Quando abrimos um livro de receitas ou compramos qualquer coisa no supermercado, sabemos quanto devemos usar para cada prato ou quanto daquela comida estamos comprando. Isso é medido em gramas e quilogramas.
Essas medidas têm uma história que não é apenas complexa, mas profundamente política e ligada ao exponencial aumento do comércio no século 19. Uma história que mistura ciência, comércio e religião, entre outras variáveis, que resultou muitas vezes em revoltas populares e insatisfações.
Por muito tempo, o metro e o quilograma foram acusados de serem sistemas de pesos e medidas ligados ao ateísmo, à adoração do diabo estragando os desígnios de Deus.
O quilograma, assim como o metro, nasceu dos questionamentos sobre as medidas tradicionais e despadronizadas durante o Iluminismo, na França do século 18. Para filósofos e cientistas da época, a profusão de pesos e medidas usadas então por diferentes países ou mesmo regiões da França, atrapalhavam o comércio, a ciência e, em última instância, a vida cotidiana das pessoas.
Era preciso achar uma maneira de pesar e medir as coisas que não se fixasse em um padrão aleatório, geralmente baseado no corpo do rei, como acontecia até então. Como se acreditava que o rei possuía um poder que vinha de Deus, essas medidas eram consideradas divinas. Polegadas, pés ou braços eram comuns serem usados para medições.
Labrousse, L. (gravador de Bourdeux), 15 de março de 1800, Musée Carnavalet, Paris
Gravura que mostra os usos das novas medidas para a população francesa
O novo padrão deveria vir de uma medida natural, ou seja, uma medida decorrente de um experimento com a natureza, passível de ser reproduzido se o padrão original fosse perdido.
A aplicação de medidas científicas só vieram com os iluministas revolucionários franceses que, durante a revolução de 1789, decidiram mudar radicalmente os padrões vigentes – tanto na contagem do tempo, com a criação de um novo calendário, como nos padrões de medidas. O metro nasceu, portanto, dos questionamentos científicos durante a Revolução Francesa. É, assim, uma medida que ligada a um experimento científico conduzido pelo homem, e não por Deus.
Depois de décadas de discussão, criou-se uma nova Comissão de Pesos e Medidas, formada por cientistas e filósofos eminentes. Logo no início do processo, chegou-se a um padrão, correspondente a décima milionésima parte da distância do equador terrestre ao polo norte medida ao longo de um meridiano. Mas não era um meridiano qualquer ou aleatório, era o meridiano que passava pela cidade de Paris. A medida se chamaria metro, palavra vinda do grego, métron, que significa justamente “medida”. A partir dela, os cientistas da comissão estabeleceram as variações decimais, para baixo, como milímetro e o centímetro, e para cima, como o quilômetro.
A mesma comissão trabalhou com um sistema único de pesagem, criando o grama, inicialmente chamado de “grave”. Sua definição científica tinha por base a massa de um decímetro cúbico de água destilada, no vácuo, no seu ponto de congelação. A palavra também vinha do grego, significando “peso pequeno”. O mesmo sistema decimal foi definido para se pesar derivados, como o centigrama e o quilograma.
Por muitos séculos, as medidas e os padrões eram explicados como fenômenos inspirados em Deus ou atos divinos. Essa noção, quebrada pelos cientistas e filósofos da Revolução Francesa, se intensificou numa série de cientistas, engenheiros, escritores e astrônomos que contestavam a adoção do metro.
Foram várias sociedades antimétricas, principalmente nos Estados Unidos. Todas expunham clássicos argumentos dos movimentos antirreformistas americanos da época. Era uma mistura feroz de teorias conspiratórias, uma volta à natureza e a Deus, uma distorção grosseira de fatos de história e de ciência, uma xenofobia e nacionalismos exacerbados.
Os defensores do metro e do quilograma seriam os outros, ou seja, os revolucionários, anticristãos, socialistas, estrangeiros reformistas, cientistas “loucos”.
A principal teoria desenvolvida e aceita pelas sociedades antimétricas era a da Grande Pirâmide de Gizé, no Egito. Ela era tida na época como uma das grandes maravilhas do mundo, símbolo de solidez e permanência. Um membro do parlamento britânico, Richard Vyse ao viajar para o Egito ficou convencido que a pirâmide guardava conhecimentos matemáticos secretos. Entre 1859 e 1864, ele publicou vários panfletos.
Eles acreditavam que a matemática envolvida na construção da pirâmide guardava um segredo – que a razão entre dois lados da base da pirâmide com sua altura era exatamente igual a pi, ii~, um número irracional desconhecido por séculos. Acreditavam também que os egípcios teriam sido incapazes de formularem algo tão elaborado – e que os cálculos para se construir a pirâmide teria vindo de israelitas. Como os cálculos teriam vindo de isrealistas, o povo escolhido por Deus, cujo principal projeto arquitetônico havia sido a construção da Arca de Noé, as medidas de Gizé seriam sagradas, feitas pelo “Grande Arquiteto da Humanidade”: Deus.
A história não tinha nenhum fundamento, já que os israelitas haviam passado pelo Egito muito depois de a pirâmide ser construída. No fundo a adoção dos padrões de medida franceses se tornava uma batalha entre um sistema antigo e sagrado, concebido por Deus, e um novo, moderno e revolucionário, feito pelo homem. O quilo, que usamos tanto no nosso dia em receitas ou no supermercado, tem uma história revolucionária, ligada à ciência.
Joana Monteleone, Editora e historiadora. Autora dos livros “Toda comida tem uma história” (Oficina Raquel, 2017) e “Sabores Urbanos: alimentação, sociabilidade e consumo” (Alameda Casa Editorial, 2015).
Edição: Rodrigo Chagas
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