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Rafael Betencourt*
No último dia 8 de dezembro a Venezuela vivenciou umas das mais importantes eleições municipais dos últimos anos. Após a morte do presidente Hugo Chávez em 2012, uma dúvida pairou sobre o futuro das instituições da revolução bolivariana: será que elas seriam sólidas o suficiente para sobreviver a ausência do carisma de seu grande ideólogo? A oposição trabalhou intensamente para transformar as eleições municipais em um grande teste sobre a continuidade do chavismo na liderança do atual presidente Nicolas Maduro. A reposta veio em uma grande vitória do partido chavista PSUV que alcançou 49,2% dos votos frente a 42,7% da aliança da oposição antichavista MUD. Tal resultado revelou que o chavismo ainda tem força apesar das dificuldades estruturais enfrentadas por Maduro, como a alta inflação e a escassez de alguns alimentos numa intensa guerra económica interna. Os surpreendidos com a sobrevivência do apelo chavista ignoraram durante muito tempo em suas análises outro elemento central que sempre esteve ao lado de Chávez na idealização de sua revolução, um personagem que apesar da morte do atual líder bolivariano, sobrevive em dois séculos de história na sociedade venezuelana, ele é Simon Bolívar.
A personificação do processo revolucionário bolivariano na figura de Hugo Chávez, apontada frequentemente como um entrave para o desenvolvimento de instituições autónomas, está imerso no contexto histórico de formação da nacionalidade venezuelana. Há de se ter em mente que Chávez, ao mesmo tempo que é líder de uma revolução, é produto de um movimento maior, que transpassa toda a história da formação do país. Quando Chávez, em 1982, organizou o MRB-200 (Movimento Revolucionário Bolivariano), era somente mais uma entre algumas organizações politicas que caminhavam na herança de um bolivarianismo revolucionário. Em julho de 2010 Chávez promoveu a exumação dos restos de Simon Bolívar, enterrado no Panteão de Caracas, no pressuposto do líder da independência ter sido assassinado ao invés de ter sido vitima de tuberculose como indica a historiografia oficial. O ato teve enorme caráter simbólico. Exibir a imagem do corpo de Bolívar foi a colocação de mais um elo entre o presidente e o lendário libertador. Em uma República dita bolivariana, com uma moeda de nome Bolívar, a referência ao “El Libertador” é historicamente parte da construção da identidade nacional. Tal identidade serviu durante muito tempo para legitimar governos da oligarquia dominante. Chávez e seus seguidores são parte de outro processo desse bolivarianismo. São filhos de uma herança revolucionária que transformaria a ideologia bolivariana em um projeto de revolução socialista autenticamente venezuelana. Chávez, que por muitos dos seus seguidores é visto como uma reencarnação de Bolívar, não só se utilizou do histórico mito de Bolívar para dar força ideológica ao seu projeto político mas, sobretudo, é produto deste mesmo mito. São categorias e conceitos históricos que formam o horizonte de uma mesma consciência coletiva, e que moldaram de certa forma todo o discurso chavista acerca das possibilidades de transformação social.
Bolivarianismo:
Simón Bolívar entrou para história como o grande líder militar do processo de independência venezuelano frente a coroa espanhola começado em 1810 e terminado em 1821 com a batalha de Carabobo. Bolívar também teve papel decisivo na emancipação da Colômbia, Equador, Peru e Bolívia (nomeada em sua homenagem). Ao seu lado estavam personagens históricos como Francisco de Miranda, San Martín, António José de Sucre e José António Páez, todos hoje fazem parte do panteão de heróis no coração da ideologia chavista. Juntos aproveitaram as investidas de Napoleão Bonaparte contra o rei Fernando VII da Espanha para iniciar uma grande revolta nas colônias. Apesar de suas vitórias , Bolívar não foi capaz de realizar o seu grande objetivo, criar um único país com os territórios libertos chamado “Gran Colombia”. (tal projeto hoje constitui uma referência para o projeto de integração latino americano idealizado pelos bolivarianos). Apesar de sua origem aristocrática, Bolívar tornou a luta pela independência venezuelana um processo também de libertação das massas populares de qualquer tipo de servidão. Seu projeto de emancipação envolvia uma ideia de ampla cidadania, todo venezuelano em qualquer condição de servidão, tornando-se um cidadão da república, poderia exigir seus direitos. Sobre a coroação de Napoleão Bonaparte que fora testemunha durante sua estadia na Europa teria dito: “Olhei como se fosse uma coisa miserável aquela coroa que Napoleão colocou na cabeça. Mas isto me fez pensar na escravidão do meu país e na glória que caberia a quem o libertasse”. Logo, o caráter emancipatório do projeto de Bolívar transformou a luta pela independência em uma guerra civil entre revolucionários e conservadores partidários do antigo sistema.
Após a morte de Bolívar, a Venezuela ainda enfrentava o perigo de forças restauradoras do sistema colonial, e a economia estava longe de um caminho de construção estável e sólida. O culto ao Bolívar se originou nas classes mais pobres e somente depois foi incentivado pela elite governante, pois trabalhava no sentido de criar e preservar um sentimento nacional único , a idealização do herói Bolívar que libertou o povo do domínio espanhol e da tirania da escravidão feudal ajudou a valorizar e a manter as instituições republicanas crioulas. O historiador German Carrera Damas vincula a origem de uma certa oficialidade no culto ao Bolívar ao ano de 1842, quando o então presidente José Antonio Paez ordena que os restos mortais do libertador sejam deslocados de Santa Marta na Colômbia até Caracas recebendo longas homenagens oficiais. A partir de então em todos os governos , em diferentes graus, se utilizou da imagem de Bolívar para algum tipo de legitimação política.
No entanto, na década de 1950 o bolivarianismo ganha uma reinterpretação revolucionária, dessa vez o ideal bolivariano é reivindicado na luta contra a ditadura de Pérez Jimenez, que tomou o poder através de um golpe em 1952 e foi deposto por uma revolta popular em 1958 liderada pelo guerrilheiro socialista, e futuro crítico de Chávez, Douglas Bravo. Utilizando-se da capacidade de união nacional que o discurso bolivariano proporcionava, Bravo conseguiu reunir tanto forças de esquerda quanto de setores moderados no intuito de tirar Jimenez do poder. Dessa forma, Marx e Lênin ganhavam a companhia de Bolívar no discurso de um socialismo nacionalista, o que não deixa de ser curioso pois Marx em um verbete de 1857 faz uma avaliação negativa da conduta de Bolívar na liderança das forças de independência, acusando-o de certo despotismo. O bolivarianismo se instrumentalizou na necessidade de nacionalizar a luta da esquerda e possibilitou nesse momento a união com outros sectores da politica venezuelana.
A ideia de uma revolução socialista venezuelana foi idealizada na valorização do discurso bolivariano, no convívio das premissas marxistas com a força do mito de Bolívar, o libertador dos oprimidos. Edificou-se assim o carácter nacional ao projeto de revolução, libertando-se do costumeiro desdém soviético à experiência revolucionária latino-americana. Após a queda de Jimenez uma república democrática foi estabelecida, negociada pelos dois principais partidos “Acción Democrática” e Copei (Partido Social Cristão). Tal acordo foi expresso no pacto de Puntofijo em 1958, que instaurava uma sistema de dois partidos na alternância do poder. O Partido Comunista e o movimento de guerrilha de Douglas Bravo foram deixados de fora do novo sistema e consequentemente tornados ilegais. O pacto de Puntofijo só seria quebrado com a eleição do presidente Hugo Chávez em 1998.
O crescimento da importância de Bolívar no imaginário guerrilheiro aconteceu ao mesmo tempo em que Douglas Bravo rompe com o Partido Comunista Venezuelano (PCV), principalmente devido a falta de incentivo soviético para as rebeliões populares na América Latina. Dessa forma, em 1965, no Congresso Nacional do PCV, Douglas Bravo apresentou série de documentos intitulado “Documentos de la Montaña”, nos quais reivindicava a necessidade de se traçar um “terceiro caminho”, abandonando oficialmente a via soviética de construção do socialismo. O Bolivarianismo revolucionário surge então no rompimento de parte da esquerda venezuelana com as premissas do socialismo real, na busca por uma experiência originalmente venezuelana, adaptada a realidade latino-americana. Nesse contexto, o mito de Simon Bolívar ajuda a construir uma ideologia revolucionária socialista venezuelana, as raízes do que viria a ser o socialismo do século XXI de Chávez.
Livre da influência soviética e da tutoria do PCV, o bolivarianismo começa a trilhar seu próprio caminho, a adquirir forma, e nesse momento aparece outro elemento que será preponderante para o êxito da futura Revolução Bolivariana de Chávez: uma aliança entre sociedade civil e militares. Para tal, era necessário espalhar pela classe militar o novo Bolivarianismo revolucionário, o que não seria difícil dado que na Venezuela historicamente os oficiais são oriundos de classes mais baixas. Essa propaganda encontrou terreno fértil entre os militares e com isso o bolivarianismo revolucionário começou a ganhar contornos de projeto de governo e não apenas uma guerrilha anti-governista. Bolívar foi exaltado nesse momento como ícone de um projeto socialista, sua guerra contra a dominação espanhola e seu discurso contra qualquer tipo de servidão para a fundação de uma república venezuelana ajudaram a construir a utopia de uma segunda independência, agora em relação ao sistema capitalista e o imperialismo estadunidense no continente. Chávez então dá corpo ao bolivarianismo revolucionário na idealização de um república bolivariana socialista.
Simón Bolívar é um personagem complexo. O culto a Bolívar expressa uma diversidade de interpretações sobre sua história que revela tanto ideais liberais quanto conservadores em sua trajetória politica. A quase santidade que alcançou entre o povo é fruto de um simbolismo que caminha para além das guerras de independência. “El Libertador” surge como o grande fundador da República, idealizada na utopia da luta do herói contra qualquer tipo de opressão. A nacionalidade se realiza em Bolívar, nos grandes feitos de sua luta e quem se opõe a liberdade e justiça conquistados por ele é inimigo da pátria. O mito se desenvolveu como um sentimento coletivo e moldou a consciência nacional. Chávez foi capaz de estabelecer um diálogo direto com tal sentimento e a partir de uma simbiose mítica desenvolver seu próprio projeto politico.
A utopia de uma América Latina livre e a necessidade de uma luta contra opressão do sistema capitalismo revela a ponte ideológica entre o chavismo e o bolivarianismo. Chávez construiu o panteão de mitos da ideologia chavista na história da descolonização do país, expressando assim a busca por uma identidade nacional do movimento. O anseio pela formação de um socialismo autenticamente venezuelano se realiza na herança de um marxismo heterodoxo que outros pensadores de esquerda do continente já haviam delineado. O peruano José Carlos Mariátegui aparece como referência justamente porque foi capaz de unir marxismo e anti-imperialismo a um discurso nacionalista que apontava os trabalhadores e os camponeses indígenas como a principal classe revolucionaria. Pode-se dizer que Chávez personificou a histórica utopia de Bolívar criando o imaginário de um segundo Libertador, a ideia de uma segunda independência. Assim o discurso carismático do chavismo apresentou uma nova realidade para grande parte da população antes excluída de qualquer espaço de cidadania. O discurso chavista se fundamenta na necessidade de uma transformação radical em um momento de intensa crise política e social nos anos 1990, o empobrecimento resultante de politicas neoliberais. Ademais a deslegitimidade democrática do Pacto de Puntofijo estabeleceu o cenário para que o bolivarianismo revolucionário pudesse novamente ganhar o coração das massas. A ideia de uma revolução socialista como único caminho revelou a fratura de uma sociedade extremamente desigual, deixando pouca margem para negociação de alternativas com a oposição. A politica venezuelana se resumiu nesses anos de governo bolivariano a chavistas e anti-chavistas. O golpe de 2002 realizado por parte da oposição contra o presidente e o consequente enorme apelo popular pelo retorno de seu líder permitiu que o programa chavista se radicalizasse mais rumo a um projeto socialista.
O socialismo do século XXI ainda tem grandes entraves a resolver para se realizar institucionalmente de forma completa. No entanto, o legado chavista é de intensa transformação social para uma grande parte da população. O reconhecimento disso está expresso ainda nas urnas e no grande apoio que o partido PSUV obteve. A oposição já percebeu que o cenário socio- politico venezuelano pós Chávez é outro, as dinâmicas de poder da democracia venezuelana se transformaram, e que de certa forma irão ter que dialogar com os avanços chavistas para voltarem ao palácio Miraflores em Caracas. Para Maduro mais do que lidar com a sombra de Chávez o desafio será o de dialogar com uma oposição que busca recuperar suas forças e ganhar a confiança das massas. O grande opositor é Henrique Caprilles, governador do Estado de Miranda, e uma de suas armas é se dizer descendente de Simón Bolívar, ter o sangue do libertador. A disputa pelo mito continua.
*Colaborador de Diálogos do Sul