As declarações contra o Acordo de Taif formuladas por Ahmad Qabalan, uma figura importante muçulmano-chiita, retomaram a polêmica que nunca termina no Líbano, avaliam os analistas.
Esse acordo, que pôs fim à guerra civil de 1975-1990, distribuiu em partes iguais o poder entre islâmicos e cristãos, embora especialistas digam que na realidade foi uma manobra para escamotear o avanço de um movimento de esquerda.
O discurso de Qabalan provocou divisões e reavivou nos libaneses o debate sobre qual é a melhor fórmula de Governo, considerando que a atual levou o país à pior crise em décadas.
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Acordo de Taif pôs fim à guerra civil de 1975-1990
É evidente que o sistema de cotas religiosas entrou em decadência, a julgar pelas manifestações de massa antigovernamentais iniciadas em 17 de outubro último em demanda de mudanças na elite dominante.
A instabilidade política e o enfrentamento sectário caracterizaram a nação dos cedros desde a independência da França, em novembro de 1943.
E o apelo para romper com o estipulado na cidade saudita de Taif também ocorre em meio à batalha contra a pandemia do novo coronavírus que aguçou a penúria dos cidadãos mais carentes.
O bloco parlamentar do partido Corrente Futura, do ex-primeiro ministro Saad Hariri, rapidamente criticou a exortação a eliminar o acordo que, na opinião de seus filiados, ajudou a coexistência de religiões no país.
“A demanda de círculos partidários e sectários de um sistema federal ou de outro tipo diferente do atual alimenta outra luta civil e leva ao colapso do estado e à divisão de suas instituições”, afirmou uma declaração da Corrente Futura.
O bloco adverte quanto aos riscos que origina qualquer apelo a revogar o Acordo de Taif e a fórmula libanesa, segundo o qual, consolidou-se a independência e se consagrou o conceito de convivência nacional, acrescenta a nota.
Qabalan afirmou que a fundação do Líbano deu-se sobre uma base sectária e tirânica com o objetivo de servir ao projeto imperialista e monopolista, uma fórmula, disse, que não funciona.
O que fizeram Beshara Khoury e Riad Solh, os fundadores da nação, acrescentou, não é válido para um estado que deve representar um ser humano, um cidadão, e não um crente.
Com o apoio da França, o poder colonial naquele momento, Khoury e Solh chegaram a um consenso nacional não escrito sobre a repartição do poder entre muçulmanos e cristãos.
O pacto de 1943 impôs um Parlamento com maioria cristã (de 99 deputados, 54 pertenciam a este credo) e o resto a muçulmanos. No entanto, no Acordo de Taif ficou estipulado que haveria 128 assentos, 64 para cada uma das religiões predominantes no país.
No entanto, Qabalan, filho de Abdel-Amir Qabalan, chefe do Conselho Superior Islâmico Chiita, a máxima autoridade religiosa dessa variante muçulmana no Líbano, qualificou de corruptos aquela Constituição e o mecanismo adotado de Governo.
“Suficiente para monopolizar o estado e suas instituições, descuidar de nossa gente e de nosso país, enfrentar as seitas, aderir a um sistema político em ruínas e levar o país à falência”, denunciou.
Portanto, digo bem alto: não ao Taif, não a uma granja de seitas, não a um estado de cotas, não a um sistema para compartilhar saque e não a um estado que leva a fome aos cidadãos, e sim a um estado como instituição forte e justa, disse.
Os pronunciamentos de Qabalan ecoaram uma demanda chave de centenas de milhares de libaneses que saíram às ruas em um levantamento popular sem precedentes e que também exigem a derrubada da elite política que acusam de corrupção e má governança.
A essa demanda generalizada, o Governo nunca respondeu e a ministra de Informação, Manal Abdel-Samad, reiterou o compromisso do Executivo com Taif.
A reação mais forte a Qabalan veio do chefe das Forças Libanesas, Samir Geagea, para quem jogar com o Acordo de Taif equivale a suicídio.
“Temos ouvido que a fórmula libanesa de coexistência está morta e não acreditamos nisso porque, no momento em que morrer a fórmula libanesa, o Líbano morrerá”, acrescentou Geagea.
O presidente do Parlamento, Nabih Berri, um firme defensor do Acordo de Taif, repudiou o que chamou de vozes discordantes que pedem um sistema de governo federal.
Segundo o jornal digital saudita Asharq al-Awsat, Berri está desgostoso com esses enfoques e mesmo fontes em seu entorno indicaram que foram tomadas medidas para conter as repercussões dos comentários de Qabalan.
Em outro momento, o chefe do Partido Socialista Progressista, Walid Joumblatt, refutou os argumentos em prol de um sistema de governo federal, cujas primeiras demandas surgiram de grupos cristãos radicais durante a guerra civil.
“É um projeto suicida para todos sem exceção, que ocasionará mais destruição e ruína para o Líbano”, escreveu Joumblatt em uma mensagem por redes sociais.
Berri, Geagea e Joumblatt participaram das negociações de Taif como figuras chave das facções que se confrontaram no conflito armado.
Daquele acordo até hoje, o Líbano acumulou uma dívida externa de mais de 90 bilhões de dólares, equivalentes a 170% de seu Produto Interno Bruto, uma economia que faz água por todos os lados e uma carência de serviços sociais ostensiva no temor de que a Covid-19 arrase com tudo.
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Tradução: Beatriz Cannabrava
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