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Da corrupção à privatização: Entenda por que o Líbano enfrenta a pior crise da história

A população civil tenta há décadas libertar-se do sistema político neofeudal que fragmentou o país em enclaves divididos por razões étnicas, religiosas e políticas
Marco Demichelis
IPS
Pamplona

Tradução:

Há muitos motivos históricos e interesses econômicos por trás das assíduas visitas do presidente francês Emmanuel Macron a Beirute nos últimos meses. O Líbano está enfrentando uma nova crise econômica, política e social que no passado deu origem a uma perigosa falta de segurança que pôs o país inteiro em uma débil situação, na qual a verdadeira soberania brilha por sua ausência. 

A invasão síria do Líbano em 1976 e de Israel em 1982 são as mais poderosas, e o controle de Damasco, Teerã, Tel Aviv e Riad na política interna do país tem sido importante nos últimos trinta anos, após o fim oficial da guerra civil (1991).

A população civil há décadas tenta fazer o mesmo que trata de promover agora: libertar-se do sistema político neofeudal que fragmentou o país em enclaves divididos por razões étnicas, religiosas e políticas, e que nas últimas décadas o tem deixado à mercê dos interesses de países estrangeiros, vizinhos e não vizinhos, no difícil tabuleiro geopolítico do Oriente Médio.

Nos últimos anos produziram-se protestos no país, como a Revolução dos Cedros que, após o assassinato do primeiro ministro Rafic Hariri (2005), tentou impulsionar movimentos civis de baixo, embora estes nunca tenham sido realmente independentes dos partidos políticos clássicos.

A população civil tenta há décadas libertar-se do sistema político neofeudal que fragmentou o país em enclaves divididos por razões étnicas, religiosas e políticas

The Conversation España | Simon Haddad
Manifestação em memória das vítimas da explosão de 4 de agosto de 2020 no porto de Beirute convocada em 4 de setembro

Libertar-se do passado 

Os assassinatos dos jornalistas Samir Kassir e Gebran Tueni em 2005, ambos membros de uma sociedade civil que queria chamar a atenção sobre o problema da soberania do Líbano, são sintomáticos da dificuldade desse país para libertar-se do seu passado. 

No entanto, há diferentes níveis de responsabilidade pela situação libanesa. Em parte se deve ao elevado nível de apoio por parte da população; da mesma forma, as forças de segurança têm mantido sempre uma posição de salvaguarda da corrupção do governo; e outro aspecto é a gestão colonial da França desde o século XIX.

A última visita do presidente francês, no centenário da criação do “Grande Líbano”, assinala uma total ausência de capacidade de crítica histórica, pois resulta bastante claro que, por um lado, a situação libanesa atual é tão delicada por motivos relacionados com o nível de corrupção interna, da falta de capacidade à hora de contar com candidatos e políticos independentes dos senhores feudais de hoje, assim como por sua economia, completamente privatizada e na qual o calor de ser cidadãos não tem sentido porque não existe um sistema público que proteja aqueles que pagam impostos ao Estado.

Por outro lado, está a criação de uma convivência enraizada na visão de superioridade de uma etnia ou religião sobre as outras, originada na fase colonial.

Como se sabe, o “Grande Líbano” foi constituído para permitir aos cristãos maronitas ser maioria relativa em um novo Estado mais próximo à França e ao colonialismo europeu. 

Uma situação que mudou no século XX, após o fim da Segunda Guerra Mundial, abrindo o país à independência e à multiplicação dos conflitos internos de matriz colonial entre o presidente cristão e o primeiro ministro muçulmano.

O presidente francês Emmanuel Macron durante sua visita a Beirute em 6 de agosto de 2020

Precários equilíbrios internos

Este conflito político durou até o momento em que a presença militar e civil da Organização para a Libertação da Palestina (1971-1975) modificou uns equilíbrios internos já precários.

Desde então, a soberania do país tem estado dominada pelos interesses estrangeiros e pelos diferentes atores internos que têm lutado por preservar uma posição de poder com a ajuda de países como a Síria, Irã, Israel, Arábia Saudita, França e Estados Unidos. 

Nos últimos anos, depois de 2005, as alianças políticas terminaram se baseando em princípios religiosos ou étnicos, e às duas coalizões somaram membros de todas as facções indistintamente: a Aliança do 14 de março, onde maronitas, sunitas, xiitas, armênios e drusos se opuseram a Amal, Hezbolah (xiitas), em unidade com maronitas, drusos, armênios e sunitas respectivamente. 

Esta “revolução” política e de partidos não tem melhorado claramente a vida dos cidadãos libaneses; pelo contrário, trasladou ao Estado libanês o conflito geopolítico no Oriente Médio entre Estados Unidos, Arábia Saudita, Israel e Irã, Síria e Hezbolah.

Visão geral do porto de Beirute após a explosão de 4 de agosto de 2020 | Foto: Ali Chehade

As responsabilidades pela explosão de Beirute

É difícil que se depurem responsabilidades pela impressionante explosão do porto de Beirute ocorrido no passado 4 de agosto.

No entanto, as manifestações de cidadãos libaneses que começaram já em fevereiro de 2020 mostram novamente por parte da população deste país necessita e merece uma classe política diferente, capaz de intervir na economia e de mudar radicalmente o processo de privatização neoliberal promovido no Líbano desde os anos noventa. As desigualdades ficam patentes nesta nação. 

Apesar de se tratar de um país com só quatro milhões de habitantes, na lista de multimilionários da Forbes 2020, 17 eram desta nacionalidade, e em 2019 ascendiam a 20. Atualmente conta com um elevado nível de alfabetização, boas universidades e uma inteligência cosmopolita, de modo que as responsabilidades políticas desta geração são muito grandes. 

Seria necessário que antes de explodir uma nova fase interna mais violenta, os libaneses possam tratar de mudar seu futuro sem estar sob o jugo dos interesses estrangeiros. The Conversation

Marco Demichelis, pesquisador principal em estudos islâmicos e história do Oriente Médio da Universidade de Navarra, na Espanha.

*Este artigo foi pulicado originalmente em The Conversation España.

IPS, especial para Diálogos do Sul — Direitos reservados

Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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