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Foto: Wikimedia Commons

Superávit de Milei é ilusionismo contábil: a verdade sobre a economia Argentina

Longe de reconhecer o problema, Milei insiste em garantir que "a inflação está caindo" e se ufana de "choque estabilizador mais ambicioso de nossa história"
Raúl Dellatorre
Página 12
Buenos Aires

Tradução:

Ana Corbisier

Um resultado contábil questionável — o suposto superavit financeiro do trimestre obtido com base em deixar de pagar diversos compromissos do Estado — e um ainda mais fantasioso “triunfo” contra a inflação, que teria possibilitado “uma recuperação dos salários reais que já começou”, foi o cenário montado por Javier Milei para anunciar, em tom de grande jornada, que “o sacrifício heroico” realizado desde que ele chegou ao governo em direção a um destino sonhado “já percorreu mais da metade do caminho”.

O presidente da Nação utilizou o horário nobre noturno da televisão para transmitir uma mensagem de quinze minutos por cadeia nacional, em que assegurou que a primeira etapa do caminho para o crescimento tinha começado. Naquele que foi provavelmente o único trecho do discurso em que expôs uma realidade comprovável, indicou quais são os setores econômicos que estão se expandindo pela “correção de preços relativos” que a política de impacto aplicada impôs: “Mineração, petróleo, gás e campo”. O modelo baseado na exploração de matéria-prima é o objetivo buscado por sua política de ajuste violento e brutal transferência de renda.

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Milei aludiu, em tom apocalíptico — uma vez mais — à herança recebida, com estatísticas forçadas que mostram que recebeu “um déficit consolidado de mais de 15 pontos” entre o Tesouro Nacional e o Banco Central. E garante que o ter revertido no tão pouco tempo em que está no governo é “uma façanha de proporções históricas”. Mas quando exibe as contas, anuncia um superavit fiscal financeiro de 275 bilhões de pesos, equivalente a 0,2 pontos do PIB no primeiro trimestre, que corresponde só às contas do Tesouro.

Ilusionismo contábil

Trata-se, embora Milei não o esclareça, do que contabilmente se conhece como “resultado de caixa“, isto é “o dinheiro que entrou versus o que saiu”, nada mais. Não se indicam, nesta conta, as “dívidas acumuladas”, isto é o que “devia pagar”, mas jogou para a frente. Entre eles, por exemplo, os pagamentos de compensações a geradoras elétricas, que se somam às contas da Cammesa (a administradora do mercado atacadista elétrico) uma dívida de mais de 1.200 milhões de dólares no primeiro trimestre, que somada à dívida com outras empresas do setor de energia (gás, principalmente), elevam a cifra a 2.000 milhões de dólares. Em pesos, significam mais de 1,7 trilhões que, se forem computados como “gasto” do período, superam largamente o saldo positivo financeiro exposto por Milei tão orgulhosamente.

Além disso, se tivesse feito referência ao Banco Central, lhe teria sido difícil evitar que em três meses a entidade monetária aumentou sua dívida em divisas em mais de 10 bilhões de dólares. A balança de pagamentos — as contas com o setor externo — não estão hoje melhores do que em novembro passado, e a economia do país está mais dependente e frágil do que então frente a seu principal credor, o Fundo Monetário Internacional (FMI).

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Vale dizer que aquela acumulação de dívida com empresas da área energética corresponde à decisão do governo de, por um lado, aumentar a tarifa destes setores, mas, por outro, mudar o cronograma de eliminação de subsídios ao consumo energético para evitar uma maior disparada na inflação nos meses de fevereiro, março e abril. Milei não só pretende mostrar os 11% de inflação em março como um resultado exitoso (é seu quarto mês consecutivo de altas expressivas de preços ao consumidor), como teve que manobrar o aumento das tarifas para que não ficasse pior.

Ufanismo esconde realidade

Longe de reconhecer o problema, ontem à noite Milei insistiu em garantir que “a inflação está caindo”, já que “a causa de todos os males é o déficit fiscal, e dissemos que conosco ia acabar, e em consequência também acabaria a emissão monetária e a inflação“. E se ufanou por tê-lo enfrentado, “avançando com o programa de choque estabilizador mais ambicioso de nossa história”.

Não fez a mínima referência o Presidente da Nação em seu discurso a que esta política teve como resultado afundar a economia em uma recessão que, pela velocidade com que se concretizou, é a mais selvagem de nossa história. Nem mesmo uma catástrofe internacional como a pandemia de 2020 teve o impacto do desastre econômico que o ajuste de Milei está provocando. E muito menos, uma distribuição tão desigual dos custos, já que pela magnitude da inflação a partir de dezembro, foram os setores populares os mais diretamente afetados pela demolição de sua capacidade de compra.

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Nesse sentido, Milei voltou a qualificar a inflação como “um roubo”, mas não assumiu que o aumento de 54% dos preços por atacado em dezembro foram a resposta à brutal desvalorização que dispôs depois de 48 horas de sua posse como presidente. Tampouco qualificou esta mega desvalorização como um roubo, apesar de seu impacto direto ser a perda de valor da renda dos setores consumidores na economia local, em favor da renda dos setores exportadores ou com renda financeira em divisas. Justamente, esta medida foi o início e peça chave do choque supostamente estabilizador de Milei.

Milei, “se acha” um político “não político”

O presidente da Nação insiste em jogar sobre “os políticos“, uma categoria da qual se exclui, a responsabilidade de arrastar recorrentemente o país para as crises por “sua obsessão em aumentar os gastos”. Mas seu discurso de segunda-feira (22) expôs outra “obsessão”, talvez com maior impacto nas crises argentinas desde 1955 para cá. E é a dos setores políticos alinhados com as posições mais favoráveis ao capital estrangeiro — políticas capitalistas ortodoxas ou de direita — que reiteram as promessas de que os sacrifícios do presente são apenas transitórios e que desembocarão em um período de expansão e prosperidade. Na história argentina dos últimos setenta anos, o fracasso destas falsas promessas dá muitos mais exemplos que os que possam ser atribuídos às políticas denominadas “populistas“.

No entanto, Milei insistiu em seu discurso com o argumento de que “o custo do ajuste só é pago por aqueles beneficiados pelo modelo empobrecedor”. Mas não entram em seu cálculo de afetados a queda sofrida pela capacidade de compra dos salários em mais de 20% entre novembro de 2023 (anterior a sua chegada ao governo) e fevereiro deste ano, o aumento de 8% na pobreza em poucas semanas, os 30% de queda de atividade nas pequenas e médias indústrias, os 28% de baixa nas vendas varejistas, os dez mil empregos perdidos de forma direta na construção entre dezembro e março, ou os oito mil da indústria metalúrgica no mesmo período, para apresentar só algumas cifras representativas.

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Ao referir-se aos cortes de partidas orçamentárias, o presidente da Nação voltou a fazer uso ontem de uma linguagem maniqueísta (interpretação dualista, “mau ou bom”, sem admitir valorações intermediárias). Indica que reduziu em 87% as obras públicas, um setor que caracteriza-se por ser “vinculado ao festival de corrupção”. E promete que “em nosso modelo, estas obras passarão a ser financiadas pelo setor privado, assim teremos as obras de que nós, argentinos, necessitamos”. Sem explicar como fará para que as mesmas empresas que animavam o festival da corrupção não sejam agora as que escolham as obras e depois endividem o Estado por meio do financiamento que obtenham.

Não é demais recordar o rotundo fracasso do esquema de “iniciativa privada para a obra pública” no governo de Mauricio Macri, assim como o abandono deste mecanismo em vários países europeus (Espanha, Itália e Grã-Bretanha, entre eles) depois de vários escândalos de superfaturamento facilitado por esta transferência de responsabilidade das políticas públicas para o setor privado.

Luis Caputo, ministro da economia, e Santiago Bausili, titular do Banco Central, foram elogiados por Milei como “patriotas” e mentores do “milagre” econômico. Em pé a seu lado como escudeiros do Rei, receberam um forte apoio, justamente quando começam a ser alvo de ataques dos próprios aliados do Presidente pela falta de resultados. Mas o filme apresentado ontem por Milei não reconhece fracassos, e muito menos de seus aliados fiéis.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Raúl Dellatorre

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