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Covid-19: "se esse é o protocolo de atendimento oficial, em dois meses estaremos como a Itália"

Se o governo não passar a tratar a pandemia como uma ameaça aos cidadãos ele será responsável pelas mortes e o caos que virá e que atingirá, toda a sociedade
Caio Teixeira
Diálogos do Sul Global
Florianópolis (SC)

Tradução:

Como todos os humanos espalhados pelo mundo, estou atento às informações e orientações sobre o vírus. Na quarta-feira comecei a apresentar sintomas leves de gripe. Segundo as orientações deveria observar o andamento dos sintomas. Foram piorando com o passar dos dias, como numa gripe comum das boas.

Sexta-feria baixei o aplicativo oficial Coronavirus SUS que na primeira página pergunta como estou neste momento: bem ou mal? Respondi Mal. Passou para uma página de auto-avaliação onde devo marcar os sintomas que estou apresentando dentre dez opções. Marquei oito delas, ficando de fora “Dificuldade para Respirar” e “Febre”. Perguntou também se tive contato próximo com suspeito de COVID-19 ou com paciente confirmado. Respondo não, mas não sei, pois, os suspeitos não andam com um cartaz pendurado no pescoço.

Por fim perguntou se estive em outro país nos últimos 14 dias, o que não ocorreu. Recebi a seguinte orientação: “Baseado em suas respostas, é provável que essa situação NÃO se enquadre como caso suspeito de doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19). Mantenha as condutas de precaução e prevenção, praticando a etiqueta respiratória”. 

No dia seguinte, tendo agravado o quadro, refiz o procedimento no aplicativo e passei a responder positivo para todos os dez sintomas e também para contato com caso suspeito, pois nesse período frequentei supermercado, farmácias, eventualmente estive perto de pessoas tossindo ou espirrando. A resposta foi que “é provável que esta situação se enquadre como caso suspeito ou provável de doença”, e orientando que procure atendimento em uma unidade de saúde.

Me dirigi então à UPA do sul da ilha em Florianópolis onde resido. Duas enfermeiras e uma médica que estão de plantão na porta do posto, do lado de fora ouviram meu relato detalhado dos sintomas, mediram temperatura e usaram um aparelhinho no meu dedo que mediria a oxigenação, constatando que ambas estavam normais e auscultaram meus pulmões com estetoscópio. A médica então me passou uma receita de Tamiflu e um antibiótico para tomar por 5 dias e, caso não apresentasse melhoras voltasse para nova consulta. Exatamente a mesma receita que aplicavam para a Gripe H1N1 que nos assolou anos atrás e que não se aplica ao Corona.

Isto aconteceu hoje, 21 de março de 2020, em Florianópolis, capital de um estado onde até as praias estão fechadas e sob vigência de um decreto do governador que coloca o Estado em quarentena severa.

Se o governo não passar a tratar a pandemia como uma ameaça aos cidadãos ele será responsável pelas mortes e o caos que virá e que atingirá, toda a sociedade

Crítica da Espécie
Fac simile

Para onde esses protocolos vão nos levar?

O que tenho a dizer é que, se este é o protocolo de atendimento oficial, daqui a um ou dois meses estaremos como a Itália. Tanto lá como aqui a política dos governos, de mesmo matiz ideológico, vem sendo há alguns anos cortar verbas do setor público em todas as áreas, em especial da saúde. Os gastos públicos no Brasil foram congelados por 20 anos e só se passaram 2. Não adianta termos uma estrutura em tese muito boa no SUS se ela não tem recursos para trabalhar nem servidores pois está proibida a sua reposição e o número de aposentadorias foi muito grande nos últimos anos em razão do medo da reforma da previdência que praticamente inviabilizou o benefício. Não adianta termos uma instituição científica de excelência como a Fiocruz que poderia estar produzindo os kits de teste aos milhões se ela mal tem recursos para manter as portas abertas com baixíssima produção de pesquisa, porque seu orçamento mal consegue cobrir as despesas com salários que não são altos e com manutenção do prédio. A Fiocruz é uma fundação pública brasileira que concorre com a máfia da indústria multinacional de medicamentos.

Alguém que como eu cheguei com todos os sintomas indicados nas orientações oficiais em uma cidade onde a contaminação já é comunitária, ou seja, sem controle, deveria ter sido encaminhado imediatamente para teste laboratorial que confirmasse ou afastasse a hipótese de estar contaminado. Isso não acontece porque custa muito dinheiro. Então a opção não é com o controle da contaminação, mas com o controle das verbas. Só vão fazer o teste quando o paciente estiver em estado grave e necessitar de UTI, porque não há recursos para comprar os kits de teste na quantidade desejável que permitisse identificar todos os casos de contaminação conforme forem surgindo. Já se sabe de antemão que as UTIs existentes não darão conta nas próximas fases. Com as estatísticas sempre muito atrasadas o que também atrasa as respostas adequadas ao nível de contaminação. Os casos anunciados como confirmados estão muito longe do número real, pois só se faz teste comprobatório quando o paciente já esta em estado grave. Não há uma política de impedir que ele chegue ao estado grave, ou para monitorar sua mobilidade, porque não há orçamento para sustentar uma estrutura de saúde pública. A responsabilidade então é jogada para o cidadão que deve se virar para ficar em casa sem que o Estado garanta as condições de subsistência para que ele o faça.

Protocolos de gasto mínimo

Até chegar ao estado grave, o paciente positivo vai continuar contaminando tudo ao seu redor. Mandam usar máscaras, mas não existe máscara no mercado, mandam usar álcool, mas mão tem álcool no mercado. Os governos nada fazem para mudar essa situação. Mandam o cidadão ficar em casa, mas não dizem como ele vai pagar as contas no fim do mês. A quantidade de trabalhadores informais, “empreendedores” de meia pataca, autônomos que só recebem se trabalharem é enorme. Essas pessoas não tem como parar de trabalhar, pois, não terão dinheiro para comida, muito menos para comprar álcool gel e máscaras ou pagar TV por assinatura para assistir maratonas de séries durante a quarentena. E não é que falte dinheiro. O Presidente editou nesta semana uma Medida Provisória para “socorrer” com dinheiro público as empresas aéreas! É óbvio que não se “socorre” empresas desse porte com um milhãozinho ou dois. Enquanto isso não há dinheiro público para garantir álcool ou máscaras nas farmácias nem kits de teste para o vírus nos postos de saúde.

O que aconteceu na Itália, nos EUA, na Espanha e em quase todos os lugares com as mesmas políticas de corte de orçamento público é que essa situação de mascarar a epidemia economizando gastos com testes e outras providências essenciais resultou, como vai resultar aqui, numa explosão de contaminação totalmente previsível e a quantidade de casos graves quando chegaram ao sistema de saúde de uma vez resultou no caos. Até agora a China, a Coreia do Sul e Singapura foram os países que mostraram maior capacidade de defender seu povo e não pouparam recursos para isso. A Itália, país muitíssimo menor em extensão e com população 23 vezes menor que a China, já ultrapassou os números da epidemia no país mais populoso do planeta. A Espanha e os EUA seguem no mesmo caminho enquanto o vírus já está quase totalmente controlado no país de origem graças a uma atuação firme do governo.

Nas próximas semanas saberemos quem serve a quem

A Decretação de Estado de Calamidade Pública autoriza Estados e o governo federal a gastar recursos além do orçamento, suprime licitações, e dá licença prévia para descumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal. A Medida Provisória desta semana de socorro a grandes empresas dá uma ideia da destinação prioritária do governo para toda essa grana. Espera-se que o Ministério Público e o TCU cumpram sua função de fiscalizar de perto a flexibilização orçamentária que vem por aí e garantir que os recursos públicos tenham por objetivo o interesse público e não o privado, ou seja, que sirvam para defender as vidas da população e não o lucro das empresas.

Se o Estado brasileiro não passar a tratar a crise do vírus como uma ameaça aos cidadãos em vez de tratá-la como uma ameaça ao mercado, ele será responsável pelas mortes e o caos que virá e que atingirá, ao final toda a sociedade, incluindo as empresas. O que veremos nas próximas semanas deixará claro quem é prioritário para o governo: o povo que o elegeu ou as empresas inescrupulosas que se aproveitam da cada vez mais comprovada insanidade do presidente e dos que o cercam para aumentar seus lucros a qualquer custo.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Caio Teixeira

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