpora e apropria referências típicas do judaísmo ou de qualquer outra coisa e, de outro, aqueles que se aproximam têm como tarefa excluir aqueles que não se aproximam. Essa é a dialética.

Aqui tem uma questão específica com o judaísmo porque ele tem um elemento que aproxima esse cristianismo, do qual Bolsonaro vem, de uma referência mais original. Bolsonaro brinca com a ideia de originalidade, dizendo que o judaísmo produziu o cristianismo e, portanto, ele é próximo do judaísmo e é mais cristão do que os outros. Além disso, tem a questão mais fundamental, que é a ideia de apropriar o judaísmo desapropriando os judeus. Mas isso também acontece com os cristãos – escutamos isso entre os evangélicos de esquerda. Essa desapropriação é típica do colonialismo. O que Bolsonaro conseguiu fazer na política nacional foi colonizar, mais do que instrumentalizar, as referências religiosas.

Qual é a adesão de grupos judaicos ao bolsonarismo?

A comunidade judaica brasileira é muito pequena. Tem 100, 120 mil pessoas na melhor das hipóteses. É uma comunidade urbana, formada majoritariamente por pessoas brancas e é uma comunidade produzida por pessoas que têm características desses fenômenos, serem brancas e urbanas, ou seja, classe média e classe média alta, tal qual os demais brasileiros.

A produção de perfil eleitoral desses grupos é a mesma de grupos não judeus que são iguais a eles. Não judeus brasileiros, brancos e de classe média, votaram mais em Bolsonaro do que em Lula. Os judeus brasileiros votaram mais em Bolsonaro do que em Lula. É importante perceber que os judeus votaram igual aos seus vizinhos. O drama é que os judeus fizeram isso em um momento em que estavam sendo colonizados pelo bolsonarismo e eles não perceberam. 

Institucionalmente – e nisso o Brasil é diferente de outros lugares do mundo –, nenhuma instituição judaica brasileira acusou Bolsonaro de nazista. Inclusive, colocaram-se de maneira desconfortável quando os grupos progressistas recém-criados da comunidade judaica, Judeus para Democracia, por exemplo, começaram a acusar Bolsonaro de nazista. Um dos elementos que posso verificar é que, institucionalmente, Bolsonaro foi normalizado pela comunidade judaica.

A que atribui essa normalização?

Atribuo a uma característica do Brasil. Os judeus brasileiros são tão brancos e de classe média que não perceberam que era importante se posicionar publicamente em relação ao discurso tipicamente nazista de Bolsonaro. Diga-se, de passagem, que os judeus que não eram das instituições formais se posicionaram muito fortemente. Foram dos grupos minoritários, os que mais se posicionaram publicamente. O racha que aconteceu entre judeus progressistas e judeus bolsonaristas foi muito mais potente do que o racha entre evangélicos bolsonaristas e não bolsonaristas. Isso tem muito a ver com o Brasil. Os judeus brasileiros são profundamente brasileiros.

Ainda sobre a sua declaração: “É preciso descolonizar e libertar urgentemente o judaísmo da colonização da extrema-direita, antes que seja tarde demais”. O que o senhor quer dizer exatamente com “antes que seja tarde demais”?

Esta foi uma declaração feita no Twitter e, às vezes, exageramos para criar o debate público, mas está cada vez mais claro que as relações do bolsonarismo com o nazismo são relações profundas e perenes. Vai haver um momento em que o custo de a comunidade judaica não dizer isso claramente será alto demais. Se o posicionamento público não aparecer, se o debate sobre a banalização do holocausto for maior do que o crescimento do nazismo, vamos ter um problema, um custo público e político muito alto.

Como vai se exigir da sociedade brasileira estudar o nazismo, coisa que a comunidade judaica tem feito nos últimos 20 anos, se, na hora de um candidato nazista ter sido eleito e ter exercido o mandato como um nazista, a preocupação era não chamar isso de nazismo nem combater o nazismo? Se essa colonização não for revertida, os custos públicos e políticos serão impressionantes.

Quais os desafios do novo governo Lula? O que se pode esperar deste governo de frente ampla?

O governo Lula surgiu para dar conta de uma situação que está se colocando em outros lugares do mundo, que é a questão da frente ampla ou da geringonça, que em alguns lugares deu certo e em outros, não. Nos EUA, parece que isso vai dar certo. Em Israel, deu errado de maneira trágica. O presidente eleito está articulando com grupos neonazistas no parlamento israelense, os quais podem efetivamente alterar a democracia do país, transformando-a em uma democracia de baixa qualidade, quiçá em coisa pior. Temos que olhar para esses dois casos e fazer uma análise para saber aonde Lula quer ir.

Ele precisa fazer um governo de frente ampla, precisa disputar os corações e as mentes das pessoas que foram excluídas do governo de extrema-direita, mas tem que manter perto de si os aliados conquistados nessa luta pela frente ampla e pela frente democrática. Isso é fundamental. Fico muito angustiado que nesse governo de transição não haja um governo de transição para discutir a desbolsonarização do Brasil. É fundamental, no campo da educação, haver um grupo de trabalho para discutir a possibilidade de desnazificação do país.

Nota:

[1] A “Noite dos Cristais”, de 9 para 10 de novembro de 1938, em toda a Alemanha e Áustria, foi marcada pela destruição de símbolos judaicos. Sinagogas, casas comerciais e residências de judeus foram invadidas e seus pertences destruídos. (Nota do IHU)

As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Patricia Fachin

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