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ToggleO recente plebiscito por uma nova Constituição no Chile, marcado pela divisão política, lembra hoje a luta do presidente Salvador Allende pela unidade dos chilenos ao longo de 35 meses de mandato, até sua morte, há 49 anos.
Promoveu grandes mudanças, no marco das tradicionais leis do país, em um rico processo político descrito como a “via chilena ao socialismo“, que contou com enorme apoio popular e, ao mesmo tempo, uma férrea resistência da direita nacional e internacional.
Estas foram as últimas palavras de Salvador Allende após atentado de 11 de setembro
Os jornalistas que na época cobriram os acontecimentos, foram testemunhas de exceção das manobras políticas, econômicas e militares que conseguiram desestabilizá-lo, instalando um dos regimes mais repressivos da América Latina para inaugurar o neoliberalismo na região.
Eles descreveram as marchas e contramarchas, a favor e contra, mas viveram também algo que hoje plaina sobre o Chile e toda a região: a narrativa do ódio na mídia chilena, outrora exemplo de um jornalismo de qualidade.
Sem internet, nem redes sociais, nem telefones celulares, os jornalistas usaram ruidosos telex e teletipos para enfrentar o que hoje se conhece como “fake news” e outros elementos de ferozes campanhas de desprestígio encabeçadas por El Mercurio.
Colegas chilenos e estrangeiros que acompanharam o novo e atraente processo chileno tiveram que desafiar diariamente o boato, a mentira ou diretamente a propaganda política contra o governo de Allende. Uma verdadeira guerra midiática há meio século.
São imagens inesquecíveis para os repórteres, muitos dos quais depois contribuíram para a memória dos chilenos com seus testemunhos em livros, documentários e fotografias.
Não se pode esquecer que ao escritório de Prensa Latina, no centro, a duas quadras de La Moneda, chegou, na manhã do golpe, Augusto “Pelao” Carmona, junto com sua companheira Lucía Sepúlveda, ambos redatores da revista Punto Final, dirigida por Manuel Cabieses. Ofereceram seus serviços e sua solidariedade.
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Depois de falar com nosso Correspondente Chefe, Jorge Timossi, foram para a clandestinidade. O “Pelao” continua entre os milhares de detidos-desaparecidos do Chile.
Vários outros colegas, de diversas tendências, pediram interesse pela equipe jornalística do Prensa Latina, integrada naquele momento por um argentino, dois cubanos, três chilenos e um peruano. O resto do pessoal teve que, muito a contragosto, abandonar a ameaçada agência de imprensa.
Prensa Latina
Desestabilização de Salvador Allende na lembrança de Prensa Latina
Elena Acuña
Elena Acuña, chilena, a única mulher do grupo, cumpriu a arriscada missão de transferir documentos e dinheiro da agência para preservá-los, aproveitando uma breve interrupção do bombardeio dos Fokker Hunter sobre La Moneda.
Já tínhamos enviado à nossa central toda a informação possível, até que a nova Junta Militar (cujos membros ainda não eram conhecidos) cortou toda comunicação e nossos teletipos silenciaram. Não obstante, seguimos transmitindo notícias, inclusive a morte de Allende, por telefone, na nossa agência em Buenos Aires.
Ao meio dia, depois do ataque ao Palácio Presidencial, um pelotão do exército chileno, que acabava de destruir com fúria o escritório vizinho de Punto Final, invadiu a Prensa Latina. Eram 21 militares com rostos e uniformes sujos com as cinzas de La Moneda e o característico lenço laranja que identificava os golpistas.
Pretendiam que fôssemos “para o caminhão”, como diziam eles, para levar-nos a algum centro de detenção acusados de “subversão”. Inclusive, nos puseram de cara para a parede e realizaram um simulacro de fuzilamento.
Mas, nossas instruções eram não resistir nem abandonar o escritório e nos negamos. Também tínhamos tomado a decisão de não destruir nem esconder folhetos, jornais, revistas ou cartazes relacionados à Revolução Cubana.
Os militares nos isolaram no andar em diferentes cantos do escritório enquanto revistavam tudo, buscando armas. Começaram a rasgar cartazes e fotos, inclusive de Allende.
Lembro como, em um impulso temerário, o chileno Omar Sepúlveda, o mais jovem de nós, enfrentou um soldado que tentava rasgar a pontapés um cartaz do comandante Ernesto Che Guevara, criando-se um momento de extrema tensão para todos.
Também, como outro soldado tirou do cubano Mario Mainadé, que era surdo, um obsoleto e vistoso aparelho auditivo que o militar confundiu com uma granada. Outro jornalista chileno, Orlando Contreras, chegara na noite anterior de Havana para visitar seu pai enfermo e imediatamente apresentou-se em nosso escritório.
Na memória, o cubano Pedro Lobaina, que me despertou às 6:30 para levar-me à agência com uma breve frase: Vamos, é o golpe! Muito estudioso, um verdadeiro analista, era o mais fleumático de todos, tranquilo no trabalho e pausado no falar. Mas, quando finalmente os militares se foram, foi Lobaina que puxou a porta atrás deles, surpreendendo-nos com irrepetíveis insultos de alto calibre.
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Por último, nosso chefe, mestre dos mais jovens repórteres, que enfrentava frequentemente Allende no tabuleiro de xadrez e autor de um dos testemunhos mais completos da batalha do presidente em La Moneda.
Em meio à busca, foi levado pelos militares ao Ministério da Defesa próximo, onde os golpistas explicaram aos correspondentes estrangeiros as novas regras da censura. Pôde sobreviver a esse encontro porque exagerou seu acentuado sotaque argentino acima de seu nítido falar cubano.
Jornalista e escritor de grande experiência dentro e fora da Prensa Latina, Timossi formou pessoal e cuidadosamente sua equipe depois de assumir a agência no Chile nos momentos mais interessantes e difíceis do país.
A eles, a Prensa Latina e a todos os jornalistas que arriscaram suas vidas para divulgar a verdade do processo chileno, meu maior respeito neste aniversário e sempre.
Jorge Luna | Prensa Latina | Havana
Tradução: Ana Corbisier.
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