“Há uma grande diferença entre crescimento econômico e desenvolvimento”, explica o geógrafo britânico David Harvey, professor emérito da Universidade da Cidade de Nova Iorque. “Se nós mudarmos a ênfase do desenvolvimento e a afastarmos do crescimento puro e simples, da produção material, e começar a falar do desenvolvimento das potências e capacidades humanas seria um grande passo. Me parece que há um horizonte quase infinito para experimentação e o desenvolvimento da potência humana, há muito que está latente na humanidade, que não está sendo expressado e sim reprimido”, disse o acadêmico em visita ao Brasil para o lançamento de seu novo livro “A Loucura da Razão Econômica”.
Publicado pela Boitempo Editorial, o livro trata de atualizar o pensamento marxista diante dos novos tempos da globalização capitalista, criticando as respostas encontradas pela “ciência econômica” para a crise política, social e climática que vivemos hoje. Para além de atualizar o pensamento marxista, procurando entender as novas formas metabólicas de reprodução do capital, o livro também busca abrir um diálogo com movimentos e organizações sociais e oferecer um novo espaço para formulação de estratégias políticas em tempos de crise, por meio de uma linguagem acessível e de um pensamento aberto sobre os novos tempos no mundo.
Com isso em mente, o Brasil de Fato encontrou com o geógrafo para uma conversa, visando discutir alguns dilemas e questões para as esquerdas do Brasil e do mundo. Quais são os caminhos da utopia? Como pensar novos comuns? É possível conciliar a necessidade de uma visão anticapitalista dentro de governos, ocupando cadeiras do Estado? O paradigma do progresso e do desenvolvimento precisa ser parado? Existe saída para a crise ambiental e quais são as possíveis inspirações para isso? Esses são alguns dos tópicos abordados pelo pensador na entrevista. Confira:
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Brasil de Fato: Durante uma conversa na editora Boitempo, no último dia 13 de agosto, o senhor falou um pouco sobre seu novo livro, “A Loucura da Razão Econômica”, e também sobre o dilema da esquerda, entre garantir direitos e bem-estar, que entra em conflito, uma vez no poder, com uma visão anticapitalista mais ampla. Nesse contexto, como o senhor avalia a queda e a ascensão da onda progressista na América Latina?
David Harvey: Eu creio que o contexto era, evidentemente, aquele de uma longa história de frustração com a via neoliberal, que nos anos 1980 e 1990 teve efeitos deletérios no continente, e penso que todos entenderam isso e não queriam seguir mais a cartilha neoliberal. E eu imagino que houve uma tentativa de ir contra isso. Para mim, há duas formas de ir contra algo assim: ou você age contra o neoliberalismo, mas mantém o capitalismo e busca por formas de capitalismo que não sejam neoliberais, talvez social-democracia; ou você diz, “bom, o problema não é o neoliberalismo, é o capitalismo e preciso achar uma solução anticapitalista”.
Eu não acho que esta segunda jamais foi levada a sério, entendo que o que foi construído foram estruturas social-democratas em uma situação onde o capitalismo tinha como estratégia dominante a destruição das social-democracias e, por isso, essa tática parece fadada ao fracasso. Eu espero que as pessoas aprendam com isso e vejam que o problema é o capital e, portanto, estratégias mais profundas são necessárias. Nós vemos que muitos dos governos de esquerda, no fim de seu tempo no poder, foram empurrados para a centro-direita, e se separaram da compreensão intuitiva de muitos dos movimentos de massa que passaram a sentir que, de alguma forma, não estavam sendo representados e, portanto, se frustaram com a via social-democrata.
Além disso, todos esses movimentos foram fundados, mais ou menos, eu não diria em um culto à personalidade, mas em torno de um líder forte e carismático, e que mantia o movimento junto e como vemos, por exemplo, quando o [Rafael] Correa saiu do poder no Equador e o movimento que estava ao seu redor colapsou completamente e o país voltou inteiramente às mãos da oligarquia. Então, vimos muitas histórias assim, e espero que as pessoas consigam olhar isso e pensar em formas mais profundas de esquerda que vão desafiar o capital de uma maneira permanente, ao invés de apenas um encontro efêmero com as formas social-democratas.
É interessante você ter dito antes da entrevista sobre “a defesa da democracia”. Eu não acho que essa é a questão. Eu penso que nós temos que criar a democracia, porque não havia um mundo democrático aqui antes para ser defendido, precisamos criar esse mundo, ter propostas criativas para descobrir como será essa nova democracia.
Pegando o gancho do que o senhor falou, em sua obra você defende o conceito de “comum”, algo que não é público nem privado, algo que podemos criar juntos. Ele seria um caminho para essa nova democracia? Quem seria o sujeito histórico dessas propostas criativas?
A questão sobre o comum é dupla. Há muitos aspectos da vida que são importantes para todos e deveriam ser tratados em comum. Mas não acho que a “política” deveria ser encarada assim, porque o comum não florescerá ao se ter propriedade sobre o Estado, eu acho que a ocupação do Estado pelo comum é um problema tão grande quanto o controle do comum pelo capital corporativo.
Então, as políticas do comum são sobre as pessoas aprenderem a criar solidariedades para se associar a formas de governo do comum: pode ser um comum local, no qual os bairros podem gerir seu comum por meio de assembleias, ou pode ser um comum muito amplo, digamos, as condições ambientais de um país inteiro, e, em tal caso, precisamos pensar em formas específicas de manejo.
A ideia do comum não pode ser dissociada da questão de como a gestão do comum será estabelecida, porque o comum não é algo que está completamente aberto e qualquer um pode fazer o que quiser, mas é algo gerido socialmente em nome de todos, para que os benefícios fluam para todos. E há que se ter acordos sobre como esse comum será usado e até para como ele deverá ser construído, porque em inúmeras instâncias ele ainda não existe, ele precisa ser criado.
Nós perguntamos, dentro do urbanismo, como o comum será produzido nas cidades e qual será sua aparência quando as cidades forem reorganizadas em torno da ideia de criar espaços decentes para se viver para todos, em oposição ao modelo que temos hoje, que visa criar oportunidades de investimentos para o grande capital.
Pensando nesse comum, em oposição à esquerda tradicional, temos modelos que lembram o comum sendo construídos, pensados e, na verdade, fazendo parte de uma cosmovisão, mesmo na esquerda indígena brasileira, na andina, enfim, você uma relação entre essa visão política e social e sua ideia de comum?
Algumas formas indígenas de manejo, de gestão, poderiam nos ensinar muito. Não estou dizendo que deveríamos fazer do jeito que eles fazem, mas há uma tradição comum de manejo de recursos e algo que poderíamos construir sobre como utilizar, por exemplo, a questão do direito à terra, de manter a terra como um bem comum ao invés de propriedade privada e talhar pedaços da Amazônia de forma que pertençam ao comum pelas populações indígenas. Parece-me uma das melhores formas de se engajar em práticas de conservação e é o que vemos quando tentamos criar unidades de conservação em propriedades particulares, e que, geralmente, são falhas épicas.
Em seu novo livro, o senhor mostra um fluxograma do sistema de valor em Marx e nele estão dois conceitos que englobam tudo isso, que uma função metabólica, que dá conta da destruição, criação e renovação da natureza e do ser humano. O senhor aponta que o que era para ser ciclo se tornou uma espiral, e ela está fora de controle. E acho que esse também é um dilema para as esquerdas, conciliar as necessidades de emprego, crescimento, moradia, sentido, com a sobrevivência do planeta. Como a esquerda encara essa questão? Precisamos repensar o paradigma de progresso e de desenvolvimentismo?
Há uma grande diferença entre crescimento econômico e desenvolvimento. Se nós mudarmos a ênfase do desenvolvimento e a afastarmos do crescimento puro e simples, da produção material, e começar a falar do desenvolvimento das potências e capacidades humanas seria um grande passo. Parece-me que há um horizonte quase infinito para a experimentação e o desenvolvimento da potência humana, há muito que isso está latente na humanidade, que não está sendo expressado e sim reprimido, então eu sou completamente favorável ao desenvolvimento, mas não estou conectando-o automaticamente ao material.
Nós queremos desenvolvimento sem crescimento, mas quando digo isso tenho claro que em várias partes do mundo você precisa de crescimento, e em algumas partes onde evidentemente não, na verdade, talvez você precise cortar um pouco certas formas de produção e alguns tipos de consumismo.
Quando eu falo isso, eu não estou dizendo: “Ah, amanhã você precisa parar de crescer”. Eu acho que a esquerda tem que dizer, em um país como o Brasil, por exemplo, se houvesse um governo forte de esquerda, o desafio seria saber onde se precisa de crescimento, talvez no Nordeste, para lidar com a pobreza aguda que existe ali. Em São Paulo ou em Porto Alegre, talvez você precise de algo diferente. Então, a esquerda tem que pensar como redistribuir as atividades e os recursos de crescimento de uma maneira que tente criar condições de vida dignas e oportunidades em toda parte no país.
Ao mesmo tempo em que proponho que o comum seja gerido de maneira apropriada, que seja protegido do crescimento, isso não quer dizer que não haja desenvolvimento nele, muito pelo contrário, ele deve ser pensado para garantir o potencial máximo das capacidades humanas e potências, novas relações estéticas que possam garantir que a função metabólica da natureza seja experienciada de outra forma – e eu não estou falando de ecoturismo aqui, eu falo de mudanças fundamentais na forma de se viver nas quais experimentemos o mundo de uma forma diferente.
O senhor falou anteriormente sobre como as cidades se tornaram um espaço para a especulação e não para viver, e isso também foi um dos principais temas abordados pelo senhor em uma de suas últimas visitas ao Brasil, em 2015, para falar do livro “Cidades Rebeldes”. Em situações como a construção de cidades fantasmas na China, parece que isso se torna a forma material do capital financeiro especulativo e, inclusive, o senhor aponta que elas salvaram muitos países da crise com a compra de cimento e cobre e depois ficaram simplesmente vazias. Como está isso agora? Há uma forma de pensar saídas para as nossas cidades?
Em termos capitalistas, a China agora tem um enorme problema de endividamento, e eles agora têm que lidar com isso, porque eles construíram todos essas propriedades e não foram usadas para nada. E muitas pessoas investiram dinheiro no sistema financeiro e estão sem qualquer retorno financeiro. Na semana passada, muitos chineses perderam suas economias, porque o sistema financeiro começou a colapsar e ontem (24/8), o governo chinês colocou US$ 22 bilhões nos bancos para tentar lidar com o descontentamento das pessoas nas ruas, porque se elas perdem suas economias, ficam com muita raiva. Então, até em termos capitalistas, estamos vendo um sobre investimento em ambientes construídos e uma superfinanceirização que agora a China tem que lidar e, felizmente para a China, o país tem muitas reservas de dólar e pode usar isso para estabilizar a situação, mas não é uma reserva infinita.
Então, o que vemos são sinais desse esgotamento em diversas partes do mundo, o boom especulativo atravessou as cidades, principalmente concentrando na produção de tudo – do espetáculo urbano a moradias de luxo para os ricos – e não está funcionando até para os capitalistas.
O que fazer com esse excedente de apartamentos e casa? Na China, o que eles estão fazendo é urbanizando boa parte da população rural, movendo as pessoas – muitas vezes forçosamente – do campo para as cidades. Isso não tem nada a ver com democracia nem com qualquer coisa que valorizemos.
Então, digamos que um governo de esquerda chegue ao poder, o que fazer? Eu acho que não sabemos a resposta para isso. Temos uma situação interessante em cidades como Barcelona, por exemplo, ou Madri [ambas na Espanha], onde temos prefeitos de esquerda e eles não sabem o que fazer. E eu estava falando com alguns colegas outro dia e acho que nós devíamos ter think tanks, como a direita tem, para pensar que tipos de políticas públicas a esquerda poderia ter ao ganhar controle político de uma cidade muito grande. Digo isso, porque ganhar uma eleição numa cidade enorme é parte do problema, o problema maior é o que fazer uma vez que se tenha esse controle, como pegar a situação existente e, com base nisso, transformá-la em algo muito mais próximo ao socialismo. E nós não pensamos em fazer coisas assim.
Pensando de forma mais ampla, há atualmente um grande esforço coletivo em repensar caminhos, utopias e modos de se fazer a vida pelo campo da esquerda. Qual sua visão sobre isso?
Eu não acho que a gente pode ir muito longe sem pensar em utopias. O pensamento utópico serve para soltar a imaginação, e não apenas utópico no sentido clássico de pensamento acadêmico e político, eu entendo que boa literatura, bons romances, ficção científica, podem ter um impacto enorme no jeito com o qual as pessoas pensam e veem o mundo ao seu redor. Mas isso me leva a pensar, novamente, no fato de que quando a esquerda chega ao poder, ela tem que ter uma imaginação muito forte sobre o que fazer e o porquê fazer. E sempre tem que ter algo de utópico nisso. Há um pensamento de esquerda que se desvincula disso e eu não acho que é certo, precisamos liberar a imaginação.
Tendo dito isso, eu acho que é muito pertinente a observação marxista de que nós fazemos história, mas não a fazemos nas condições que escolhemos e, portanto, o pensamento utópico tem que reconhecer o mundo que existe, as restrições, pelo que já foi criado. Afinal, cá estamos em São Paulo, uma cidade que foi criada e não podemos pensar uma nova cidade completamente, temos que pensar em como transformar o que existe agora. E essa é uma restrição enorme sobre o que seremos capazes de fazer. Novamente, podemos imaginar usos diferentes para alguns dos apartamentos de luxo, ocupar tudo que está vago e é apenas um investimento e transformar em lugares para viver, por exemplo.
Gostaria de trazer essa questão ao Brasil, que vive um contexto de golpe, com um ex-presidente preso, um candidato de extrema-direita bem colocado nas pesquisas, enfim, como o senhor analisa a situação do Brasil e como ela se insere no contexto do capitalismo global?
É interessante que eu viajo pelo mundo e em qualquer lugar que eu vou esperam que eu dê respostas sobre condições que eu não estou familiarizado, o que é uma tarefa impossível (risos). Eu tenho algumas impressões: eu tenho vindo ao Brasil por muitos anos, e vocês passaram por coisas muito difíceis, mas o que me chama atenção agora é como todo mundo está tão desesperado, sendo que há três anos, todo mundo estava alegre. Parecia que havia dinheiro, todo mundo estava mais contente, a economia ia bem e nenhum desses absurdos estava acontecendo e todo mundo parecia bem. E agora todo mundo está: “Oh não, estamos perdidos, o mundo está colapsando” (risos). Eu acho que havia um certo exagero positivo antes e, talvez, haja um similar [negativo] agora. Eu acho que esse é um país enorme, com muita energia, vocês vão sair dessa, é uma questão de manter a cabeça erguida e não se desesperar demais, e trabalhar para sair disso. Sim, são tempos difíceis, mas há problemas por toda parte, e, enfim, nós sobrevivemos.
Edição: Vivian Fernandes