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‘Feminicídio político’: quem carrega a bandeira de Marielle um ano após sua morte?

"A prisão daqueles que puxaram o gatilho e executaram Marielle Franco é um avanço demorado e tardio, mas importante. Agora, as investigações precisam avançar e revelar quem encomendou", diz a deputada Dani Monteiro
Armando Nova
Sputnik Brasil
Rio de Janeiro (RJ)

Tradução:

TEST

Um ano após o assassinato da vereadora Marielle Franco, três ex-assessoras da parlamentar dão continuidade ao seu legado na política, lutando pela mesma bandeira defendida por sua precursora, a dos direitos humanos. Mas quem são essas mulheres? Com as suspeitas de motivação política no caso, elas não têm medo de colocarem suas vidas em risco?

Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, foram mortos em uma emboscada, no trânsito, na noite de 14 de março de 2018, na região central do Rio de Janeiro, bairro do Estácio, gerando imediata comoção nacional e internacional. Após muitas cobranças por respostas, no final de janeiro, cinco suspeitos de envolvimento no crime foram detidos, mas, apenas nesta semana, foram colocados atrás das grades os acusados de executarem efetivamente a parlamentar e seu condutor. 

A prisão do policial militar reformado Ronnie Lessa e do ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz, na última terça-feira, embora considerada tardia, foi bem recebida por amigos, parentes e admiradores das vítimas. Mas, segundo boa parte dos entes próximos e da opinião pública em geral, os principais questionamentos em relação ao caso ainda precisam ser respondidos: quem mandou matar e por quê?

“A prisão daqueles que puxaram o gatilho e executaram Marielle Franco é um avanço demorado e tardio, mas importante. Agora, as investigações precisam avançar e revelar quem encomendou, num atentado à democracia, o assassinato de uma vereadora legitimamente eleita. Quem mandou matar e por que mandou matar são perguntas que seguem sem respostas. É justo que a família, os amigos e companheiros de luta de Marielle tenham uma explicação da Justiça. É uma forma de seguir em frente apesar da dor. Mas, fundamentalmente, o Brasil precisa entender que crimes dessa natureza não podem continuar a acontecer”, disse em entrevista à Sputnik Brasil a deputada estadual Dani Monteiro, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), uma das ex-assessoras de Marielle eleitas para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) no ano passado. 

“O sentimento é de consternação, pela confirmação da complexidade que envolveu esse crime essencialmente político. Só podemos esperar que os nossos adversários políticos compreendam que o esclarecimento dos mandantes da execução é de interesse de toda a sociedade brasileira. Não se trata de bandeira de um partido político meramente. Todos temos de cobrar que as investigações prossigam até que se chegue aos nomes que planejaram a morte.”

"A prisão daqueles que puxaram o gatilho e executaram Marielle Franco é um avanço demorado e tardio, mas importante. Agora, as investigações precisam avançar e revelar quem encomendou", diz a deputada Dani Monteiro

Sputnik / Paula Magalhães
Homenagem realizada pela escola de samba Mangueira, campeã do desfile das Escolas Especiais do Rio de Janeiro

Negra, feminista, defensora dos direitos humanos, militante LGBT, entre outras coisas, Dani sentiu na pele os riscos e as responsabilidades da sua função ao ser ameaçada em seu primeiro dia na Alerj, algo que ela diz não assustar. Segundo a deputada, assim como a Câmara de Vereadores do Rio, a Assembleia Legislativa também é, historicamente, um espaço de homens brancos e abastados. No entanto, assim como Marielle, ela leva “um relato inquestionável, que é o do chão da favela”, para dentro desse local tão pouco acostumado com a presença de mulheres negras.

“Essa experiência vale muito. Eu sei do que mulheres e jovens ou crianças e velhos negros e favelados precisam porque eu vivi e vivo a realidade que é precisar e depender dos serviços públicos. Estudei toda a minha vida em escola pública, sou cotista na universidade, se adoeço vou a hospital público. Minha experiência e trajetória dão representatividade a milhares de jovens negros e favelados que precisam de políticas efetivas em sua defesa.”

Além das deputadas eleitas, diversas mulheres ampliaram a sua luta pelos direitos humanos após a morte de Marielle no último ano, apesar dos desafios, das repressões e das ameaças. Na avaliação de Dani Monteiro, o que tem levado tantas mulheres a lutar pelo continuidade do legado da vereadora assassinada é o entendimento tanto da mensagem deixada por ela como também do significado de sua morte. Vocês que querem legislar sobre nossos corpos. Vocês que negam nossa resistência. Vocês que subestimam nossa luta.

“O assassinato de Marielle é a representação de um estado que historicamente silenciou parte de seu povo. Foi um atentado político, pois Marielle era uma vereadora eleita e suas pautas tinham como alvo muitos dos que contribuem para promover e manter as desigualdades. Não foi outra coisa senão um assassinato brutal e uma demonstração de um estado que genocida sua população, ou a parte dela que tem pele negra. Cobrar quem mandeu matar Marielle é não aceitar a impunidade a que são submetidos crimes contra negros e negras. Nossas vidas também importam”, desabafou a parlamentar. “Marielle entendia o outro como próximo e como igual. Cuidar, para ela, era essencial. Foi uma vereadora que agregou diversas pautas e deixou inspiração tanto na macro política como no dia a dia de quem esteve ao lado dela. Nós, que estávamos ao lado dela, entendemos, dolorosamente, que a manutenção dos direitos conquistados depende constantemente da nossa ação política. Por isso estamos aqui. Marielle impulsionou todas nós.”

De acordo com Mônica Francisco, outra ex-assessora de Marielle que hoje representa o PSOL na Alerj, as bandeiras levantadas por ela, suas colegas e a vereadora são inerentes à sua própria trajetória de vida, enquanto mulheres negras que vêm das chamadas camadas populares. Para ela, a execução de uma parlamentar, no centro da capital fluminense, no auge de uma intervenção federal na segurança pública, colocou em xeque o próprio Estado democrático de direito.

“Estar nesse lugar, nesse contexto, nesse momento, é, simbolicamente, a defesa também dos espaços democráticos e do Estado democrático de direito”, declarou ela à Sputnik

Mônica acredita que a luta por pautas como a dos direitos humanos na política exige lidar com uma dura realidade enfrentada pelo Rio de Janeiro, estado no qual, só em 2017, mais de 70 ativistas foram mortos por conta de sua atuação, e pelo Brasil, citado por várias organizações internacionais como um país perigoso para esse tipo de ativismo. 

No caso do Rio especificamente, a deputada destaca que o poder das milícias é tão grande que é possível falar em “estado miliciano”, dado que esses grupos armados ilegais seriam “parte componente da engrenagem de atuação do estado”, grupos que “foram vistos, durante muito tempo, com muito bons olhos por parte da gestão pública”. Segundo ela, a atividade política nessas condições demanda muito cuidado, mas não deve deixar de ser exercida.

“Caminhar em um terreno extremamente arenoso requer de nós extrema prudência. Mas, também, não podemos deixar que o medo e a insegurança nos paralisem na ação e na denúncia, nas ações pelas quais nós fomos eleitos para exercer e atuar.”

Primeira mulher negra a presidir a Comissão de Direitos Humanos da Alerj, Renata Souza atua há vários anos na defesa desses direitos e foi chefe de gabinete de Marielle Franco. As duas se tornaram companheiras de luta em 2000, quando fizeram pré-vestibular comunitário juntas. Trabalhou também, por um longo período, ao lado do então deputado estadual Marcelo Freixo, hoje na câmara baixa do Congresso Nacional. Nas últimas eleições, foi eleita deputada estadual pelo PSOL com 63.937 votos, sendo a mais votada da esquerda. 

Em entrevista à Sputnik Brasil, Renata descreveu a morte de Marielle como um “feminicídio político”, uma vez que a parlamentar teria sido assassinada por sua atuação política e por incomodar os “podres poderes”. Segundo ela, as pautas defendidas pela vereadora são fundamentais, hoje, “para a vida das mulheres, das mulheres negras e da população LGBT”. E, devido ao desenrolar dos acontecimentos desde o fatídico 14 de março de 2018, não são só as pessoas que eram próximas a Marielle que deveriam temer neste momento. 

“Toda a sociedade deve temer. Porque se somos o país que mais mata defensores de direitos humanos, essas mortes são políticas na essência. Então, a gente precisa trazer esse debate à tona”, disse ela. “E é claro que estar num lugar como esse, que, historicamente, não tem mulheres nem mulheres negras, principalmente pobres e da favela, é realmente não só honrar um legado que a Marielle nos deixou, mas colocar luz sobre a necessidade de ocupação desses espaços”, acrescentou, explicando que esse sempre foi um desejo da vereadora assassinada.

De acordo com Souza, “homens brancos que se perpetuaram nos parlamentos” veem mulheres como ela, Mônica Francisco, Dani Monteiro e Marielle Franco como verdadeiras ameaças. Por esse motivo, “a tentativa de intimidação é constante”. No entanto, ela diz entender a importância da presença de mulheres como elas em posições de destaque na política fluminense e nacional.

“Para a luta das mulheres, para o feminismo negro, para a luta de uma juventude negra também é essencial que estejamos nesse lugar e também façamos com que esse lugar seja reflexo das lutas sociais, e não o contrário.”


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Armando Nova

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