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"Demarcação de terras é um dever do Estado e um direito dos povos indígenas"

A afirmação é de Joênia Batista de Carvalho, primeira mulher indígena a ser eleita deputada federal no Brasil
Adriano De Lavor
Radis
Brasília (DF)

Tradução:

Joênia Batista de Carvalho é a primeira mulher indígena a ser eleita deputada federal no Brasil. A conquista, legitimada por 8.267 votos que recebeu no pleito de 2018 por Roraima, é mais uma na vida da advogada de 45 anos, natural do povo Wapichana. Ela também foi a primeira mulher indígena a se formar em Direito no país pela Universidade Federal de Roraima, em 1997, e depois a se tornar mestra pela Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, em 2011. Única parlamentar eleita pela Rede Sustentabilidade em seu estado, ela coleciona experiências pioneiras.

Em 2004, foi novamente a primeira a ir até a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Washington, para denunciar violações do Estado brasileiro contra os povos indígenas; em 2008, a primeira a defender um caso no Supremo Tribunal Federal, quando se destacou pelo discurso histórico que proferiu em favor da demarcação da reserva Raposa Terra do Sol.

Tantas atividades renderem reconhecimento internacional. Em 2018, recebeu o prêmio de Direitos Humanos da ONU, considerado uma espécie de Nobel da Paz concedido pelas Nações Unidas, honraria também concedida a nomes como Martin Luther King, Nelson Mandela e Malala Yousafzai. Apesar do prestígio, Joênia mantém a serenidade ao falar de seu currículo e de seus planos no Congresso Nacional.

Indicada à Câmara dos Deputados por uma assembleia indígena, conta que construiu sua campanha a partir de financiamento coletivo e que pretende manter a representatividade coletiva em seu mandato: “Nossos antigos guerreiros usavam arco e flecha; hoje nós usamos a caneta”, declarou à Radis, na entrevista que concedeu por telefone, no início de fevereiro. Naquele momento, ela já havia protocolado três projetos que indicam o seu compromisso com as questões indígenas, os direitos sociais e a biodiversidade.

A afirmação é de Joênia Batista de Carvalho, primeira mulher indígena a ser eleita deputada federal no Brasil

Radis / Foto:Ricardo Stuckert
Joênia também foi a primeira mulher indígena a se formar em Direito no país pela Universidade Federal de Roraima, em 1997

É sua primeira experiência como parlamentar no Congresso Nacional. Quais são as suas impressões iniciais?

É a primeira vez que sou eleita deputada federal, me tornando a primeira mulher indígena deputada no Brasil. O sentimento é de uma responsabilidade muito grande. Tenho consciência do que eu posso fazer e das responsabilidades que tenho como parlamentar, mas também sei que minha atuação vai depender de muita articulação, para que tudo que a gente conquistou desde a Constituição de 1988 não possa ser negado. Já estamos na segunda semana [após o recesso parlamentar] aqui na Câmara e tem muita coisa para fazer. São dias de adaptação, mas também de proposições. Nesses primeiros dias, o novo governo tomou medidas drásticas contra os povos indígenas e, como parlamentar, tenho a responsabilidade de me posicionar e de propor, dentro das minhas ferramentas de trabalho. Então esta semana propusemos uma emenda relacionada à medida provisória 870/2019, pedindo a devolução ao Ministério da Justiça e Segurança Pública as competências de identificação, delimitação, demarcação e os registros das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas.

A primeira Medida Provisória 870/2019 editada pelo governo Bolsonaro, com força de lei, em 1º de janeiro, altera a estrutura administrativa do governo, reduzindo o número de ministérios de 29 para 22 e determinando, entre outras mudanças, a transferência da regularização fundiária de terras indígenas e quilombolas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Até então a definição das terras quilombolas era responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ligado à Casa Civil, e as terras indígenas, responsabilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai), que era vinculada ao Ministério da Justiça e agora integra a estrutura do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A mudança enfrenta resistência: A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), protocolou em fevereiro uma representação na Procuradoria-Geral da República na qual pede que o órgão questione a MP com ação judicial; em nota técnica divulgada em março, a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal se manifestou contrária à medida, argumentando que as normas afrontam o estatuto constitucional indígena e violam o direito dos povos originários à consulta prévia, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Uma outra emenda proposta é relacionada ao meio ambiente e à segurança alimentar, que é de interesse de toda a sociedade brasileira. Também estou tendo cuidado de levar em frente as proposições do meu partido sobre o que está acontecendo em Brumadinho, em Minas Gerais, e por isso apresentei projeto de lei tornando hediondos os crimes ambientais, quando afetem gravemente os ecossistemas e coloquem em risco a vida e a saúde humana. Ele já havia sido apresentado depois da tragédia em Mariana, pelo senador Randolfe Rodrigues [Rede-AP] e agora retorna na nova legislatura, também aqui na Câmara.

Qual é o principal impacto destas mudanças propostas para a Funai na vida dos povos indígenas?

É um retrocesso para as políticas públicas e para os direitos indígenas. A gente sabe que a Funai foi criada no sentido de avançar no reconhecimento, na identificação e demarcação das terras, e para proteger os direitos dos povos indígenas. Um órgão específico, com qualificação técnica, dentro de um sistema governamental, que pudesse garantir essas políticas. E o Mapa, da Agricultura, não foi criado com essa finalidade. Nós temos uma diversidade de direitos, uma legislação específica, uma cultura diferenciada, e uma série de políticas relacionadas às questões indígenas. De uma hora para outra retirar isso de um órgão de Justiça e passar para um outro, que tem o apoio do agronegócio e não tem como política proteger terras indígenas — e tampouco demarcar terras indígenas —, mas sim avançar a agricultura empresarial, significa uma reversão em troca dos interesses. Uma subordinação, no sentido do que é prioridade, então é contraditório. O que já temos visto em algumas terras indígenas é que, ao invés de avançar na política de regularização das terras, a gente pode ter o retrocesso, a paralisação e a inversão dos direitos.

Esse é o principal receio e prejuízo. Por outro lado, a gente sabe que houve legislações que não foram respeitadas nessa reestruturação toda. Nós temos uma convenção, que é lei no país, que é a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que assegura aos povos indígenas o direito à consulta livre, prévia e informada sobre políticas públicas, e a própria Lei 6.001, que estabelece o Estatuto do Índio, que determina um órgão de justiça federal, que não está em conformidade com o que diz a medida provisória. Existem leis e normativas que não foram consideradas e nos preocupa saber que o próprio presidente já declarou que não iria ter mais um milímetro de terra indígena a mais demarcada. Demarcar terras é um dever do Estado com os povos indígenas, não é um favor. Não é simplesmente uma questão de políticas de governo, mas uma política de Estado e um dever constitucional. A Constituição determina o respeito ao direito originário dos povos tradicionais às terras, assim como à cultura, ao meio ambiente em situações que dependem da continuidade das demarcações. Isso tudo significa pra nós um grande retrocesso, já que atende interesses de setores a quem não interessam as demarcações.

As mudanças propostas para a Saúde Indígena também se situam neste contexto?

Eu vejo riscos. Ameaçar os preceitos constitucionais, como por exemplo dizer que os indígenas devem ser integrados à sociedade não-indígena para poder exercer seus direitos, no sentido de achar que a demarcação de terras indígenas não é um direito, mas pode ser flexibilizada ou relativizada, coloca em risco não somente a questão das terras, mas também a garantia dos direitos sociais relacionados à terra. A saúde é um efeito disso. A gente tem avanço com as políticas de tratamento diferenciado, relacionado à saúde indígena, e se avançou muito ao se criar a própria Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena], conquistada depois de muito tempo lutando por tratamento diferenciado. A saúde era tratada pela Funai, quando se viu que era preciso criar um sistema próprio, dentro do SUS, e a sua criação garantiu muitos avanços nessa área. A gente vê agora o novo governo discutir mais uma vez essa questão, nós já passamos por isso em outros momentos. Dizer que a saúde indígena é responsabilidade ou problema de ONGs e usar os recursos da saúde indígena nos municípios é uma irresponsabilidade. Então se existe problema na aplicabilidade de recursos públicos por alguma ONG ou por algum responsável, deve-se identificá-los e puni-los, e não generalizar alguma suspeita e prejudicar tantos avanços que tivemos nas políticas públicas. É perigoso generalizar acusações e tentar usar isso para modificar uma política, sem enxergar o lado das comunidades indígenas, que podem ser prejudicadas. Por mais que haja problemas no subsistema, temos que garantir a continuidade desse atendimento diferenciado. São cidadãos brasileiros. Há todo um esforço para retroceder com essa política a custo de interesses e entendimentos políticos individuais.

Já é possível identificar algum impacto na saúde indígena com o fim do programa Mais Médicos?

Eu ainda não tenho um relatório preciso, mas existe uma grande preocupação sobre isso. Você tira os médicos das comunidades e não coloca nada no lugar. Esse é o principal problema.

E qual a sua expectativa para a Conferência Nacional de Saúde Indígena?

Eu quero muito participar, porque venho acompanhando as discussões de saúde e de políticas públicas para a população indígena há mais de 20 anos, então não será minha primeira conferência. Será um bom momento de discutirmos o assunto e também um bom momento para que possamos apresentar proposições e também de eu me articular com as lideranças, no sentido de eu saber como posso contribuir como parlamentar para essas questões no Congresso Nacional, de maneira a encaminhar algumas demandas que possam surgir.

 A 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena (6ª CNSI), prevista para acontecer em Brasília, entre 27 e 31 de maio, parte da defesa da saúde como direito de todos, “que só poderá ser garantida pela manutenção e fortalecimento do SUS”, informa o Conselho Nacional de Saúde. O tema central do evento será “Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas: atenção diferenciada, vida e saúde nas comunidades indígenas”, que prevê reunir cerca de 2 mil participantes de todos os estados brasileiros. Saiba mais em https://bit.ly/2EBcSbO e https://6cnsi.com.

A senhora tem declarado em entrevistas que sua candidatura foi construída ao lado de movimentos e seu mandato será construído coletivamente. Esse é um diferencial no modo indígena de fazer política?

As minhas decisões refletem isso. A minha própria indicação para participar do processo político não partiu de mim, mas sim das lideranças e das comunidades que me chamaram e me indicaram em assembleias para que eu participasse do processo legislativo, inclusive escolhendo o partido que melhor acolhesse as nossas demandas e prioridades, que têm a defesa dos direitos coletivos indígenas como ponto prioritário. Nossos antigos guerreiros usavam arco e flecha; hoje nós usamos a caneta. Temos como prioridades a educação escolar indígena, mas a saúde também é uma bandeira, com o fortalecimento dos profissionais e dos DSEIs, investir em programas específicos de prevenção e também no investimento e reconhecimento das categorias profissionais da saúde indígena, como os Agentes Indígenas de Saúde e de Saneamento (AIS e AISAN), além de agentes de endemias.

Além das questões de saúde, quais são as principais propostas?

Defender a conclusão da regularização fundiária das terras, trazer proteção a elas, buscar combater propostas antiindígenas, levar a garantia de consulta dos povos indígenas nos projetos de lei que tramitam na Câmara, fazer com que o novo Estatuto do Índio possa ser desengavetado. É importante trabalhar não somente na defesa dos direitos indígenas, mas sim ser propositivos. Propomos criar um sistema próprio de educação escolar indígena, trazer profissionais pra área de saúde. Também quero trazer à Câmara propostas relacionadas à sustentabilidade, buscando medidas para uma solução energética na Amazônia, tentando buscar energias alternativas, limpas, energia dos ventos, energia solar, por exemplo. A ideia é também procurar parcerias para que a gente possa apoiar a comercialização de produtos indígenas, questões de segurança alimentar, valorizar a produção de produtos orgânicos e algumas boas práticas que já existem de extrativismo, justamente para que as comunidades indígenas tenham renda e possam contribuir para movimentar a economia interna. E não é somente pelo comércio; é também pela valorização da biodiversidade. Investir em projetos que não tragam prejuízo ao meio ambiente e aos direitos sociais. Isso sem falar que precisamos investir nas mulheres e nos jovens indígenas com programas específicos que valorizem a cultura.

Deputada, a senhora já foi premiada internacionalmente e tem um bom relacionamento com as organizações como as Nações Unidas. Qual é o seu relacionamento com as demais lideranças indígenas de outros países?

Eu tenho participado de vários momentos de decisões importantes, como a construção da Declaração da ONU para os povos indígenas, momentos em que eu tive oportunidade de fazer articulações para construção de textos relacionados à defesa das nossas culturas. Ao mesmo tempo, eu participo de outros organismos internacionais de defesa de direitos, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Nestas articulações é muito importante a troca de informações, mas também de diretrizes e salvaguardas para os direitos indígenas. Nos últimos anos eu também venho acompanhando as conferências climáticas, quando eu tenho oportunidade de articular, junto a outras lideranças, propostas que incluam as demandas indígenas, como a proteção de terras, por exemplo, e também ficar atenta a decisões que podem não respeitar os nossos direitos, como a Convenção 169 da OIT. Meu mestrado é nessa área de Direito Internacional, então eu domino pelo menos um pouco a área e tenho acompanhado de perto as discussões.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Adriano De Lavor

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