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Desenvolvimento sustentável e democrático só é possível com e através do Estado

Sociedade tem que reagir para que o governo não acabe com o que sobrou do Estado
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Uma galeria de mais de 200 fotos, postada no facebook por Samuel Iavelberg no álbum “Baú do Exílio 18”, provocou-me refletir sobre uma história que querem apagar. A história do trabalhismo como via para o socialismo como sonhara Getúlio Vargas. 

As fotos são do Encontro de Lisboa, organizado sob a liderança de Leonel Brizola, reunindo brasileiros no exílio com oriundos de vários rincões do país, com o objetivo de refundar o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB. 

Veja também:

A ignomínia de uma Vargas (Ivete) numa jogada do chefe de Inteligência das Forças Armadas, o general Golbery do Couto e Silva, levou a sigla, ou seja, registrou o partido no Tribunal Eleitoral, impedindo que Brizola o fizesse, mas não levou as ideias nem a garra dos que fundaram logo depois do PDT. 

Sociedade tem que reagir para que o governo não acabe com o que sobrou do Estado

Reprodução: Pixabay
É papel do estado garantir condições minimas de sobrevivencia ao seu povo

Neiva Moreira telefonou do México convidando-me para o encontro. Eu estava no Panamá, na Oficina de Comunicação do chefe de governo, inteiramente dedicado ao apoio panamenho ao Frente Sandinista de Libertação Nacional, em fase crucial da luta contra a ditadura da família Somoza. 

Passados poucos dias um novo telefonema, desta vez do próprio Leonel Brizola, insistindo para minha participação. Entendeu minhas razões. Perguntei em que poderia ajudar, ele respondeu que se possível, passagens aéreas. Por ordem do general Omar Torrijos foram compradas passagens de Nova York para Lisboa a disposição do líder brasileiro. 

A revolução sandinista vitoriosa tomou o poder em 1979, em 1980 regressei ao Brasil, a São Paulo, e junto com Euzébio Rocha, Terezinha Zerbini, Rogê Ferreira e tantos outros, que me perdoarão a omissão, pois são tantos, iniciamos o trabalho de organização do PDT paulista. Meus dois filhos, com os filhos de Francisco Julião se empenharam com entusiasmo na organização da Juventude Socialista do PDT.

Neiva Moreira, Darcy Ribeiro e Theotônio dos Santos / Reprodução

Nas fotos de Samuel Iavelberg, postadas no face, muita saudades de tantos que já nos deixaram: Brizola, Neiva Moreira, Darcy Ribeiro, Gomes Talarico, capitão Altair, Moniz Bandeira, Theotônio dos Santos, Betinho, Doutel de Andrade… quem mais? 

Salvador Allende, senador pelo Partido Socialista do Chile, recebido por Leonel Brizola / Reprodução

Mario Soares, Leonel Brizola e Doutel de Andrade, na mesa de abertura / Reprodução

Golbery: um general brasileiro assalariado pela Dow Chemical 

Foi um golpe terrível assestado pelo Golbery do Couto e Silva, um general assalariado da Dow Chemical, no projeto de reconstrução do trabalhismo histórico. Ao mesmo tempo em que Golbery amansava o Lula, Luís Inácio da Silva, o novo líder surgido nas lutas sindicais do ABC, visitando-o na prisão, dava o duro golpe no projeto trabalhista. Realmente um golpe terrível.

Imagine o tempo que Brizola e seus companheiros tiveram que perder para recompor as bases tradicionais, competindo com Ivete Vargas, e formar novas bases sob a nova bandeira. Ele tinha conseguido formar uma grande frente de esquerda com o que havia de melhor no velho PTB e outros partidos e muita gente jovem, alguns oriundos dos movimentos que com armas nas mãos enfrentaram a ditadura.

A competição com Ivete era muito desigual, dado que ela contava com apoio dos militares no poder. Enquanto para ela não faltavam recursos, inclusive midiáticos, para os trabalhistas autênticos faltava tudo, principalmente meios de comunicação. Desde o primeiro momento a mídia hegemônica se colocou em oposição ferrenha contra o projeto trabalhista.

Brizola significava retomar o fio da história, que vinha sendo tecida desde os tempos da Aliança Nacional Libertadora que a partir da Revolução de 1930, iniciara um projeto de desenvolvimento industrial e um projeto político de construir uma pátria soberana e socialista.

A conjuntura mundial era altamente favorável. O novo partido trabalhista já nasceu filiado à Internacional Socialista. Brizola reconhecido como líder pelos grandes estadistas europeus, como o chanceler alemão Willy Brandt e Mário Soares, que acabara de deixar o cargo de primeiro ministro de Portugal.

Brizola, herdeiro legítimo de Vargas e de João Goulart tinha história pra ser contada. Como deputado estadual, prefeito de Porto Alegre, governador do Rio Grande do Sul, deputado federal pelo Rio Grande e pelo Rio de Janeiro. Tinha como projeto reformas realmente revolucionárias: Reforma Agrária, Reforma Tributária, como base para inclusão social; desenvolvimento integral e sustentável com ênfase na soberania nacional.

Era respeitado, admirado e odiado pelo seu passado e mais ainda pelo que podia vir a ser. 

Como prefeito e governador fez uma verdadeira revolução na Educação colocando todas as crianças na escola. Como governador expropriou os monopólios de eletricidade e de telefonia, criou o movimento dos Sem Terra e fez uma reforma agrária com base nas cooperativas. Mobilizou a nação inteira e parou o golpe dos militares em 1961 e garantiu a posse de João Goulart. Apoiou as reformas do governo trabalhista e criou os Grupos dos 11, na crença de que só o povo organizado garantiria as reformas e pararia o novo golpe que antevia. Organizou a primeira tentativa armada de combate à ditadura. Retornou ao Brasil depois de 14 anos de exílio, liderando o trabalhismo socialista, foi eleito governador do Rio de Janeiro. Foi candidato a presidente pelo PDT e formou chapa como vice de Lula em aliança PDT-PT.

Odiado. O inimigo público número um declarado pelo governo dos EUA e pela Rede Globo, claro. A família Marinho, proprietária da Globo, tentou evitar que Brizola fosse eleito governador através de fraude na contagem de votos.  

Ai se travava uma grande batalha no campo das ideias.

Mesmo durante a ditadura, trabalhistas e comunistas trabalharam juntos na reorganização do movimento sindical e foram protagonistas das grandes greves que desafiaram a ditadura como as de Contagem, em Minas Gerais, Osasco em São Paulo, e obviamente, na região do ABC (Santo André, São Bernardo, São Caetano e Diadema) na Grande São Paulo.

Paralelamente, a partir das intervenções nos sindicatos e prisões de seus dirigentes, os agentes da ditadura passaram a trabalhar para formar sua base de apoio entre os trabalhadores. Algo complicado, mas o objetivo final compreensível: domesticar o trabalhador, neutralizar o movimento sindical.

Para isso contaram com a ajuda da AFL/Cios, a grande central sindical estadunidense, que com dinheiro a fundo perdido, fornecido pela CIA e outros órgãos de governo, passaram a formar os quadros para o novo sindicalismo. As empresas transnacionais facilitavam a vida dos que topavam frequentar os cursos de formação. Os cursos eram ministrados pela Iadesil -o Instituto Americano para o Desenvolvimento do Sindicalismo Livre- e os melhores alunos ganhavam prêmio viagem aos Estados Unidos.

Durante a ditadura a Igreja de Roma foi a única organização poupada, deixada livre para se organizar nas cidades e no campo, principalmente nos bairros periféricos. Movimento das Comunidades Eclesiais de Base, das Pastorais Operárias e Camponesas, realmente constituíram uma massa organizada e ideologizada e também mantinham cursos de formação de quadros.

O que era o “novo” virou velho e o que era “velho” acabou-se 

Nesse contexto de disputa entre o “novo” e o “velho” na reorganização do movimento sindical surgiram o PT e a CUT. Esta, Central Única dos Trabalhadores, longe de ser única, nasceu junto com a CGT, da qual logo surgiu a Força Sindical e hoje compartilha com outras 11 centrais sindicais  a atomização da organização dos trabalhadores.

Interessante lembrar que a organização do Trabalho idealizada por Vargas previa a organização em sindicatos, federações e confederações tanto dos trabalhadores como dos patrões. O sindicalismo “livre” foi estimulado pelas empresas para os trabalhadores mas nunca valeu para eles. Sintomático. Enquanto há uma só Fiesp/Ciesp Federação e Centro da Indústria do Estado de São Paulo, poderosa, há 14 centrais operárias, cada uma puxando brasa pra sua sardinha.

Naquele recomeço, o “velho” significava o Comando Geral dos Trabalhadores, o Pacto de Unidade Sindical, a aliança dos trabalhistas com os comunistas no apoio ao projeto desenvolvimentista e reformista de João Goulart e Getúlio Vargas. 

O “novo” significava acabar com a Era Vargas. Acabar com a Era Vargas e tudo o que ela trazia de “ranço” reformista, nacionalista, anti-imperialista, principalmente dos “perigosos” trabalhistas e comunistas. 

O PT surgiu nesse contexto, em berço católico (Colégio Sión), unindo as bases das comunidades eclesiais, democratas cristão, intelectuais marxistas e antimarxistas que desejavam a morte não só de Marx mas também de Vargas, e grande contingente de militantes sindicais, a maioria representando o novo sindicalismo, a minoria o velho trabalhismo aliado aos comunistas. 

Francisco Wefort, intelectual da USP, um dos ideólogo do PT, era um dos que declarara publicamente a morte de Marx. Com a eleição de Fernando Henrique Cardoso em 1994, ganhou como prêmio o Ministério da Cultura onde, de 1995 a 2002 consolidou a Lei Rouanet como principal financiadora das atividades culturais. Na década de 1970 foi assessor na OIT, onde amadureceu as ideias de um sindicalismo de resultados. Ocupou principais cargos de direção no PT de 1983 até 1990. 

Sua obra expressa bem esse ranço anti comunista que não passa de uma visão rançosa da história, muito comum entre professores da USP. Lembremos que a ditadura fizera uma verdadeira caça às bruxas, expulsando o que era pensamento marxista ou divergente das universidades.

Fim do socialismo, fim da história, fim da Era Vargas

Para ele os acontecimentos no Leste Europeu de 1989/1991, significaram não só o colapso do socialismo mas o próprio fim da história, como proclamara Fukuyama, acreditando não haver qualquer saída para o futuro conduzido pelas esquerdas. No livro Qual Democracia? (Cia das Letras, 1994), para ele a utopia, assim como o socialismo (burocrático, totalitário) de Cuba e China, morreu como modelo ideológico e perspectiva de futuro. 

Assim como o socialismo morreu ele passou a rechaçar qualquer intervenção do Estado e com isso se comprometeu com o processo entreguista e de desestatização iniciado por Fernando Henrique. Eu me refiro aqui a Weford porque sintetiza bem o que foi a trajetória do próprio PT que ele fundou. 

Weford, descrente da esquerda se aliou ao PSDB e ao PFL, que não eram centro nem direita, posto que eram agentes de uma teoria que abdicava do domínio sobre os centros de decisão nacional para adotar o pensamento único imposto pelo capital financeiro e o que é pior, a serviço da hegemonia dos Estados Unidos.

Assim também agiu o PT, eleito com um discurso que parecia ser contra o sistema, no poder não deteve o processo de privatização nem buscou alternativas à hegemonia do capital financeiro na condução da política econômica.

Já Brizola, que tinha viva a utopia no horizonte, acreditava no socialismo renovado, a partir do pensamento e obra de Vargas e o aprendizado oferecido pelo mundo, dos êxitos e fracassos dos movimentos sociais, e o que é mais importante, a percepção de que os fracassos se devem muito mais a fatores subjetivos do que objetivos, ou seja, da ação do Império que mantém colonizadas as mentes impedindo a independência e a construção da pátria soberana. 

Declarado inimigo público número um do Império, e da Rede Globo, o projeto do trabalhismo como via para o socialismo foi derrotado. O PDT, como projeto  socialista acabou com Brizola. Sobrevive a sigla, e alguns militantes abnegados, e a grande dúvida. Para onde vão e o que desejam esses novos líderes que assumiram o partido? 

Se não há um demônio a combater há que criá-lo

Ciro Gomes, hoje candidato do partido à Presidência pelo PDT, no discurso, aponta o inimigo corretamente, e promete submeter a plebiscito a revogação das medidas que violam a soberania nacional, de desestatização e desnacionalização da indústria. E se o plebiscito disser não? Acabou-se a festa?

Lula também, depois que saiu da prisão, tem apontado o inimigo corretamente e chama por um novo pacto social. Mas, ao que parece, está sozinho, seu próprio partido faz ouvidos moucos a sua pregação.

Livre do Brizola e do trabalhismo e do comunismo, como o sistema não sobrevive sem ter um demônio, é preciso criar o demônio da vez. 

Lula e o PT, transformados em inimigos não pelo que fizeram, mas pelo que deixaram de fazer. Não tiveram vontade nem condições de ir adiante com as reformas exigidas pelo Consenso de Washington e, Deus é brasileiro, nos deu o pré-sal e Getúlio nos deu a Petrobras. 

Havia condições para a retomada de um projeto desenvolvimentista. Infraestrutura, indústria de base, engenharia, tecnologia, recursos naturais abundantes. Inaceitável para o império hegemônico.

Alertado o Império entrou em ação. A Casa Branca colocou os Serviços de Inteligência e o Departamento de Justiça a elaborar e executar a estratégia de acabar com a festa e assumir de vez o controle dos centros de decisão do país.

Com o mensalão começou a demonização do PT (petralhas). A Lava Jato, com os procuradores e juízes orientados pelo Departamento de Justiça estadunidense fez o resto. 

A mídia hegemônica cumpriu com galhardia seu papel mantendo a opinião pública mal informada e confusa, alienada.

O Judiciário também cumpriu com galhardia (ou covardia?) seu papel. Legitimou o ilegitimável, as violações a princípios pétreos da Constituição e dos códigos.

O estado maior das forças armadas também cumpriu com galhardia (ou subserviência?) seu papel. Realizou com êxito a operação de inteligência que culminou com a fraude eleitoral de 2018 e a ocupação do planalto pelos militares.

O Estado mínimo ou Estado desenvolvimentista?

E hoje, o que?

A única certeza é a incerteza. Em todas as frentes, em todos os partidos.

O pensamento único já não é apenas uma imposição da mídia e das academias, é principalmente imposto pelas forças das armas. Uma geração de militares oportunistas que abdicou da soberania nacional transformando as forças armadas em tropas pretorianas do Império. 

E hoje, o que é que vale? 

O Estado mínimo ou Estado desenvolvimentista? 

Diante do descalabro provocado pela incompetência dos gestores da economia no enfrentamento da Pandemia, e a perplexidade com relação ao que será a pós-Covid, a professora mestre em desenvolvimento  planejamento econômico, doutora em políticas públicas, colaboradora de Diálogos do Sul, Ceci Jurua vaticina: 

Daqui por diante, no pós-pandemia, será exigido de todos nós um esforço suplementar para fins de reconstrução do Estado Nacional e da Pátria Soberana. Retomar a trilha desenhada na Era Vargas: trajetória de crescimento sustentável e de implantação de direitos mínimos de cidadania para todos os brasileiros, paralelamente à defesa de princípios e  procedimentos democráticos modernos.

 A professora não está sozinha. 

A sociedade inteligente, aquela dos intelectuais e especialistas, está sendo sacudida e despertada para os novos desafios. É preciso livrar-se da ditadura do capital financeiro.

O papa conclama que somos todos irmãos (Encíclica Fratelli tutti) e chama para uma Economia de Francisco, aquele pobre que virou santo porque carregava a igreja dos ricos nas costas. 

A sociedade mais justa não se fará à revelia do Estado. Só um Estado democrático e popular forte poderá dar condições para que a sociedade se reorganize e trace seu próprio destino, de uma pátria livre e soberana.

   

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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