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Na Argentina, o governo Macri procurou o FMI ameaçado por uma corrida ao dólar, em um país traumatizado, como o Brasil, pela superinflação. A desvalorização foi, contudo, somente o gatilho. Nesse contexto precisamos compreender que o FMI já voltou à Argentina e tem um plano. A desvalorização acentuada do peso argentino levou o governo a procurar um empréstimo de US$ 30 bilhões.
Valerio Arcary*
O dinheiro é um meio e não um fim. A fortuna torna insolentes os seus favoritos. É a sabedoria popular portuguesa.
Nos anos oitenta se brincava sobre a propaganda enganosa de uma vodca que prometia que não haveria ressaca no dia seguinte, o efeito orlof: ela prometia “eu sou você amanhã”, e apresentava um sujeito sorridente, apesar das barbaridades alcoólicas. Ninguém com juízo acreditava. Adaptada às incríveis peripécias da vida econômica e social debaixo da superinflação, dizia-se que o Brasil imitava a Argentina, só que com atraso.
É bom levarmos mais a sério o efeito orlof. Nenhum país da periferia está blindado diante das turbulências no mercado mundial. E elas estão aumentando porque a fase aberta após a crise de 2008 pela política de relaxamento monetário (“Quantitative Easing”) está se encerrando. A injeção de liquidez para diminuir o impacto da longa recessão vai acabar. A farra do crédito barato, que permitia tomar empréstimos nos países centrais, e financiar a dívida pública nos periféricos, “engordando deitados”, tem prazo de validade esgotado.
Na Argentina o deficit foi de 4.8% do PIB, em 2017, e no Brasil de 0,5%, uma diferença de qualidade. Mas, em contrapartida, na Argentina o deficit fiscal nominal (incluindo pagamento de juros) em percentagem do PIB foi de 6% , e no Brasil de 7,8% do PIB, ou seja, níveis muito próximos[1].
Argumenta-se que o fato do Brasil ter reservas internacionais acima de US$ 380 bilhões para um PIB de US$ 2,02 trilhões, um pouco menos de dois anos de importações no patamar atual, é uma proteção suficiente diante das pressões internacionais[2]. Mas a Argentina também mantém reservas internacionais, relativamente, elevadas de US$ 56.15 bilhões, para um PIB estimado em US$ 771 bilhões, embora, proporcionalmente, menores[3].
O Brasil está menos vulnerável porque sua dívida pública está emitida, em amplíssima maioria, em títulos que remuneram em moeda nacional. E o Brasil se beneficia, também, de estar recebendo um volume de IED que reduz o impacto do deficit no balanço de pagamentos.
Mas seria imprudente ignorar que estes fatores não são blindagem suficiente. Porque a política governa a economia. E as dificuldades da candidatura Alckmin decolar agregam grande incerteza às previsões da continuidade da estratégia de ajuste fiscal gradual iniciada por Temer. Por outro lado, parece crescer no mercado mundial uma percepção de que os prazos para alcançar significativos patamares de superavit fiscal são demasiado longos. A pressão por um ajuste fiscal “sem anestesia”, mesmo que aborte a frágil recuperação econômica, aumenta. A campanha eleitoral pode estimular, portanto, uma desvalorização do real, com todas as sequelas inflacionárias conhecidas.
O balanço de pagamentos inclui a balança comercial, os serviços, transferências de lucros empresariais e remessas de imigrantes. Os saldos negativos devem ser cobertos com investimentos(IED)[4], ou empréstimos do exterior. Um patamar de reservas internacionais que equivalem a pouco menos de dois anos de importações não pode proteger, indefinidamente, a moeda nacional.
O deficit primário[5] foi de R$ 124,401 bilhões, em 2017, o que equivale a 1,9% do PIB. Em 2016 o deficit primário, anterior ao pagamento dos juros da dívida pública foi de R$ 159,473 bilhões. Esta foi a grande façanha de Temer: o ajuste fiscal. Mas tem um custo incalculável: a estagnação econômica se mantém. As previsões de evolução do PIB são mais pessimistas a cada dia. O que teria por consequência que a previsão de entrada de US$ 80 bilhões em IED em 2018 pode não se concretizar, e o deficit no balanço de pagamentos deve aumentar. Parece, portanto, sensato saber que o Brasil não está, realmente, blindado, se considerarmos um dos “calcanhares de aquiles” histórico que tem sido o deficit no balanço de pagamentos, que depende do investimento direto estrangeiro (IED) para fechar.
Nesse contexto precisamos compreender que o FMI já voltou à Argentina e tem um plano. A desvalorização acentuada do peso argentino levou o governo a procurar um empréstimo de US$ 30 bilhões. O governo Macri procurou o FMI ameaçado por uma corrida ao dólar, em um país traumatizado, como o Brasil, pela superinflação. A desvalorização foi, contudo, somente o gatilho.
Os sinais de uma recolonização vinham de antes. Tanto no Brasil como na Argentina avançou a estratégia de ajuste fiscal para estabelecer superávits primários e tranquilizar os credores. Macri obteve vitórias com reformas muito semelhantes, algumas até maiores, que as de Temer, mas, afinal, não foram suficientes.
Quatro fatores parecem ter provocado este giro preventivo de Macri: (a) fuga de capitais estrangeiros; (b) elevação mundial do dólar como expressão de uma inquietação crescente pela guerra comercial de Trump contra a China, o encarecimento do petróleo e a elevação das taxas do FED; (c) insegurança dos investidores com a estratégia de ajuste fiscal gradual, calibrado para uma transição lenta dos déficits orçamentários para superávits primários, enquanto o crescimento do PIB patina; (d) níveis de resistência social mais elevados ao ajuste mais elevados do que o previsto, em um país em que, apesar da força de contenção da burocracia sindical, a combatividade de uma classe trabalhadora jovem e concentrada não pode ser desconsiderada.
Procurar o FMI é uma decisão politicamente grave, se considerarmos o seu papel durante três décadas, entre os anos setenta e dois mil, como instrumento de defesa dos interesses, em primeiro lugar, do imperialismo norte-americano. É assim em todo continente, mas na Argentina em especial. Lembremos que a Argentina foi até ao “default” ou calote, há quinze anos, ou seja, a suspensão dos pagamentos da dívida externa[7]. A crise das dívidas externas, e as sequelas deixadas pelas políticas anti-inflacionárias deixaram uma devastadora memória na consciência das massas populares.
Em janeiro, o FMI tinha referendado a posição do governo de expectativa de queda da taxa anual de inflação para 15% em 2018. No ano passado foi de 24,8% ao ano[8]. Ela ficou muito acima da meta de 17%. A inflação na Argentina tinha chegado a 41% em 2016. Macri tentou aumentos apocalípticos da taxa de juros básica, que servem de piso para todas as outras taxas de empréstimos, para conter as pressões inflacionárias. Mas não foi suficiente. Já estavam em 27% em abril, e atingiram os 40% ao ano na primeira semana de maio.
O crescimento do quociente dívida pública/PIB corresponde hoje a 60% do PIB da Argentina[9]. O quociente dívida/PIB é um indicador que remete à projeção da capacidade futura do Estado de garantir a rolagem dos juros: quando a taxa de juros sobe e, simultaneamente, a arrecadação fiscal cai, porque o país entra em recessão, a confiança dos investidores diminui. Em suma, taxa de juros mais altas, se o PIB desacelera, aumenta a proporção da dívida/PIB, e exige superávits mais elevado para a rolagem dos juros.
As estimativas do Banco Mundial são de alta do PIB de 2,7% em 2018, mas podem estar superestimadas[10]. Ainda prevalece uma grande incerteza. Dez anos depois da crise de 2008 a enorme e inusitada liquidez mundial deve diminuir[11]. Injetada pelo FED norte-americano, seguido pelo Banco Central europeu e japonês, ela aumentou, em velocidade vertiginosa, a dívida pública dos países periféricos. Como já tinha acontecido na década de oitenta, com os contratos com taxas pós-fixadas. Agigantou, também, a dívida dos imperialistas, socializando os custos da destruição de capitais provocada pela crise recessiva. A expectativa é que as taxas de juros no mercado mundial se elevem, em função da recuperação econômica nos EUA, encarecendo o endividamento da periferia, o que pressionará, também, a rolagem da dívida pública do Brasil.
O capitalismo brasileiro está protegido? A maior parte do deficit público brasileiro deriva, em perspectiva histórica, do alto custo da rolagem da dívida pública, em função de taxas de juros que estiveram, em média, entre as mais altas do mundo por muitas décadas. A dívida pública do governo brasileiro já ultrapassou 75% do PIB (Produto Interno Bruto), maior que a da Argentina, e o deficit operacional recorrente do setor público permanece na casa de 5% do PIB.[12]. O ajuste fiscal mais duro ainda está por fazer. A estratégia gradualista que veio sendo aplicada tanto em Buenos Aires por Macri, como em Brasília por Temer não corresponde ainda, plenamente, às expectativas e aos interesses dos investidores estrangeiros. Eles querem uma política de choque muito mais dura. É bom sabermos contra quem lutamos.
Notas e referências:
[1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/entenda-como-a-argentina-chegou-a-crise-atual.shtml
Consulta em 17/05/2018
[2] Em 2017, o PIB (Produto Interno Bruto) cresceu 1,0% em relação a 2016, após duas quedas consecutivas, ambas de 3,5%, em 2015 e 2016. O PIB totalizou R$ 6,6 trilhões em 2017.A taxa de investimento em 2017 foi de 15,6% do PIB, abaixo do observado no ano anterior (16,1%). A taxa de poupança foi de 14,8% em 2017 (ante 13,9% no ano anterior).
Consulta em 17/05/2018
[3] O PIB nominal não leva em consideração as diferenças no custo de vida em diferentes países, e os resultados podem variar muito de um ano para outro com base em flutuações nas taxas de câmbio e valor da moeda do país.
Consulta em 17/05/2018.
[4] O World Investment Report 2017 divulgado pela Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) é uma referência para o tema do IED. Os investimentos diretos estrangeiros (IED) no Brasil estiveram em franca expansão durante 2009-2011, mas vêm reduzindo desde então. Depois de terem atingido 64 bilhões de dólares em 2013, os fluxos de IED para o Brasil baixaram para 62 bilhões de dólares em 2014 e para 56 bilhões em 2015 – um decréscimo de 23% em relação ao ano anterior. Em 2016, os investimentos continuaram a cair, alcançando os 50 bilhões de dólares. No entanto, o Brasil continua sendo o primeiro destino de IED da América Latina e o oitavo destino no cenário mundial. O país é atualmente o quarto investidor entre os países emergentes e o primeiro da América Latina. https://pt.portal.santandertrade.com/internacionalize-se/brasil/fluxos-de-ied-2
Consulta em 17/05/2018.
[5] O déficit primário é o resultado negativo nas contas públicas, desconsiderando o pagamento de juros da dívida pública.
[6] Os investimentos estrangeiros diretos (IED) chegaram, no ano passado, aos 70,332 bilhões de dólares. O Brasil registrou, em 2017, um déficit de conta corrente de 9,8 bilhões de dólares, o menor em dez anos, frente a um rombo de 23,546 bilhões em 2016. Em 2014, em meio à crise, o déficit chegou a 104,181 bilhões.
https://economia.uol.com.br/noticias/afp/2018/01/26/brasil-registrou-menor-deficit-da-conta-corrente-em-10-anos-em-2017.htm Consulta em 17/05/2018.
[7] A desvalorização abrupta do peso tornou impagável a dívida pública (externa e interna) do país, que era em boa parte corrigida pelo dólar. Sem reservas internacionais para honrar os compromissos, a Argentina viu-se obrigada a deixar de pagar os juros e a dívida principal dos papéis que havia emitido. Entre 2005 e 2010, a Argentina renegociou a dívida e apresentou diversos planos de reestruturação. Dos credores internacionais, 93% aceitaram a proposta do governo argentino para quitar os débitos de forma parcelada com desconto de 60% a 65% no valor da dívida. No entanto, 7% não aceitaram o plano e decidiram contestar o acordo na Justiça norte-americana, que tem jurisdição sobre os títulos emitidos na Bolsa de Nova York. Consulta em 17/05/2018.
[8] https://economia.uol.com.br/noticias/afp/2018/01/11/inflacao-da-argentina-foi-de-248-em-2017.htm Consulta em 16/05/2018.
[9] O ministro da Fazenda, Nicolás Dujovne, ratificou que serão mantidas as projeções de redução do déficit fiscal. O ano passado fechou com uma diferença equivalente a 4,2% do PIB. O objetivo é que diminua em 2018 até 3,2%. Consulta em 16/05/2018.
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/01/internacional/1514832832_626904.html
[10] O Banco Mundial divulgou o relatório “Ajuste Fiscal na América Latina e Caribe: o relatório faz a ressalva de que após vários anos de baixo crescimento, a situação fiscal de muitos desses países é frágil: a dívida pública da região como um todo representa 57,6% do Produto Interno Bruno (PIB) latino-americano e quase todos os países da região fecharam 2017 com déficits fiscais. O documento afirma que caso o Brasil conseguisse diminuir sua relação dívida pública sobre o PIB do número atual de 74% para 61,5%, poderia recuperar o grau de investimento, classificação de risco por agências estrangeira, em até dez anos. Isso se faria por meio de sucessivos superávits primários entre 2018 e 2028, começando com 7,5% neste ano e subindo para 5,8% a partir do ano que vem. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-04/america-latina-volta-crescer-liderada-por-brasil-e-argentina Consulta em 16/05/2018.
[11] O Federal Reserve (Fed, o Banco Central americano) decidiu elevar nesta quarta-feira (21) a taxa de juros em sua primeira reunião sob o comando de Jerome Powell. O juro básico na maior economia do mundo subiu para uma faixa entre 1,50% a 1,75%, um aumento de 0,25 ponto percentual. Consulta em 16/05/2018.
https://g1.globo.com/economia/noticia/fed-eleva-taxas-de-juros-nos-eua-pela-1-vez-em-2018.ghtml
[12] A dívida bruta do governo geral – governo federal, INSS, governos estaduais e municipais – saiu de R$ 4,9 trilhões em janeiro para R$ 4,957 trilhões um mês depois. Em relação ao PIB, a dívida subiu de 74,5% para 75,1%, novo recorde da série iniciada em2006. Consulta em 16/05/2018.
http://www.valor.com.br/brasil/5414633/divida-publica-bruta-vai-751-do-pib-em-fevereiro-novo-recorde