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ToggleNo distrito do Brás, no centro de São Paulo, a pandemia do novo coronavírus fez um triste registro: quatro pessoas morreram em apenas um centro de acolhida exclusivo para idosos em situação de rua, a Casa de Simeão. Além das mortes, 40 usuários com mais de 60 anos tiveram infecção confirmada e quatro funcionários foram afastados por serem de grupos de risco para a Covid-19. O local, que abriga mais de 140 pessoas, é administrado pela Associação Reciclázaro, em convênio com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS).
“Os senhores que saem da casa para o hospital já imaginam que vão direto para o cemitério”, conta Josué*, assistente social terceirizado da prefeitura responsável pelo transporte dessas pessoas.
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Segundo Josué, a instituição só recebeu testes para os idosos em maio. Em pouco mais de um mês, o assistente social fez o transporte de 15 pessoas para os hospitais da capital paulista. Casos graves são transferidos para o Hospital de Campanha do Anhembi ou para o abrigo emergencial da Vila Mariana.
Reprodução: Agência Pública
“Eu enxergo essa situação do jeito que a prefeitura se mostra: omissa. As atitudes por ela tomadas dão a entender que eles querem realmente uma higienização social. O vírus é a pá e a vassoura para fazer a limpeza social que desejam. Acredito que o pico de casos na população de rua vai ser agora em junho porque só agora eles começaram a fazer testes. Imagino que vai ser um colapso para os serviços de assistência. Essa é a minha preocupação”, critica Josué.
A Agência Pública conversou com Genildo Monteiro, gerente da Casa de Simeão, que confirmou o número de quatro mortes e 40 contaminações pelo coronavírus. Segundo ele, atualmente todos os idosos da instituição estão recuperados e não há nenhum caso suspeito de Covid-19.
Os óbitos na Casa de Simeão colocaram o Brás como um dos três distritos de São Paulo com mais mortes confirmadas em instituições para pessoas com 60 anos ou mais. Ao todo, foram oito óbitos confirmados por Covid-19 em centros de acolhida e em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) no distrito. Os dados são um levantamento do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP/SP) a que a Agência Pública teve acesso.
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Segundo o MP, São Paulo já tem 206 mortes confirmadas e mais 64 óbitos suspeitos apenas em instituições que abrigam idosos. Cerca de um terço de todas as ILPIs e centros de acolhida na cidade tiveram casos confirmados da doença. O número de idosos nessas instituições com confirmação ou suspeita de infecção pelo coronavírus já passa de mil.
A situação de São Paulo é um retrato de um cenário que se repete por todo o país. A Pública apurou que abrigos para idosos sem condições de viverem sozinhos e equipamentos que recebem pessoas com mais de 60 anos em situação de rua enfrentam dificuldades para proteger o grupo mais vulnerável à pandemia.
Estudo estima que Covid-19 pode matar 33 mil idosos que vivem em abrigos no país
De acordo com o estudo “A Covid-19 nas ILPIs brasileiras”, o número de mortes de idosos em ILPIs por Covid-19 pode ultrapassar os 33 mil, se não forem tomadas medidas de proteção a essas pessoas. A reportagem conversou com Edgar Nunes, coordenador do Núcleo de Geriatria e Gerontologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e consultor do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), um dos pesquisadores que desenvolveu o estudo.
Segundo Nunes, na Europa, mais de 50% dos óbitos pelo novo coronavírus ocorreram em “care homes”, instituições semelhantes às ILPIs brasileiras. Na Noruega, 64% de todas as mortes foram nessas instituições. Isso porque, segundo Nunes, as ILPIs são um lar para pessoas extremamente fragilizadas, não apenas pela idade avançada, mas por condições de saúde que as colocam em situação de dependência.
“Esses são os lugares onde você tem uma tempestade perfeita no meio de uma pandemia. O idoso não está lá apenas por uma questão social, mas porque tem doenças crônicas, como hipertensão, diabetes, doença cardiovascular, que são de risco para o novo coronavírus. São justamente essas doenças que os levaram a ter as incapacidades, a se tornarem idosos frágeis, dependentes e que precisam ser cuidados por terceiros”, detalha.
O Brasil tem oficialmente cerca de 83 mil pessoas vivendo em ILPIs, abrigos para quem tem 60 anos ou mais, é dependente de cuidados e não tem condições de viver com familiares. Mas os dados oficiais, do Sistema Único de Assistência Social (Suas), estão distantes da realidade. A estimativa é que existam hoje mais de 400 mil idosos em ILPIs no Brasil. A diferença nos dados, segundo Nunes, é explicada pela falta de um censo completo nessas instituições. Ele conta que a maioria, inclusive, não é pública e não está vinculada ao Suas, o que deixa uma série de abrigos fora do radar do governo.
“Essas instituições deveriam ser um dos principais focos de atenção durante a pandemia, pois foram um dos locais onde mais ocorreram mortes por Covid-19 em diversos países. Não são lugares para abandono dos idosos, mas equipamentos importantes para saúde da população mais velha, e que vão se tornar cada vez mais comuns no país com o envelhecimento da população e redução do tamanho das famílias”, aponta Nunes.
O Ministério da Saúde não divulga um número oficial de mortes e casos da doença em instituições para idosos. Centros para idosos cobram auxílio do governo e criam frente nacional
A preocupação com a situação dos milhares de idosos abrigados no Brasil foi levada ao Governo Federal e ao Congresso pela Frente Nacional de Fortalecimento às ILPIs, que se reúne desde abril com a Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa da Câmara dos Deputados. Criada por gestores e funcionários de ILPIs e também por profissionais de saúde e pesquisadores da saúde da população idosa, a Frente cobrou do Governo Federal um plano de ação específico para essas instituições, antes que o coronavírus causasse a morte de milhares de idosos.
“São instituições que não têm condição de assumir por si só o combate ao coronavírus, por exemplo, com gastos com medicamentos, testes ou garantindo o isolamento de um idoso que se infectar. Não é uma questão de culpabilizar as instituições, pois são dificuldades causadas pela falta de recurso e de uma política integral para essas ILPIs, situação histórica que se agravou com a pandemia”, defende a médica Karla Giacomin, coordenadora nacional da Frente.
Ela explica que um dos gargalos é que as ILPIs são vinculadas à assistência social, não à saúde, o que impede que elas recebam recursos das secretarias de saúde ou contratem equipes médicas. E mais, com a pandemia, as fontes de financiamento da maior parte das ILPIs, que são filantrópicas, secaram: doações diminuíram e o isolamento tornou inviável fazer eventos de caridade, como bazares, que costumavam gerar recursos para esses abrigos.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos havia anunciado em março que iria cadastrar abrigos de idosos para ações de combate ao coronavírus. A Agência Pública questionou a pasta sobre quantos abrigos foram cadastrados e quais ações foram tomadas em relação a esses abrigos. O ministério respondeu que cadastrou 2.688 abrigos e que selecionou organizações para repassar materiais de higiene, EPIs e cestas básicas para 500 ILPIs previamente cadastradas, mas que não fará repasses em dinheiro. A reportagem também perguntou à pasta sobre a promessa feita pelo Ministério de encaminhar para as ILPIs parte dos R$ 3,4 bilhões da Medida Provisória 929, de 25 março, e também de R$ 7 milhões de emendas. A resposta foi que a ação ainda não foi concluída. O ministério diz não compilar dados sobre casos e mortes por Covid-19 em abrigos.
Já no final de abril, após cobranças da Frente de Fortalecimento às ILPIs, o Ministério da Cidadania publicou uma portaria que estabeleceu um auxílio para abrigos de idosos ou pessoas com deficiência. Segundo a portaria, o Ministério enviaria auxílio de R$ 400 por pessoa internada, R$ 175 para compra de equipamento de proteção individual por trabalhador e R$ 115 para alimentação, por pessoa.
A Pública questionou o envio desse auxílio para o ministério, que respondeu que todas as 1.982 instituições cadastradas no censo da Secretaria de Assistência Social de 2019 (Censo SUAS) estão aptas a receber o auxílio, mas que “não é possível mensurar os valores específicos repassados para as ILPIs tendo em vista que ainda não foi finalizado o preenchimento do Plano de Ação”. A assessoria do Ministério acrescentou que foram repassados R$ 704 milhões para compra de alimentos via Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência, Idosas e suas Famílias (R$ 534 milhões) e para ações assistenciais no atendimento de famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade e risco social (R$ 534 milhões).
A ajuda financeira do governo é ainda mais fundamental para abrigos em regiões mais pobres do país, como na ILPI gerida por Ana Paula Moura, na cidade de União dos Palmares, no interior de Alagoas.
“Começamos a montar planos de ação antes mesmo da pandemia chegar ao Brasil, mas vimos que seria muito difícil executar ações de prevenção e combate à proliferação do vírus, se o poder público não cumprisse seu papel. Fizemos malabarismo para conseguir comprar EPIs, álcool gel e líquido, reforçar a compra de material de limpeza, instalar lavatório de mãos na entrada da entidade”, afirma. De acordo com a gestora, o estado possui 25 ILPIs filantrópicas.
Segundo Moura, além da diminuição das doações, a pandemia levou ao aumento das despesas com medicamentos, o preço das fraldas subiu e os EPIs são cada vez mais caros. E por ser uma entidade de assistência social, sem vínculo com a secretaria de saúde, foi preciso acionar o Ministério Público para que a Prefeitura firmasse um termo de colaboração. “A Secretaria de Saúde está colaborando com médico, medicamentos, teste rápido para casos sintomáticos, alguns equipamentos de monitoramento. Já a Secretaria de Assistência Social firmou convênio com o Ministério da Cidadania, onde passaram a nos fornecer mensalmente quites com EPIs, alimentos e ajuda de R$ 400 por idoso infectado”, acrescenta.
Atualmente, 28 idosos do abrigo tiveram confirmação para Covid-19, houve duas mortes e há três casos suspeitos.
Idosos em situação de rua se aglomeram em complexo em São Paulo
De pé ou sentadas na calçada, centenas de pessoas se aglomeram diariamente na entrada do Complexo Boracea, na Barra Funda, Zona Oeste de São Paulo. Da porta para dentro, mais de 1,2 mil pessoas em situação de rua compartilham um terreno de 17 mil metros quadrados — pouco mais de dois campos de futebol. Uma aglomeração que agora, com a pandemia de Covid-19, é motivo ainda maior de preocupação, especialmente por um dos grupos que recebe atendimento no local: os idosos.
Das sete acomodações do complexo, uma, chamada Aconchego, é exclusiva para pessoas com 60 anos ou mais em situação de rua. O espaço, que abriga cerca de 1.200 idosos, é administrado pela ONG Apoio (Associação de Auxílio Mútuo da Região Leste).
Segundo Denise*, que trabalha no Aconchego desde o início da quarentena, sobram pessoas dividindo as áreas comuns e compartilhando o refeitório sem o mínimo distanciamento. Faltam EPIs para os servidores, as máscaras que utiliza no dia a dia foram compradas por ela mesma e o álcool em gel que chega é insuficiente para a quantidade de pessoas. Itens essenciais como luvas e aventais sequer foram prometidos a eles.
“Equipamento de proteção individual para quem? Não existe. Nós brigamos e conseguimos que colocassem pias com água e sabão para os acolhidos lavarem as mãos. E só. Foi um ‘parto’ conseguirmos álcool em gel. Nós até pensamos em fabricar máscara de tecido para eles [moradores], mas imagine a loucura. Uma máscara para cada um. Onde lavar? E como trocariam? O nível de infecção seria muito maior. Se te disser que o poder público tem dado suporte eu estaria mentindo. Nos sentimos órfãos do poder público”, critica a funcionária.
A reportagem entrou em contato com a Secretária Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo (SMADS), que informou não ter recebido nenhuma denúncia formal e que “as Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) dispõem de equipes da saúde, compostas por um enfermeiro e um técnico de enfermagem” e que “em casos que não seja possível realizar os cuidados nas unidades, os idosos são encaminhados aos serviços de saúde mais próximo”. A Prefeitura também afirmou que desde março todas as unidades municipais de acolhimento a pessoas acima dos 60 anos suspenderam visitas regulares e atividades coletivas.
A reportagem entrou em contato com a SMADS e a Apoio, que não responderam os questionamentos sobre contaminações e falta de EPIs até a publicação desta matéria.
Em abrigos, idosos compram material de higiene e proteção por conta própria
“Onde estão os meus acolhidos?”. É a pergunta que Marta* se faz todos os dias onde trabalha, no Complexo Canindé, sistema da assistência social municipal na Zona Norte de São Paulo, sobre três idosos que foram transferidos para um hospital com suspeita de Covid-19 há cerca de um mês. Ela não sabe o paradeiro de nenhum deles, se o estado de saúde é grave e muito menos quando voltarão. A única resposta é que eles estão internados, afirma.
“Tenho acesso aos relatórios que mostram que o Samu foi chamado. Quando acionamos o Samu é porque eles estão muito debilitados. Eles apresentavam tosse, fraqueza e diarreia. É muito suspeito, sim, porque nenhum deles ainda retornou”, denuncia Marta, complementando que eles dividem quarto com pessoas abaixo dos 60 anos.
Na região do Canindé, onde está localizado o equipamento erguido pela prefeitura, vivem mais de 600 pessoas nos centros de acolhida Vivenda da Cidadania e Casa Samaritanos, uma Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI) e Casa de Apoio Maria Maria, para mulheres e crianças. O complexo é mantido pela Coordenação Regional das Obras de Promoção Humana (Croph), em convênio com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS). Além do espaço exclusivo para idosos, cerca de 50 pessoas com mais de 60 anos dividem o mesmo espaço com jovens e adultos.
Em plena pandemia, os senhores e senhoras tiveram que comprar máscaras de proteção porque não receberam nenhum equipamento do tipo por parte do município. Sabonetes e álcool em gel para os conviventes também são escassos. “Se alguém me fala que está esperando a prefeitura dar [o item], eu falo ‘então senta, porque você vai morrer e não vai receber nenhum amparo dela”.
Procuradas, a SMADS e a Croph não confirmaram o número de possíveis casos e/ou óbitos e falta de EPIs no Complexo Canindé.
Desde o início da pandemia, os equipamentos públicos destinados à população em situação de rua se tornaram 24 horas, deixando todos os conviventes com vagas fixas.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul