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Decisão do TCU sobre a Ancine provocará paralisia da produção audiovisual brasileira

O controle excessivamente minucioso levara também a um inchaço injustificável dos setores da máquina estatal responsáveis por atividades de fiscalização
João Brant
Diálogos do Sul Global
Belo Horizonte

Tradução:

A decisão afeta toda a política de fomento que gerou a expansão significativa do setor nos últimos anos, com o crescimento de longas-metragens lançados (de 29, em 2002, para 160, em 2017) e da presença da produção independente brasileira na TV paga (30% de crescimento entre 2013 e 2017).

Isso porque o TCU determina à Agência Nacional de Cinema (Ancine) que não celebre novos acordos de investimento em obras audiovisuais até que adote modelo de prestação de contas no formato considerado adequado pelo tribunal.

O TCU afirma que a fiscalização da Ancine deveria verificar cada uma das dezenas de milhares de notas fiscais de cada um dos milhares de processos. Essa decisão é problemática por três razões.

Em primeiro lugar, o TCU cria um paradoxo. Em vários casos anteriores, elogia esforços de racionalização administrativa e economia processual, mas, neste caso, adota uma linha que, na prática, impede que essas diretrizes ganhem corpo.

A decisão nesses termos afeta justamente iniciativas inovadoras da Ancine para evitar o crescimento do estoque de prestação de contas e dar mais eficiência à fiscalização. O Ancine + Simples foi construído em diálogo com a Controladoria Geral da União de acordo com o decreto 8281/14, que prevê a sistemática de amostragem justamente por entendê-la como forma eficiente de controle.

Na prática, a decisão do TCU, ao questionar todo o novo sistema de acompanhamento e controle, ameaça esforços de modernização da administração e desconsidera a presunção de legalidade de um decreto presidencial. Se o sistema pode ser aprimorado, isso obviamente deve ser feito, mas sem retroceder na busca de racionalização e eficiência.

O segundo problema é que a decisão vai na direção contrária à tendência internacional de privilegiar um paradigma gerencial em vez de um paradigma burocrático na administração pública. O modelo criticado pelo TCU põe o foco no controle de resultados em vez de uma análise cartorial burocrática.

Esse tipo de inovação foi consagrado no novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, e a relevância dessa mudança de enfoque foi reconhecida pela Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro no final de 2016, em sua recomendação de número 80 sobre transferências voluntárias de recursos.

A gestão pública não é eficiente quando foca em práticas de controle puramente formais ou cujo custo é superior ao risco. A análise de risco é essencial em qualquer atividade de controle, sendo usada na Receita Federal, nas auditorias trabalhistas e no INSS. A Controladoria-Geral, por sua vez, utiliza a amostragem na avaliação sobre o uso de recursos federais pelos municípios.

O controle excessivamente minucioso levaria a um inchaço injustificável dos setores da máquina estatal responsáveis por atividades de fiscalização, sem gerar um ganho correspondente de efetiva proteção dos cofres públicos. O risco de punição já é real porque as estruturas de controle estão presentes.

Por fim, a decisão reflete uma dificuldade de entender a realidade da produção audiovisual. Ela impede, por exemplo, que a produtora remunere serviços prestados pelo diretor do filme se ele é sócio da produtora. Contudo, na maior parte dos casos, os sócios são pessoas com tarefas concretas na realização de filmes e séries. A decisão do TCU também questiona gastos com passagens e alimentação, sem reconhecer que elas são parte constitutiva da rotina de produção audiovisual.

A Ancine tem de estar aberta para melhorar sempre a política de fomento e seus mecanismos de fiscalização e prestação de contas. Mas não pode ser imposto aos gestores um paradoxo que pede eficiência e economicidade, mas pune os esforços inovadores feitos nessa direção.

O risco é que, com a legítima preocupação de impedir mau uso do recurso público, seja paralisada uma política pública com ótimos resultados, ancorada em um modelo de controle inovador e juridicamente sólido.

*Juca Ferreira é Secretário municipal de Cultura de Belo Horizonte e ex-ministro da Cultura (2008-2010 e 2015-2016; governos Lula e Dilma Rousseff)

*João Brant é Doutor em ciência política pela USP e ex-secretário-executivo do Ministério da Cultura (2015-2016)


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

João Brant

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