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O que acontece na Nicarágua? Perguntas e respostas do ponto de vista da esquerda

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Os trágicos acontecimentos que se dão na Nicarágua desde 18 de abril, preocupam e confundem as esquerdas. Entretanto, a inquietação compartilhada não resulta em unanimidade no momento de analisar e interpretar os fatos que a cada dia nos sobressaltam.

Iousu Perales, no Esquerda.Net

Para uma parte da esquerda, trata-se de uma tentativa de golpe de estado, do qual participam forças opositoras ao governo local, com respaldo dos Estados Unidos. Para a outra parte, trata-se de uma rebelião popular contra a concentração de poder nas mãos de Daniel Ortega e suas expressões autoritárias e repressivas.

Para saber realmente o que está se passando, são de pouca ajuda os marcos teóricos já elaborados, nos quais se tenta encaixar a realidade, ainda que fatos e dados contradigam análises e conclusões pré-concebidas. Um desses marcos teóricos aponta a uma conspiração contra o governo supostamente revolucionário de Ortega, de tal maneira a conclusão é sempre a mesma: os Estados Unidos e a oposição compartilham a responsabilidade pela violência, pelos mortos e pelo objetivo de derrocar um governo democrático.

Estão se completando 35 anos desde que me incorporei à solidariedade com a Nicarágua. Sinto-me intelectual e sentimentalmente Sandinista. Vivi na Nicarágua e pra lá viajei não menos de 25 vezes desde a revolução de 1979. Tenho numerosas amizades com sensibilidades distintas e me considero bem informado, apesar da distância. Pois bem, não compartilho da ideia da conspiração. Ainda que acredite que os Estados Unidos não tenham deixado nunca de intervir na Nicarágua, como no resto da América Latina. Uma ideia que teve bases objetivas durante a década de oitenta, quando está provado que os Estados Unidos sustentaram e dirigiram a contra[1]. Que também teve bases no bloqueio a Cuba e nas dezenas de tentativas de invadir a ilha e atentar contra Fidel Castro. Além disso, as intervenções dos Estados Unidos em El Salvador, Granada, Guatemala, Panamá, são também certas, tal qual que as mais recentes tentativas de minar governos progressistas na região andina e, inclusive, de substituir presidentes em Honduras, Paraguai e Brasil.

Manifestações na Nicarágua

Porém, a sinalização dos Estados Unidos não pode ser algo recorrente que explica todos os grandes problemas das esquerdas. É um recurso fácil quando se trata de ocultar nossas próprias responsabilidades. No caso da Nicarágua, dispomos de um relato embasado em fatos que deveria ser suficiente para explicar que os males de Daniel Ortega e Rosario Murillo [a vice-presidente e mulher de Ortega] tem sua origem em suas próprias políticas e em seus próprios comportamentos como governantes.

É certo que a crise ou conflito atual poderia ter estourado por qualquer motivo distinto daquele do INSS [a reforma da Previdência]. Poderia ter sido devido o canal interoceânico o detonante do protesto. Porém, em todo caso, há que contextualizar os motivos de origem recentes, para compreender a radicalidade com a qual se expressam dezenas de milhares de pessoas. E há que retornar a 1990 para entender melhor o que ocorre na Nicarágua de hoje.

 

A “Piñata”

 

“La Piñata” foi o primeiro episódio que marcou uma crise interna na Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) e uma grande decepção em boa parte dos que eram solidários a ela. “La Piñata” foi aquela repartição de propriedades entre quadros Sandinistas após a derrota eleitoral de 1990, feita sob pretexto de que o partido não podia deixar o poder sem se fortalecer com recursos que seriam necessários para trabalhar na oposição. Mas, na realidade, ocorreu que a teórica transferência de propriedades ao partido se cumpriu somente em uma pequena medida; quadros beneficiados devem ter pensado que o bem-estar material começa por eles mesmos e  ficaram com sua cota.

Os demais lançaram mão do corporativismo que aconselhava um apoio mútuo no seio do exército de beneficiários. Alguns conhecidos comandantes se fizeram sócios de grandes negócios hoteleiros, de camareiras, de exploradoras madeireiras, de atividades agroindustriais e até bancárias, se fizeram também proprietários de imóveis previamente expropriados pelo governo revolucionário. Henry Ruiz, como outros tantos Sandinistas, tomou esta metamorfose como sinal de que havia chegado a hora de mudar o partido ou desaparecer da vida política. Foi-se do partido discretamente, sem fazer ruído, depois de se atrever a desafiar Daniel Ortega nas eleições para secretário-geral da Frente Sandinista em 1994.

O abandono de valores até então tidos como fundamentais, a deterioração das relações com a sociedade civil, os métodos de condução internos da FSLN, levaram o partido a uma crise permanente e integral; ideológica, política e orgânica, toda a qual se traduz em uma liderança de legitimidade duvidosa. Houve então diferenças internas em torno do Protocolo de Transição (para a saída do poder), mas essa diversidade de ideias e propostas não foi nada comparada com a brecha de desconfianças e conspirações internas para (re) alcançar o poder.

O caso de Zoilamérica Narváez, a filha política (adotiva) de Daniel Ortega, que em 1998 o acusou de ter abusado sexualmente dela durante vários anos, comoveu o país.

Em seguida, houve vozes que vieram aos Estados Unidos atrás de uma conspiração para prejudicar a Ortega, que se amparou na imunidade parlamentar para escapar do julgamento correspondente. Somente depois de pactuar com Arnoldo Alemán [prócer da direita] para evitar a transgressão parlamentar, foi que Daniel Ortega se apresentou, no ano de 2001, diante de um juiz Sandinista, que o declarou nem culpado, nem inocente do delito pelo qual foi acusado, e encerrou o caso porque supostamente este já havia prescrito legalmente. O certo é que Daniel Ortega nunca demonstrou sua inocência de maneira convincente.

Chamou a atenção naquele momento que Rosario Murillo, mãe da vítima, saiu em defesa de Daniel de maneira veemente. Obviamente, para um setor da população e do sandinismo, a figura de Daniel Ortega ficou manchada para sempre. Não digamos ainda qual foi a percepção da solidariedade internacional em sua maior parte, ao menos na  Europa: de condenação de Daniel Ortega e de sua esposa como encobridora. Não podíamos crer em uma jogada da CIA, era simplesmente inverossímil.

 

O pacto com Arnoldo Alemán

 

Em 17 de janeiro de 2009, a Corte Suprema de Justiça de Nicarágua exonerou o ex-presidente Arnoldo Alemán de seus cargos por corrupção. Deixava-lhe assim a porta aberta para apresentar-se de novo às eleições. Essa controversa eleição judicial não deixou ninguém indiferente: seus detratores coincidem em denunciar a suposta existência de um pacto secreto com Daniel Ortega para repartir cotas de poder: Um havia ganho sua liberdade (Alemán) e o outro, voltaria à Presidência (Ortega). A chave havia sido o controle que Daniel tinha do tribunal que absolveu Alemán.

Para Arnoldo Alemán o pacto com Ortega respondia ao interesse mútuo dos líderes políticos. Ortega estava em situação débil depois de sofrer sua segunda derrota eleitoral consecutiva e também acabava de enfrentar uma rebelião interna em seu próprio partido. Necessitava melhorar sua posição política e evitar que se desvanecesse sua imagem de líder único da FSLN. Por outro lado, Daniel Ortega validaria, com os votos dos deputados Sandinistas que comandava, a disputa de Alemán, em troca de compartilhar cotas dos poderes do Estado e poder alcançar a Presidência da República com apenas 35% dos votos nacionais. O ex-prefeito sandinista de Manágua, Dionisio Marenco conta que o mesmo Daniel Ortega se assombrou quando Alemán , “sem tom nem som, lhe oferecera rebaixar a porcentagem de votos necessários para alcançar a presidência, de 45% a 35%. Ortega e Alemán necessitavam um ao outro. Com o pacto,  Daniel Ortega pode alcançar a presidência com 38% dos votos, quando antes do mesmo se exigia 45%. Mas foi um pacto comum corrupto para conseguir créditos eleitorais e cotas de poder”.

 

O Pacto com Obando e Bravo

 

Daniel Ortega, Rosário Murillo e o Cardeal Obando.

No passado, Daniel Ortega havia chamado o cardeal Obando de “capelão do somozismo”.  O fez depois daquela parábola da “víbora”, pronunciada pelo cardeal na catedral em 17 de outubro de 1996, três dias antes das eleições que Ortega perderia para Arnoldo Alemán. Nos meses seguintes, Ortega chamou Obando de fariseu e o acusou de “sujar a palavra de Cristo”. De sua parte, o cardeal disse que Ortega “é uma serpente, que vive, mata e morre cuspindo veneno”.

Mas a troca de insultos foi esquecida quando Ortega percebeu que contra a Igreja Católica não ganharia nunca as eleições. Havia perdido as eleições de novembro de 2001 contra Enrique Bolaños, tropeçando de novo na Igreja Católica. Assim, buscou o abraço com o cardeal. Começou chamando-lhe um homem comprometido, que havia mostrado muito amor pelos mais pobres e por sua nação. Para que ficasse claro, os deputados Sandinistas votaram na Assembléia Nacional uma moção que destacou a Obando e Bravo como um homem de diálogo, que “se fez outro Cristo na entrega aos demais, homem de grande energia moral”. O reconhecimento não foi em vão.

Houve então duas conversões. A do cardeal em sua aproximação com Daniel Ortega, que teve como troca a exoneração de Roberto Rivas, acusado de fraudes milionárias, porém protegido do cardeal. E a conversão de Ortega, que começou a frequentar com sua esposa as missas de domingo na catedral, convenientemente televisionadas, em uma das quais pediu perdão pelos excessos passados na revolução. Em uma delas também foi acompanhado de Lenin Cerna, que foi o chefe de inteligência Nacional na década de oitenta. Ambos foram iluminados pelos holofotes quando se viu o cardeal dando a comunhão a Ortega e sua companheira Rosario, aos quais havia casado em uma cerimônia privada.

O maior presente estava por chegar. Ocorreu em fins de 2006, pouco antes das eleições presidenciais. Uma conquista das mulheres nicaraguenses, estabelecida insolitamente na lei por um governo conservador havia mais de um século e meio, em 1837, foi apagado de uma canetada por um partido de um governo que se autoproclama “revolucionário”: a bancada da FSLN votou a proibição e castigo do aborto terapêutico. O fez para satisfazer as igrejas e com o fim de ganhar votos, pois se encontrava em campanha eleitoral, para consagrar-se com o fundamentalismo religioso das igrejas católica e evangélica. Por fim, em novembro de 2006, Daniel Ortega ganhou as eleições.

 

As políticas do governo Ortega

 

Protesto contra o governo Ortega em Manágua

Já como presidente, Ortega quis proclamar a continuidade da revolução que derrocou Somoza. Entretanto, o discurso nunca se encaixou com os fatos. Não, não estamos em nenhuma segunda etapa da Revolução, não se estão realizando transformações que consolidem na Nicarágua um sistema de justiça social. Pelo contrário: se está fortalecendo, como nunca antes, um regime econômico-social no qual os pobres estão condenados a ganhar a vida em trabalhos informais, precários, por conta própria ou a trabalhar por salários miseráveis, em longas jornadas, ou condenados a emigrar a outros países em busca de trabalho, a pensões de aposentadoria precárias. A riqueza na Nicarágua se concentra cada vez mais nas mãos de grupos minoritários.

Claro que isto tudo se explica com fatos: o pacto do governo Ortega com o grande empresariado do Conselho Superior da Empresa Privada (Cosep) e a obediência ao Fundo Monetário Internacional (FMI), do qual a Nicarágua é uma boa aluna. De fato, a equipe técnica do FMI visitou a Nicarágua em 2017 e felicitou o governo pelas boas perspectivas do país, com um crescimento de 4,9% do PIB. Um crescimento que, para 2018, seria de 4,7%. As felicitações foram acompanhadas pela recomendação de reformar a Previdência para garantir sua viabilidade. A reforma do INSS é justamente o que tem sacudido a Nicarágua desde 18 de abril. O informe do FMI revela também que se “recebe com satisfação as medidas adotadas pelas autoridades para fortalecer o setor bancário”. O informe, muito elogioso para com o governo de Daniel Ortega, reconhece em seu ponto 10 os bons avanços realizados.

Como sabemos fartamente na esquerda, é difícil governar a favor das maiorias cumprindo as recomendações do FMI. E, quando os dados macroeconômicos são bons, com frequência ocultam que, por baixo, tudo segue igual.

Em segundo lugar, aprofundou-se a subordinação do país à lógica global do capital. A Nicarágua se está entregando às grandes transnacionais e aos capitais estrangeiros, que chegam a explorar riquezas naturais e aproveitar-se da mão-de-obra barata, como sucede nas zonas francas. O caso mais patético desta lógica entreguista do país e de seus recursos foi a concessão para a construção do Canal Interoceânico, sem nenhuma transparência, e contra a vontade dos movimentos de proteção ambiental e do campesinato afetado pelo projeto. Estão em curso, porém, muitas outras concessões mineiras, florestais, pesqueiras, na geração de energia, que estão ocupando todo o país.

Em terceiro lugar, o atual sistema econômico-social imperante na Nicarágua trata de reduzir à mínima expressão as resistências sociais. Também se estão retirando os espaços críticos e de informação objetiva, de tal maneira que poucos meios de comunicação escapam do controle da família Ortega-Murillo, com a participação de seus filhos.

Mas e os programas sociais? É verdade que existem. Mas são basicamente assistenciais, não o produto de transformações sociais e econômicas e de modelo produtivo. Isso se traduz na entrega de pequenos lotes agrícolas, animais reprodutores, folhas de zinco, bicicletas e outras doações cobertas até agora com dinheiro da doação venezuelana de petróleo. Além disso, há os favores pessoais, os prêmios e punições que são completados com uma vigilância diária através do cinturão de ferro tecido pela vice-presidente Rosario Murillo, que conseguiu criar uma força social que presta serviços ao governo sob a fórmula da participação cidadã.

O assistencialismo gera clientelismo e isso contribui para o fato de que hoje, no meio da crise, o apoio a Ortega-Murillo não seja inferior a 20%, segundo pesquisas. Por outro lado, desenvolveu-se uma excessiva concentração de poder no casal Ortega-Murillo e em seu círculo mais próximo. É um poder que ameaça destruir todos os vestígios de instituições democráticas. Desde seu primeiro mandato até 2018, Ortega vem progressivamente substituindo a divisão de poderes por uma concentração de mando que atinge o Legislativo, a Justiça e o Poder Eleitoral – do qual teve que renunciar o já mencionado Roberto Rivas, depois de servir como presidente sob a influência de Ortega, para sair são e salvo de denúncias de corrupção.

Qualificar o governo de Daniel Ortega e mesmo sua liderança como de esquerda é um erro. Vejamos, todavia, outro e significativo exemplo: O slogan que está presente em toda Nicarágua há alguns anos é: Nicarágua, cristã, socialista e solidária. Em termos intelectuais é um despropósito. Do ponto de vista pragmático é puro oportunismo. Um Estado na mão da esquerda só pode ser laico. Não pode definir-se como confessional, sob pena de violentar toda a dimensão libertária da nova sociedade. Há claramente uma tentativa de aproveitar o baixo nível de formação crítica de uma grande parte da população, apelando a emoções e crenças que devem ser vividas como privadas.

Daniel Ortega utiliza a linguagem tanto religiosa como antiimperialista como disfarce para uma política que, na realidade, é neoliberal, e pactua com os Estados Unidos (a década da mão dura de Daniel Ortega foi vivida com tranquilidade pelos presidentes estadunidenses), com obediência ao FMI. Essa linguagem responde a uma tentativa muito usada pelos poderes do mundo: dizer aquilo que a população quer escutar para que, na realidade, tudo siga igual e nada mude. O que é parecido fazer é contrastar suas políticas concretas com seus discursos, para identificar suas contradições. Não encarar de frente os acontecimentos para analisá-los livre e objetivamente não se ajusta àquela ideia de que a verdade é sempre revolucionária.

Em ocasiões damos às costas a realidades de que não gostamos, porque entendemos, erroneamente, que ao criticá-la prejudicamos à nossa causa. Pelo contrário, o que nos causa dano é tentar tapar o sol e justificar ações da esquerda que devem ser criticadas por outras esquerdas. Desde uma postura sã, deveríamos nos interessar em tornar nítida a verdade, para nos fortalecer política e moralmente.

Os protestos contra a redução das aposentadorias e pensões em 5% e contra o aumento das alíquotas de previdência dos trabalhadores e dos empresários ao INSS deveriam ter conduzido à abertura de um diálogo com as partes sociais interessadas. Também deveriam ser debatidas, como exigem as leis da Nicarágua, na Assembléia Nacional. Porém, Ortega pretendeu impô-las por decreto presidencial.

Uma revolta popular é o que está acontecendo, manifestando um mal-estar incubado durante os últimos anos. Entretanto, algumas vozes da esquerda sinalizam que Ortega-Murillo são vítimas e que tudo corresponde a um plano patrocinado pelos Estados Unidos. Os Estados Unidos levam em seu DNA se comportar como um império. É sua política de Estado considerar a região centroamericana e o Caribe como seu quintal dos fundos.

É possível supor que um novo movimento revolucionário na América Central levaria a administração estanudense a tomar medidas de força? Como disse Noam Chomsky: “Os persistentes e frequentemente invariáveis traços da política exterior dos Estados Unidos estão muitos arraigados nas instituições estadunidenses e na distribuição do poder na sociedade dos Estados Unidos. Estes fatores determinam um restrito marco para a formulação de políticas, com poucas possibilidades de desvios.”

Na época atual, as armas dos Estados Unidos na região, e na Nicarágua em particular, não disparam balas. Têm nome de Usaid (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), Fundação Nacional para a Democracia (NED), assim como outros institutos “civis” contratados pela Casa Branca.

Estes organismos tratam de infiltrar-se no cenário nicaraguense e influir em organizações da sociedade civil e da oposição política. Em primeiro lugar como estratégia de ocupar espaços-chave e, em segundo lugar, para impulsionar novas lideranças nacionais. Para isto, estes organismos contam com uma arma importante: o dinheiro com que podem contribuir. Não é de se estranhar que se tenham detectado muitos projetos de influência estadunidenses no país nos últimos anos.

Estou seguro de que os aparatos de inteligência nicaraguenses conhecem bastante bem e de perto estes movimentos. Na realidade, têm pistas fáceis de seguir. Entretanto, o que parece curioso é que a segurança do país identifique como projetos da Usaid na Nicarágua os seguintes: a participação cidadã, o fortalecimento dos Direitos Humanos, ou a cultura de exigência de transparência às instituições do governo.

Será que o regime vê como ameaça tudo o que signifique empoderamento social e mais democracia? Vamos direto ao ponto: uma coisa é crer que os Estados Unidos não descansam na América Latina, país por país, e outra muito diferente é defender a ideia de que por trás da revolta popular na Nicarágua existem forças ocultas geradas, em concreto, pelo imperialismo. Esse tipo de reação é muito recorrente nas esquerdas. Serve para desculpar os próprios erros, ocultar os próprios fracassos e despejar toda a responsabilidade nas forças externas.

Com este tipo de tese faltamos com a verdade no caso atual na Nicarágua. O estranho é que durante uma década Daniel Ortega tenha governado quase sem oposição nem protesto nas ruas. Motivos para que houvesse manifestações deu de sobra o casal Ortega-Murillo.

De fato, aconteceram dezenas de marchas contra o Canal Interoceânico, sendo reprimidas muitas vezes. E, quando estas marchas foram reprimidas, sempre se justificou em nome dos interesses nacionais e se taxou os manifestantes de pouco menos do que “vende-pátria”. O certo é que no 18 de abril, estudantes primeiro e multidões depois, saíram às ruas para protestar contra medidas impostas pelo FMI. E como é possível semelhante convergência de atores protestando? Deve pensar Daniel Ortega.

Talvez Ortega (e muita gente da esquerda) não o perceba(m) que há novos atores sociais que se convocam pelas redes com grande velocidade. Que não é necessário esperar às portas dos centros de trabalho para conseguir adesões, nem esperar ordens de um partido político. Uma convocatória pelas redes chama com grande rapidez e conta com a vantagem de não precisar de um centro organizador: há muitos centros e ao mesmo tempo nenhum deles.

Nós das esquerdas temos que nos perguntar como é possível que diante do autoritarismo, da concentração de poder e das políticas neoliberais não tenham acontecido antes protestos como os de agora. Um monitoramento imparcial do que vêm sendo as políticas e comportamentos de Daniel Ortega será demolidor.

Ninguém pressentiu esta explosão, porém, eram incontáveis as razões que anunciavam que ocorreria. A juventude universitária a iniciou e à juventude seguiu o povo, muita gente, cada vez mais gente. Há anos, havia mortos e terror nas zonas rurais e Manágua parecia adormecida. Ao despertar Manágua, levantou-se em uníssono o país inteiro. Como foi possível? Não por uma conspiração de fora, mas por muita lava acumulada lá dentro. Os vulcões avisam (“Revista Envío”, abril 2018).

 

Violência

 

O idôneo é uma saída política democrática e pacífica, mudando a realidade política e o governo de um modo cívico.

O número de mortos cresce a cada dia. Se não há acordos políticos em curto prazo a sangria pode ser das que rompem os olhos.Todos os mortos e feridos são obra das forças paramilitares. A grande maioria, sem sombra de dúvida. Há também um pequeno número de grupos que se colocam ao lado da oposição. É de certo modo inevitável. O é porque a Nicarágua é um país com muita gente familiarizada com as armas e em sua memória coletiva está muito presente a derrubada armada de uma ditadura.

Honestamente, creio que o idôneo é uma saída política democrática e pacífica, mudando a realidade política e o governo de um modo cívico. A grande maioria dos mais de 280 mortos é resultado dos disparos de forças policiais e paramilitares. Assim afirmam numerosas testemunhas, familiares de vítimas, organismos de diretos humanos nacionais e internacionais e gravações de vídeo.

Mas assim testemunham também os modelos de arma utilizados e a precisão de tiro daqueles que disparam. É um segredo em voz alta que, em reuniões realizadas em vários departamentos do país, foram feitos recrutamentos de veteranos de guerra, ex-policiais e ex-membros das tropas especiais do MINT, entre outros grupos. Tudo isso foi publicado na Nicarágua e ninguém conseguiu negá-lo. Mas há mais um fato, significativo: se na segunda quinzena de abril os tiros contra os manifestantes vêm de espingardas 22, fuzis e alguns AK 47, no momento grupos militarmente organizados, dotados de comunicações e até drones militares, atiram com rifles M16, AK47, rifles sniper Dragunov, FA1 e Catatumbo, entre outras armas de combate.

É verdade que grupos minoritários usam morteiros caseiros. Eu tenho que dizer que apesar de apelar para uma resistência legítima, parece errado para mim. Por cinco razões, pelo menos: a) porque o confronto com armas (mesmo que sejam caseiras) desloca a multidão como principal ator e a substitui por minorias violentas; b) porque desencadeia uma espiral de reações, normalmente desproporcionais, em que a sociedade civil perde; c) porque o confronto violento não expulsará o casal Ortega-Murillo do governo, que tem muito poder de fogo; d) porque um confronto armado é o caminho mais curto para uma guerra civil; e) porque, politicamente e eticamente, a mobilização democrática e pacífica é melhor para um projeto de país.

Vamos ver uma imagem comum: em Manágua e outras cidades os grupos armados atiram de Toyotas brancos e desaparecem. Alguém acredita que se eles são opositores, pelo menos alguns desses indivíduos não teriam sido presos e exibidos na mídia? Por que eles não são presos, mesmo quando grupos policiais foram vistos fisicamente perto desses grupos das Toyotas?  É claro que o confronto foi e é extraordinariamente desigual na grande maioria dos casos: pedras e bastões contra armas de guerra. Certamente a esquerda deveria refletir sobre o fato de que o próprio Daniel Ortega chegou a dizer: “a violência da oposição vem de uma conspiração criminosa que tentou levar o país ao crime organizado”. Declaração estranha e implausível que não combina com a tese de uma conspiração política imperialista.

Uma imagem do que está acontecendo foi deixada por um estudante de comunicação da UCA no âmbito da pequena mesa de discussão em que Daniel Ortega estava presente: Lesther Alemán, sem um microfone, paralisou firmemente o país. Um menino de 20 anos confrontou o presidente:

“Por que ele deu sua palavra? Porque colocamos os mortos, os feridos, os desaparecidos!… Concordamos em estar nesta mesa para exigir que ele mesmo ordene imediatamente a cessação imediata da repressão de suas tropas, das forças paramilitares, das turbas!… Esta não é uma mesa de diálogo, é uma mesa para negociar a sua saída, e você sabe muito bem porque é o povo que solicita!… Em um mês você interrompeu o país, a Somoza levou muitos anos. E você sabe disso muito bem!… Entregue-se a todo esse povo! “ Uma cena inesquecível quando a história dessa revolução desarmada for escrita.

 

Conclusão

 

Uma manifestante exibe um cartaz que diz: “Ortega, Somoza, são a mesma coisa” durante uma marcha em Manágua em 23 de abril de 2018.

Reações da esquerda devem ser objetivas, a partir da análise da trajetória de Daniel Ortega e Rosario Murillo no poder, sem enganar-nos , buscando identificar fatos e fazer a avaliação de que nós merecemos. Eu sei que há muitas pessoas na esquerda que se sentem envergonhadas do que está acontecendo, mas por enquanto permanecem em silêncio devido à lealdade incompreendida. O fato é que é muito prejudicial para a esquerda manter vínculos de apoio a Daniel Ortega. Esse é um exercício perigoso porque, mais cedo ou mais tarde, toda a verdade será conhecida. Vídeos e áudios, em algum momento, terão a palavra. Não vale a pena nos queimarmos em defesa do indefensável apenas para manter a ficção de que é um governo de esquerda. O sandinismo é muito mais que o FSLN oficial. Há muito sandinismo na Nicarágua e no exterior e, algum dia –  espero que em breve – será possível a refundação pela mão de pessoas honestas de um projeto político a serviço de um povo sofrido que, por exigir a liberdade, está sendo massacrado.

Um projeto de um país em que as forças da cultura, da música e do folclore, da poesia e de toda a literatura, e da pintura… As forças que inspiraram e se desenvolveram com a revolução e hoje, na sua maioria e não coincidentemente,  estão em oposição aberta ao caudilhismo de Daniel Ortega e ao esoterismo de Rosario Murillo,s vão mais uma vez animar e enriquecer a vida do povo nicaraguense. Mais uma vez os hinos e as bandeiras limpas voltarão.

Há um fato significativo com que quero terminar: foi novembro de 2017, quando o ex-presidente Pepe Mujica estava prestes a chegar a Manágua, do Panamá, para receber a distinção de Doutor honoris causa da Universidade Autônoma da Nicarágua (UNAN) Surpreendentemente Daniel Ortega suspendeu unilateralmente o ato, que não foi mais realizado. Por um tempo eu pensei qual seria o motivo. Agora acho que sei.

Viva Sandino!


Artigo de Iosu Perales, publicado originalmente em vientosur.info. Tradução de Fernanda Lacombe, para Insurgência.

[1] Nome dado aos grupos de oposição armados ao governo da Frente Sandinista de Libertação Nacional(FSLN) nos anos seguintes à derrubada da ditadura de Somoza.

(*) Iousu Perales, (1946), é um cientista político, especialista em relações internacionais, jornalista, escritor e ensaísta espanhol, que teve participação proeminente nos Comitês de Solidariedade Internacionalista às revoluções da Nicarágua e El Salvador nos anos 80 e 90.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
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