Pesquisar
Pesquisar

Minhas lembranças de Juan Gelman

Beatriz Bissio

Tradução:

Beatriz Bissio*

Beatriz-Bissi.-Perfil-DiálogosConheci Juan Gelman em Buenos Aires, em 1974, através de Pablo Piacentini, que já era um jornalista atuante e conhecido, em parte porque havia sido porta-voz do presidente Héctor Cámpora, no ano anterior. Pablo Piacentini , alguns meses depois fundaria com Neiva Moreira, Julia Constenla e comigo a revista “Tercer Mundo”, mais conhecida pelo nome que adotou quando nos vimos obrigados a relançá-la no México, em 1976, “Cuadernos del Tercer Mundo”.

Juan Gelman era naquele momento o secretário de redação da revista Crisis (1973-1974), dirigida por Eduardo Galeano e chefe de redação do diário Noticias (1974), muito próximo da linha política dos Montoneros. No diário Noticias trabalhava Zelmar Michelini, conhecido político uruguaio, fundador da Frente Ampla, que estava exilado na Argentina como milhares de compatriotas. Michelini seria assassinado dois anos mais tarde, em 1976, no marco do Plano Condor, junto com aquele que havia sido Presidente do Parlamento uruguaio, o deputado do Partido Nacional Héctor Gutiérrez Ruiz, e vários militantes do movimento Tupamaro.

Juan Gelman
Juan Gelman

Michelini foi o intermediário de um convite de Pablo Piacentini a Neiva Moreira para que começasse a colaborar com a seção internacional di diário Noticias, de que Pablo era o editor. Neiva Moreira havia estado alguns meses antes na África e havia participado da cobertura da Conferência do Movimento de Países Não Alinhados, em Argel. Trazia informações muito relevantes sobre os avanços das lutas dos movimentos de libertação africanos, em particular da África lusófona, e sobre a resistência ao apartheid na África do Sul, fatos a respeito dos quais praticamente nada se sabia naquele momento na América Latina, e que suscitaram o interesse de Piacentini.

Quando Neiva Moreira ia entregar suas notas a Pablo, eu o acompanhava. As visitas à redação de Noticias foram gestando uma profunda amizade com Piacentini – que perdura até hoje – e também permitiam que conversássemos com Michelini sobre a situação no Uruguai, em um momento em que era muito difícil ter notícias, dada a extrema repressão aos meios de comunicação e a qualquer tipo de atividade política que imperava em nosso país.
Durante essas visitas tive a oportunidade de conhecer Juan Gelman, uma figura humana cálida e inesquecível, que como toda a equipe da redação vivia com paixão o desafio de produzir um diário comprometido com uma Argentina e uma América Latina livre de injustiças.

Sem havê-lo reencontrado desde aqueles momentos, à distância, acompanhei todo o seu drama com o seqüestro de sua filha e o assassinato de seu filho e sua nora, e também sua incansável busca da verdade dos fatos e da identidade suprimida de sua neta, Macarena.

A vida lhe permitiu pelo menos recuperar esse afeto, quando com a ajuda do governo da Frente Ampla, Gelman conseguiu identificar em Montevidéu sua neta Macarena que nasceu no Uruguai onde sua mãe, Maria Cláudia, também vítima dos esquadrões da morte, esteve seqüestrada.

Com estas lembranças retiradas da memória de anos muito duros, rendo minha homenagem a esse homem que foi um poeta e lutador até o fim.

* Beatriz Bissio é Professora do Departamento de Ciência Política Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Presidenta do Espaço Cultural Diálogos do Sul


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Beatriz Bissio

LEIA tAMBÉM

Índios do Xingu forçados a trocar a pesca pela agricultura
Quando sempre temos que usar o hífen
Foi embora nosso Pablo Piacentini
Chaves da evolução do Direito do Trabalho II