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Conheça a história do quilograma, medida considerada demoníaca e revolucionária

O quilo , assim como o metro, nasceu dos questionamentos sobre medidas tradicionais e despadronizadas durante o Iluminismo, na França do século 18
Joana Monteleone
Brasil de Fato
São Paulo (SP)

Tradução:

Quando abrimos um livro de receitas ou compramos qualquer coisa no supermercado, sabemos quanto devemos usar para cada prato ou quanto daquela comida estamos comprando. Isso é medido em gramas e quilogramas.

Essas medidas têm uma história que não é apenas complexa, mas profundamente política e ligada ao exponencial aumento do comércio no século 19. Uma história que mistura ciência, comércio e religião, entre outras variáveis, que resultou muitas vezes em revoltas populares e insatisfações.

Por muito tempo, o metro e o quilograma foram acusados de serem sistemas de pesos e medidas ligados ao ateísmo, à adoração do diabo estragando os desígnios de Deus.

O quilograma, assim como o metro, nasceu dos questionamentos sobre as medidas tradicionais e despadronizadas durante o Iluminismo, na França do século 18. Para filósofos e cientistas da época, a profusão de pesos e medidas usadas então por diferentes países ou mesmo regiões da França, atrapalhavam o comércio, a ciência e, em última instância, a vida cotidiana das pessoas.

Era preciso achar uma maneira de pesar e medir as coisas que não se fixasse em um padrão aleatório, geralmente baseado no corpo do rei, como acontecia até então. Como se acreditava que o rei possuía um poder que vinha de Deus, essas medidas eram consideradas divinas. Polegadas, pés ou braços eram comuns serem usados para medições.

O quilo , assim como o metro, nasceu dos questionamentos sobre medidas tradicionais e despadronizadas durante o Iluminismo, na França do século 18

Labrousse, L. (gravador de Bourdeux), 15 de março de 1800, Musée Carnavalet, Paris
Gravura que mostra os usos das novas medidas para a população francesa

O novo padrão deveria vir de uma medida natural, ou seja, uma medida decorrente de um experimento com a natureza, passível de ser reproduzido se o padrão original fosse perdido.

A aplicação de medidas científicas só vieram com os iluministas revolucionários franceses que, durante a revolução de 1789, decidiram mudar radicalmente os padrões vigentes – tanto na contagem do tempo, com a criação de um novo calendário, como nos padrões de medidas. O metro nasceu, portanto, dos questionamentos científicos durante a Revolução Francesa. É, assim, uma medida que ligada a um experimento científico conduzido pelo homem, e não por Deus.

Depois de décadas de discussão, criou-se uma nova Comissão de Pesos e Medidas, formada por cientistas e filósofos eminentes. Logo no início do processo, chegou-se a um padrão, correspondente a décima milionésima parte da distância do equador terrestre ao polo norte medida ao longo de um meridiano. Mas não era um meridiano qualquer ou aleatório, era o meridiano que passava pela cidade de Paris. A medida se chamaria metro, palavra vinda do grego, métron, que significa justamente “medida”. A partir dela, os cientistas da comissão estabeleceram as variações decimais, para baixo, como milímetro e o centímetro, e para cima, como o quilômetro.

A mesma comissão trabalhou com um sistema único de pesagem, criando o grama, inicialmente chamado de “grave”. Sua definição científica tinha por base a massa de um decímetro cúbico de água destilada, no vácuo, no seu ponto de congelação. A palavra também vinha do grego, significando “peso pequeno”. O mesmo sistema decimal foi definido para se pesar derivados, como o centigrama e o quilograma.

Por muitos séculos, as medidas e os padrões eram explicados como fenômenos inspirados em Deus ou atos divinos. Essa noção, quebrada pelos cientistas e filósofos da Revolução Francesa, se intensificou numa série de cientistas, engenheiros, escritores e astrônomos que contestavam a adoção do metro.

Foram várias sociedades antimétricas, principalmente nos Estados Unidos. Todas expunham clássicos argumentos dos movimentos antirreformistas americanos da época. Era uma mistura feroz de teorias conspiratórias, uma volta à natureza e a Deus, uma distorção grosseira de fatos de história e de ciência, uma xenofobia e nacionalismos exacerbados.

Os defensores do metro e do quilograma seriam os outros, ou seja, os revolucionários, anticristãos, socialistas, estrangeiros reformistas, cientistas “loucos”.

A principal teoria desenvolvida e aceita pelas sociedades antimétricas era a da Grande Pirâmide de Gizé, no Egito. Ela era tida na época como uma das grandes maravilhas do mundo, símbolo de solidez e permanência. Um membro do parlamento britânico, Richard Vyse ao viajar para o Egito ficou convencido que a pirâmide guardava conhecimentos matemáticos secretos. Entre 1859 e 1864, ele publicou vários panfletos.

Eles acreditavam que a matemática envolvida na construção da pirâmide guardava um segredo – que a razão entre dois lados da base da pirâmide com sua altura era exatamente igual a pi, ii~, um número irracional desconhecido por séculos. Acreditavam também que os egípcios teriam sido incapazes de formularem algo tão elaborado – e que os cálculos para se construir a pirâmide teria vindo de israelitas. Como os cálculos teriam vindo de isrealistas, o povo escolhido por Deus, cujo principal projeto arquitetônico havia sido a construção da Arca de Noé, as medidas de Gizé seriam sagradas, feitas pelo “Grande Arquiteto da Humanidade”: Deus.

A história não tinha nenhum fundamento, já que os israelitas haviam passado pelo Egito muito depois de a pirâmide ser construída. No fundo a adoção dos padrões de medida franceses se tornava uma batalha entre um sistema antigo e sagrado, concebido por Deus, e um novo, moderno e revolucionário, feito pelo homem. O quilo, que usamos tanto no nosso dia em receitas ou no supermercado, tem uma história revolucionária, ligada à ciência.

Joana Monteleone, Editora e historiadora. Autora dos livros “Toda comida tem uma história” (Oficina Raquel, 2017) e “Sabores Urbanos: alimentação, sociabilidade e consumo” (Alameda Casa Editorial, 2015).

Edição: Rodrigo Chagas


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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