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Dia da Consciência Negra: superar racismo exige esforço contínuo de toda sociedade

Somente a partir de ações efetivas, e estruturais, teremos as reais condições para a cura dessa ferida nacional.
Verbena Córdula
Diálogos do Sul
Salvador (BA)

Tradução:

O racismo é uma mazela profundamente enraizada na sociedade brasileira. Desde que os invasores europeus trouxeram milhões de pessoas africanas escravizadas para trabalhar nas terras coloniais, a história do povo negro tem sido marcada por discriminação racial, exclusões e desigualdades. O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, tem um papel simbólico fundamental na luta contra o racismo e na promoção da igualdade racial no país.

Instituído no Brasil como uma data para lembrar o legado da luta contra o racismo e a discriminação, bem como para celebrar a cultura afro-brasileira, o Dia da Consciência Negra marca a morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares e símbolo da resistência negra no Brasil. A história de Zumbi é um capítulo fundamental na luta pela liberdade e igualdade. Ele nasceu em Palmares, por volta de 1655, uma comunidade nordestina, formada primordialmente por pessoas escravizadas fugitivas e seus descendentes.  

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O Quilombo dos Palmares, localizado na região onde se localiza atualmente o estado de Alagoas, era um dos maiores e mais duradouros refúgios de pessoas escravizadas fugitivas do Brasil Colônia. Estima-se que abrigou até 20 mil pessoas em seu auge. Os habitantes da comunidade organizaram-se em uma sociedade autônoma, e estabeleceram uma estrutura política, econômica e social, com suas próprias leis e lideranças. Zumbi tornou-se o líder após a morte de Ganga Zumba, seu tio, que havia assinado um acordo com as autoridades coloniais para preservar a paz. No entanto, Zumbi rejeitou esse acordo e continuou a resistência contra a escravidão, liderando os/as quilombolas em uma luta contínua contra as tentativas das forças coloniais de destruir Palmares.

Somente a partir de ações efetivas, e estruturais, teremos as reais condições para a cura dessa ferida nacional.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Ana Paula de Oliveira, mãe de Johnatha de Oliveira, morto em Manguinhos em 2014, protesta contra a violência policial (RJ, 24/08/2023)




Suposta “democracia racial”

A resistência de Zumbi, e de todos e todas as pessoas aquilombadas em Palmares, durou muitos anos, e tornou-se um símbolo de resistência e de luta pela liberdade. Zumbi e o povo que habitava Palmares enfrentaram inúmeras batalhas contra os soldados portugueses e seus aliados, mas, em 1694, após uma longa e cruel campanha militar, as forças coloniais conseguiram invadir e destruir a comunidade. Zumbi foi morto em combate no dia 20 de novembro de 1695. Sua cabeça foi decepada e enviada para Recife, onde foi exibida como um exemplo para amedrontar aqueles e aquelas que ousassem resistir contra a escravidão. 

Entretanto, a morte de Zumbi não significou o fim da luta pela liberdade. Pelo contrário. Seu legado perdura. Ele se tornou um símbolo contra a opressão racial no Brasil. Portanto, o Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, marca a data de sua morte. E é um momento que deve servir para a reflexão sobre a importância da igualdade e da justiça racial. Porque, infelizmente, o racismo ainda persiste, de modo muito cruel nas entranhas da sociedade brasileira, embora tenhamos muitos discursos que buscam caracterizar o nosso país como um lugar onde reina uma suposta “democracia racial”.

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Embora diverso racial e culturalmente, o Estado brasileiro, assim como boa parte da sociedade, não valorizam essa diversidade; e a escravidão, que durou mais de 300 anos em nosso território, deixou feridas profundas, que até o momento não foram fechadas e cicatrizadas. Mesmo após a abolição ocorrida tardiamente, em 1888, as condições de vida da população negra continuam a ser marcadas pela discriminação, pela exclusão, pela pobreza, pela desumanização. Diante disso, a nossa luta não para. É contínua e desafiadora. A desigualdade racial persiste em todos os âmbitos: emprego, renda, educação, moradia, saúde, lazer, entre outros. Isso é possível ver através de várias pesquisas.


O racismo é um problema! 

Ao tomar como base a linha de pobreza monetária proposta pelo Banco Mundial, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constatou que, em 2021, a proporção de pessoas pobres no Brasil era de 18,6% entre os brancos, praticamente o dobro entre os pretos (34,5%) e entre os pardos (38,4%). No mesmo ano, a taxa de desemprego foi de 11,3% para a população branca, enquanto para a população preta foi de 16,5% e 16,2% para a população parda. Além disso, houve a constatação de que as pessoas pretas e pardas enfrentam maior insegurança de posse da moradia: um percentual de 20,8% das pessoas pardas e de 19,7% das pessoas pretas residentes em domicílios próprios não tinham documentação da propriedade, enquanto a proporção entre as pessoas brancas era praticamente a metade (10,1%).

No quesito emprego e renda, o IBGE também constatou naquele mesmo ano que a taxa de informalidade da população ocupada alcançava um total de 40,1%, e que, destes, 32,7% atingia os brancos, 43,4% os pretos e 47,0% os pardos.

Mostrou também que o rendimento médio de trabalhadores brancos, ou seja, R$ 3.099 (três mil e noventa e nove reais), superava muito o de pretos, cujo valor era de R$ 1.764 (um mil, setecentos e sessenta e quatro reais), e o de pardos, que recebiam uma média de R$ 1.814 (um mil, oitocentos e catorze reais). O instituto apontou, ainda, que mais da metade da população trabalhadora do Brasil (53,8%) era formada por pretos ou pardos, mas que, juntos, esses dois grupos ocupavam apenas 29,5% dos cargos gerenciais, enquanto os trabalhadores brancos ocupavam 69,0% deles. 

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No quesito educação, a situação não é diferente. Estudo realizado em 2020 pelo Instituto iDados, a partir da comparação entre o número de estudantes universitários negros e o número de jovens negros nas empresas, constatou que 37,9% dos homens e 33,2% das mulheres negras com diploma de ensino superior trabalham em cargos que não exigem o diploma.


A “tese” do “mi mi mi”

E para quem ousa pensar (e muitas vezes até afirmar) que “racismo no Brasil é mi mi mi”, as desigualdades e discriminações são ainda muito mais chocantes quando observamos os números relativos ao sistema prisional. Conforme o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (considerando dados coletados em 2022), de um total de 832.295 mil pessoas presas no País, 68,2% são negras. Ou seja: as pessoas pretas e pardas constituem quase 70% por cento da população dos presídios brasileiros!

Integrantes do movimento negro protestam contra a violência policial em caminhada na região da Candelária, centro da cidade. (Rio de Janeiro/RJ, 24/08/2023 – Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

É chocante constatar que, apesar de todos esses números desumanizadores, na percepção da sociedade brasileira o racismo não aparece como um problema nacional. Pesquisa realizada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) constatou que os cinco maiores problemas do País, segundo as pessoas ouvidas, são saúde (43%), educação (34%), desemprego (21%), desigualdade social (12%) e inflação (9%). De fato, todos esses problemas são reais, e afetam majoritariamente à população negra.

Pelo Dia Nacional da Consciência Negra

No entanto, o racismo não aparece e, portanto, no imaginário social, não é considerado um problema nacional. De acordo com os dados coletados nessa pesquisa, além dos cinco problemas supracitados, apareceram segurança pública (9%), situação econômica (6%), corrupção (4%), impostos (3%), moradia (2%) e programas sociais (2%), outros, não especificados (9%) e não responderam ou não souberam responder (11%).


Ações efetivas de combate

Esses dados apontados pela CNI foram coletados através de um estudo denominado Agenda de Prioridade, realizado entre 16 e 21 de agosto de 2022, pelo Instituto FSB Pesquisa, que entrevistou face a face 2.030 pessoas, com idade a partir dos 16 anos, nas 27 Unidades da Federação, com margem de erro total estimada em 2 pontos percentuais. A amostra foi composta considerando sexo, idade, região e escolaridade. Perguntou-se quais deveriam ser as prioridades do presidente eleito.

Os resultados da pesquisa da CNI mostram, ainda, como é importante compreendermos que o racismo nem sempre é facilmente perceptível. Se por um lado ele se apresenta em caráter manifesto, aquele que se refere a percepções e práticas explícitas que podem ser facilmente reconhecidas por quem as praticada e por quem são por elas vitimados; por outro há sua manifestação latente, estruturada no senso comum, naturalizada e que funciona predominantemente a partir do inconsciente coletivo. Esse tipo de racismo é muito mais efetivo, pois opera silenciosamente e, por isso mesmo, gera efeitos na manutenção de desigualdades estruturais entre indivíduos, grupos e mesmo populações. 

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Assim, o Dia da Consciência Negra serve, portanto, como uma espécie de “lembrete” de que a superação do racismo exige esforços contínuos em todos os níveis da sociedade. E que se trata de uma oportunidade para refletirmos (não apenas nós, pessoas pretas e perdas, mas toda a sociedade) sobre respeito, inclusão, valorização da diversidade racial, humanização. Mais do que isso: para que a partir dessa reflexão exijamos políticas públicas, seja no campo educacional, jurídico, econômico e político, a fim de buscarmos superar essa mazela que atinge de forma desumanizadora milhões de pessoas em nosso país.

O racismo é um problema enraizado na nossa história. E o Dia da Consciência Negra representa apenas um passo simbólico na direção da conscientização, da luta contra o preconceito racial e da promoção da igualdade. É preciso termos a consciência de que somente a partir de ações efetivas, e estruturais, teremos as reais condições para a cura dessa ferida nacional.

Verbena Córdula | Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporâneo pela Universidad Complutense de Madrid. Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, Bahia.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Verbena Córdula Graduada em História, Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporânea pela Universidad Complutense de Madrid e Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA.

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