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No Brasil, morre uma criança por hora: ECA é referência, mas precisa ser aplicado

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Ariel de Castro Alves, coordenador da Comissão da Infância e Juventude do Condepe-SP, comenta os 28 anos do Estatuto

Lu Sudré, da Brasil de Fato

Considerado modelo de lei para a garantia de direitos na infância e juventude, o Estatuto da Criança e do Adolescente, mais conhecido como ECA, completa 28 anos neste mês de julho. Responsável por assegurar juridicamente a proteção integral das crianças e adolescentes brasileiras, o Estatuto promoveu avanços fundamentais na defesa dos direitos humanos para as pessoas até 18 anos incompletos, mas, ainda há muito o que melhorar.

Esta é a avaliação de Ariel de Castro Alves, advogado e coordenador da Comissão da Infância e Juventude do Condepe-SP (Conselho Estadual de Direitos Humanos), que, em entrevista ao Brasil de Fato, comentou os 28 anos do Estatuto, destacou seus avanços históricos e reforçou a necessidade da aplicação das leis.

Estatuto da Criança e do Adolescente é considerado modelo de lei para a garantia de direitos na infância e juventude mundialmente / Marcelo Casall/Agência Brasil

“Existe uma grande diferença entre a lei e a prática. No Brasil, isso infelizmente é comum. Nós temos excelentes leis para proteger crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, mulheres, mas essas leis não são efetivadas até porque o próprio Judiciário não dá prioridade para essas questões”, criticou Alves.

“Nós não vemos ainda a prioridade absoluta prevista no Estatuto. Isso é uma grande ficção. No geral, as crianças e adolescentes do Brasil estão bastante desprotegidas”, enfatizou o especialista.

Confira entrevista na íntegra.

Brasil de Fato: Como foi o processo de conquista e criação do ECA?

Ariel de Castro Alves: O Estatuto da Criança e do Adolescente é fruto de uma luta social. Fruto da atuação de várias entidades de direitos humanos através do Fórum Nacional dos Direitos da Criança e dos Adolescentes, com a grande participação de entidades na época como a Pastoral do Menor e o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua.  O processo do Estatuto se deu a partir de diversas audiências públicas, discussões que reuniram juristas, pedagogos, filósofos, cientistas sociais, educadores, psicólogos, setores ligados ao serviço social… Foi uma atuação multidisciplinar.

Tivemos, primeiro, a conquista do artigo 227 na Constituição de 1988, que é o artigo que trata dos Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente, da doutrina da proteção integral, até mesmo com base do que a ONU já discutia na época e que gerou a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança em 1989. O Brasil se antecipou colocando em sua Constituição a doutrina que a ONU viria a adotar. Depois, o artigo 227 foi regulamentado através da Lei 8069, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Qual a importância do 28º ano do Estatuto da Criança e do Adolescente? Qual balanço pode ser feito até aqui?

O ECA rompeu com um passado histórico legislativo, em que crianças e adolescentes eram tratados como menores que estavam em situação irregular conforme a lei, que não eram reconhecido como sujeitos de direito e sim como objetos de intervenção dos adultos e do Estado. Nós tivemos grande mudanças por meio do Estatuto que estabeleceu principalmente políticas públicas para prevenir que crianças e adolescentes estejam em situação de risco ou se envolvam com atos infracionais.

Nesses 28 anos, podemos ver que tivemos vários avanços como a diminuição da mortalidade infantil. A média brasileira caiu para algo em torno de 12 mortes para cada mil crianças que nascem. Infelizmente, agora no Governo Temer, a mortalidade infantil voltou a aumentar para 15/16 mortes para cada mil crianças, mas de qualquer forma nós tivemos uma redução. Antes do ECA, chegávamos a ter uma média nacional de 50/60 mortes para cada mil crianças nascidas, eram índices estarrecedores. O grande problema é que as crianças não estão morrendo ao nascer mas acabam morrendo em sua adolescência. Todos os dias, 29 crianças e adolescentes estão sendo assassinadas conforme pesquisas recentes feitas pela Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância). São principalmente os adolescentes que estão sendo mortos por criminosos ou pela polícia.

Tivemos como avanço também a diminuição do trabalho infantil. Tínhamos mais de oito milhões de crianças exploradas antes do Estatuto, hoje os últimos números são de 2,7 milhões de crianças e adolescentes ainda exploradas no trabalho infantil mas a redução foi bastante significativa. Infelizmente também agora, no Governo Temer, as ações de fiscalização estão estagnadas, não há investimento no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. (PETI). Enormes retrocessos estão acontecendo.

Pode-se dizer que partes do Estatuto não têm sido implementadas? 

Existe uma grande diferença entre a lei e a prática. No Brasil, isso infelizmente é comum. Nós temos excelentes leis para proteger crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, mulheres, mas essas leis não são efetivadas até porque o próprio Judiciário não dá prioridade também pra essas questões. No país todo, temos apenas 12% das Comarcas com varas especializadas e exclusivas da infância e juventude, varas que contam com equipes técnicas multidisciplinares.

Então, nós não vemos ainda essa prioridade absoluta prevista no Estatuto, que inclusive trata da necessidade de destinação privilegiada de recurso para os programas de proteção de crianças e adolescentes. Isso é uma grande ficção. No geral, as crianças e adolescentes do Brasil estão bastante desprotegidas.

Há um discurso conservador crescente na sociedade. A questão da diminuição da maioridade penal, por exemplo, é uma das principais bandeiras desse discurso. É uma ameaça?

Sim. A questão da redução da maioridade que sempre surge principalmente em épocas pré-eleitorais demonstram uma enorme demagogia, um enorme oportunismo, até porque se analisarmos a reincidência criminal, veremos que a reincidência no sistema penitenciário no Brasil é muito maior que a reincidência em unidades de internação para adolescentes.

Temos um sistema prisional superlotado, dominado pelo crime organizado, onde os presos são mantidos em condições cruéis, desumanas e degradantes, com uma reincidência de 70%. Enquanto a reincidência em unidades de internação para adolescentes – que ainda precisam melhorar bastante – é de 20% em São Paulo, por exemplo. Isso mostra que existe muito mais condição de recuperação na aplicação das medidas socioeducativas do que colocando esses jovens em um sistema prisional completamente falido.

Ao mesmo tempo que vemos, em São Paulo, o fechamento de escolas, há o aumento de unidades de internação e do número de presídios. Enquanto uma criança custa R$ 600 por mês pro Estado nas escolas, temos adolescentes em unidades de internação da Fundação Casa custando R$ 10 mil por mês. Isso mostra o quanto é equivocada a repressão.

Segundo dados recentes da UNESCO, cerca de 263 milhões de crianças e adolescentes estão fora de escola. O que esses dados demonstram sobre a situação da educação para essa população?

Nós sabemos e devemos considerar como avanço, que a partir do ECA, houve a ampliação do acesso de crianças e adolescentes à educação, principalmente ao ensino fundamental. Porém, nós temos dificuldade de acesso no ensino médio, que é de baixa qualidade, executado pelos estados, como no caso aqui de São Paulo, e dificuldade no ensino infantil, principalmente às creches na idade de 0 a 3 anos, onde só 30% das crianças conseguem estar nas creches. É fundamental o investimento na educação de qualidade, o que não tem acontecido em São Paulo e não tem acontecido no Brasil.

Então, apesar das boas proposições do ECA, há uma falha do Estado na prática?

Sim. É uma lei considerada uma das melhores na área da infância e juventude no âmbito internacional, inclusive pela própria ONU. É uma lei que tem, principalmente, seu enfoque voltado para a prevenção, para políticas públicas básicas como saúde, educação, assistência social e alimentação, para que todas as crianças e adolescentes tenham condições de se desenvolverem adequadamente.  Apesar dessas previsões, a lei ainda não tem sido priorizada pelo Poder Público, pelas prefeituras, pelos estados, pelo Governo Federal.

Edição: Juca Guimarães


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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