Ninguém disse que seria fácil, mas sempre surpreende tropeçar com a mesma pedra e constatar essa (in)capacidade que costumam ter as forças progressistas para dilapidar os poucos momentos de ruptura e de conquistas históricas, quase sempre obtidos muito dolorosamente, simplesmente por não agir em torno a eles, por exemplo, com unidade e sem hegemonias. Dito de outra maneira, essa disposição a não querer ganhar quando tem tudo para consegui-lo.
Algo disso poderia estar passando no Chile, quando a centro-esquerda correu para formar quatro comandos de campanha para o processo constituinte que se inicia em 26 de abril, com um plebiscito que perguntará a 14,3 milhões de chilenos habilitados para votar se aprovam ou não a redação de uma nova constituição e como gostariam de fazê-lo: “convenção mista” (50% de parlamentares em exercício e 50% de delegados eleitos) ou uma convenção cuja totalidade dos membros sejam eleitos.
A esses comandos dos partidos políticos desprezados socialmente – têm míseros 2% de confiança cidadã – poderiam somar-se vários “comandos independentes” que estão sendo criados ao calor de milhares de assembleias territoriais e de forças sociais heterogêneas que aspiram também armar “partidos constituintes”, para ter representação direta na provável futura convenção, integrantes que serão eleitos em outubro. Também há os que apelam a desconhecer o processo em marcha, por ilegítimo, e que reclamam uma Assembleia Constituinte Soberana e auto convocada, mas que aparentemente estão dispostos a votar em abril. Enfim, é uma confusão.
Batalhar por derrubar a constituição pinochetista de 1980, que enclaustra o modelo mercantil neoliberal que rege a vida cotidiana do Chile, tem sido a mais frustrante tarefa do progressismo desde 1990. Mas, do nada, a explosão social de 18 de outubro a consagrou como uma exigência com 80% de apoio e, em pleno levantamento cidadão, com um governo em total descontrole da ordem pública e com o exército a ponto de sair dos quartéis, a direita, incluído o pinochetismo rançoso, cedeu e entregou o que negou por quase 30 anos. Conquista puramente da mobilização.
![“Uma grande aprendizagem foi o "Comando pelo Não”, que agrupou mais de 17 forças políticas que foram capazes de ter um objetivo comum, afirma Gloria de La Fuente](https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/wp-content/uploads/2023/10/8f556361-57f0-4305-ab42-dc6a748ec09c.png)
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Protestos no Chile
Gloria de la Fuente, presidenta da Fundação Chile 21, cientista política na Universidade Católica do Chile e doutora em Ciências Sociais da Universidade do Chile, recorre à experiência histórica para analisar o momento e retrocede a 1988, quando o prolongamento da ditadura por outros sete anos foi derrotada em um plebiscito que Pinochet organizou para ganhar, mas perdeu.
“Uma grande aprendizagem foi o “Comando pelo Não”, que agrupou mais de 17 forças políticas em um grande espectro e que foram capazes de ter um objetivo comum. A força desse período foi vencer o medo para levar muitas pessoas a se inscrever e votar. A grande conquista foi derrotar os egoísmos e os distintos olhares por um objetivo comum. Até agora não temos visto que exista esse nível de análise e de generosidade. A três meses do plebiscito, observa-se muita dispersão e um diagnóstico confuso, falta uma força para mobilizar em um cenário de voto voluntário”.
Ela sentencia que “não havendo unidade de propósitos e sentido de urgência estamos muito mal. Necessitamos um discurso homogêneo que gere confiança acerca do processo político para levar gente às urnas e isso agora não está garantido”.
Enquanto isso acontece na centro-esquerda, a direita se uniu quase absolutamente em torno ao rechaço de uma constituinte. A desordem que reinou em suas filas desapareceu e hoje é uma minoria a que diz estar pela aprovação; apenas dois dos 19 senadores direitistas e 22 deputados de 71 a respaldam. Boa parte do conservadorismo que corre a defender a herança do pinochetismo argumenta que o caminho constituinte foi pactuado em condições de violência que lhe tirariam legitimidade e inclusive têm insinuado que poderia falhar.
“A ideia da violência para deslegitimar o processo, tem que ver com a disputa hegemônica na direita. É evidente que houve violência, mas o responsável por garantir a ordem pública é o governo. Temos um deficit em entender quais são as violências que se expressam na mobilização social, que estavam enterradas e saíram à luz. Não corresponde caricaturar essa violência, mas compreendê-la, o que não equivale a justificá-la, para dar uma resposta. A violência serve a todos os setores que não acreditam no processo constituinte, da extrema-direita à extrema-esquerda”, diz Gloria de la Fuente.
Confira um resumo da entrevista
La Jornada – O oficialismo continua apostando na teoria de que “o pior já passou” e a fazer fracassar a agenda de mudanças estruturais?
Gloria de la Fuente – A ninguém convém afirmar que o pior já passou e que o protesto não voltará a ser o mesmo. Com um governo com mínima aprovação e as instituições caídas em termos de confiança, é impossível pretender que haja normalidade. Portanto, é impossível rechaçar uma agenda de transformações sociais relevantes. Este movimento tem demonstrado que o que acreditamos durante anos, dogmas de fé sobre os quais agia a política, já não existem. Hoje é inaudito não pensar em reformas estruturais de longo prazo e que requerem um debate de sustentabilidade. A discussão acerca de um novo pacto social é indispensável e não a ter é só adiar o conflito.
Com o nível de asco existente para com a política, pode a esquerda pretender exercer algum tipo de articulação sobre o mal-estar cidadão e a mobilização social?
Eu falaria das esquerdas ou das oposições, não de uma, que apesar de existirem não têm clareza de como enfrentar o momento político. Pretender liderar vai ser um caminho longo para a política, porque implica reconstruir laços que estão rotos.
Em termos de conquistas, para boa parte da sociedade chilena precarizada, até agora não há resultados tangíveis fruto de mobilização.
A conquista até agora é só uma promessa. Há um trajeto constitucional e projetos de certas políticas públicas, mas até aqui a conquista não se consolidou e continua em risco. Mas dito em bom chileno, “na porta do forno se queima o pão” e há que estar atentos a isso; cuidar do processo no curto, médio e longo prazo.
*Aldo Anfossi especial para La Jornada desde Santiago do Chile.
**La Jornada, especial para Diálogos do Sul — Direitos reservados.
***Tradução: Beatriz Cannabrava
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