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Toggle“Deus me livre!”, “claro que não faz aborto”, “aborto é crime e aqui não defendemos direitos humanos para bandido”. Essas frases, pronunciadas por profissionais da saúde de hospitais de referência para o atendimento de casos de aborto legal no Brasil, demonstram a atual situação de descumprimento da legislação que permite a interrupção da gravidez em três casos: estupro, risco de morte da gestante e anencefalia fetal. O julgamento moral e a falta de informação dos profissionais são as principais razões para que o serviço não seja ofertado em mais da metade dos hospitais de referência no país, segundo relatório inédito publicado pela Artigo 19, organização não-governamental de direitos humanos que atua em nove países em defesa do direito à liberdade de expressão e de acesso à informação.
Por lei, todos os serviços de saúde pública deveriam efetivar a interrupção da gestação e outros direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. No entanto, somente 176 estabelecimentos são habilitados para realizar o procedimento, segundo levantamento do Relatório Acesso à informação e aborto legal no Brasil: mapeando desafios nos serviços de saúde. Além de ser um número pequeno para atender toda a população, o setor público não disponibiliza dados e informações sobre esses serviços, dificultando ainda mais para as pessoas que necessitam garantir o seu direito.
De acordo com Júlia Rocha, assessora de projetos da Artigo 19 e coordenadora da pesquisa, o objetivo do Relatório foi preencher uma das maiores lacunas para o acesso ao serviço: a indisponibilidade de informações facilmente encontradas e sistematizadas sobre aborto previsto em lei, principalmente sobre onde realmente seria possível realizar o procedimento.
Catarinas
Falta de informação e julgamento moral são obstáculos para acessar o serviço.
Como um dos resultados, o relatório demonstrou que dos 176 hospitais habilitados, somente 76 (43%) afirmaram que realizam a interrupção da gestação nos casos previstos em lei; 65 não realizam o procedimento e 35 não responderam às pesquisadoras.
“O segundo objetivo é diagnosticar como a falta de informação confiável e em formato cidadão sobre interrupção legal da gravidez não só impede que cidadãs tomem ciência do direito ao aborto legal, como também interfere no acolhimento das mulheres que buscam o serviço. Nossos achados apontam, portanto, que não basta somente a difusão de informações para cidadãs e cidadãos, como é urgente que as equipes responsáveis por atendimento nesses hospitais estejam treinadas em acordo com as normas técnicas disponibilizadas pelo Ministério da Saúde. Também, que as instituições e o poder público ofereçam condições para que as capacitações aconteçam e os profissionais possam realizar o seu trabalho sem receio de constrangimentos ou represálias”, avalia Júlia.
O medo dos profissionais de sofrerem constrangimentos e represálias é um dos aspectos diagnosticados pelo Relatório para o não funcionamento dos serviços. De acordo com Gabriela Rondon, pesquisadora e assessora jurídica do Instituto Anis de Bioética, o que está no pano de fundo dessa situação é a própria criminalização do aborto.
“Como o aborto legal ainda é uma exceção, num marco normativo em que a regra é a punição e a criminalização, isso faz com que inclusive os próprios profissionais de saúde estejam numa situação delicada, eles mesmos têm medo de não saber se o que eles estão ali diante é um caso em que podem oferecer o serviço ou se eles vão ser depois possivelmente perseguidos, se pode haver algum tipo de perseguição criminal, se for considerado que o que eles fizeram não foi um aborto legal”, analisa ela.
O receio da criminalização, portanto, perpassa pela própria falta de informação dos profissionais sobre a legislação vigente. Pelo artigo 20 do Código Penal brasileiro, o profissional de saúde fica isento de pena se proceder com o abortamento em um caso em que for verificado, posteriormente, inverdade na alegação de violência sexual, por exemplo.
O medo justificado de retaliação, por desconhecimento ou por objeções morais mais diretas à garantia do direito também foi considerado um dos fatores relevantes da dificuldade das pesquisadoras em conseguir informações por telefone nos estabelecimentos de saúde. “É preciso frisar que um recrudescimento de punitivismos administrativos pode ter, de alguma forma, coagido profissionais de saúde a não darem informações sobre aborto legal”, constata o estudo.
Falta de informação ou negação de direitos?
A dificuldade em conseguir informações reflete diretamente na baixa procura do serviço. De acordo com Rondon, o cenário do medo da criminalização leva à negação de direitos básicos de saúde, entendendo que o aborto legal deve ser considerado um serviço essencial dentro do rol amplo de serviços de saúde sexual e reprodutiva. “É um serviço que tem que ser prestado em regime de emergência, especialmente para mulheres e meninas vítimas de violência. Esse é um serviço em que o tempo importa, então a dificuldade de acessar, se uma mulher tiver que se deslocar para fora de seu estado, por exemplo, para acessar um serviço que oferece o procedimento básico como é o aborto legal. Isso é muito dramático. Se demandar custos de tempo e dinheiro para essa mulher, isso pode, no fim das contas, significar que ela não vai ter acesso”, argumenta.
Além do número reduzido de estabelecimentos que efetivamente realizam o procedimento, a pesquisa constatou que muitos hospitais e profissionais de saúde não cumprem com as orientações para esse tipo de atendimento, dispostas na Portaria 1.508, de 2005 e na Norma Técnica Atenção Humanizada ao Abortamento, de 2011. De acordo com Relatório, embora não devessem, 16 estabelecimentos exigem apresentação de Boletim de Ocorrência e um exige exame de corpo de delito para comprovar a violência sexual e proceder com o atendimento.
Para a entrevistada, o fato de profissionais e hospitais exigirem comprovações da violência que não estão previstas na norma técnica ou em outro tipo de documento de origem judicial ou do Ministério Público é um reflexo do medo e cria obstáculos para as mulheres e para o oferecimento do serviço. “Isso tem um reflexo perverso na vida das mulheres porque na prática o que o serviço está dizendo é que o hospital, o serviço de saúde não pode ser a porta de entrada para o acolhimento dessas mulheres vítimas de violência e elas têm que procurar um serviço policial, um serviço persecutório que muitas vezes não é um desejo daquela mulher, [porque] a gente sabe que a maior parte dos casos de violência acontece não por agressão de um estranho, mas por agressão dentro das redes de convivência, dentro da família, dentro de redes de amizade, muitas vezes o que essa mulher quer não é necessariamente denunciar essa pessoa, mas ela precisa de um atendimento à saúde […] Isso é perverso porque é uma negação muito básica de um acolhimento que essa mulher e essa menina deveria ter acesso”, avalia.
Outra barreira comum na realização do procedimento é a possibilidade de os profissionais de saúde alegarem objeção de consciência. É garantido no artigo 9 do Código de Ética Médica que os profissionais tenham direito a “recusar a realização de atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência”. No entanto, é vedado ao médico(a) “descumprir legislação específica nos casos de transplante de órgãos ou tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento”, conforme o artigo 15 do cap. III. Assim, é dever da/o profissional de saúde informar à mulher sobre seus direitos e, no caso de objeção de consciência, garantir a atenção ao abortamento por outro/a profissional da instituição ou de outro serviço. De acordo com o Protocolo de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual, não se pode negar o pronto atendimento à mulher em qualquer caso de abortamento, afastando-se, assim, situações de negligência, omissão ou postergação de conduta que viole a lei, o código de ética profissional, e os direitos humanos das mulheres.
A dificuldade do acesso ao serviço de aborto legal no país também esbarra na falta de estrutura. De acordo com a Norma Técnica de Atenção Humanizada do Abortamento, os hospitais devem contar com uma equipe multidisciplinar, composta por enfermeira/o, médica/o, assistente social e psicóloga/o. De acordo com o relatório do Artigo 19, somente 16 dos hospitais pesquisados (9%) disseram contar com esta equipe no serviço. Outro aspecto confuso com relação aos serviços diz respeito à idade gestacional máxima para a realização da interrupção. De acordo com a pesquisa, esta decisão, embora devesse ser uniforme, é tomada por cada estabelecimento, e varia entre 12 e 22 semanas. Por lei, a interrupção da gravidez em decorrência do estupro deve ser feita até a 20º semana ou até a 22º em caso de feto que pese menos de 500 gramas. Para os casos de anencefalia fetal e de risco de morte da gestante, não há limite de idade para a interrupção.
A falta de informação e de sistematização das práticas aumenta o fosso existente entre a legislação e a efetividade do direito ao aborto legal. Conforme Rondon, isso está relacionado, principalmente, à formação dos profissionais de saúde que, devido à criminalização, não têm acesso desde a graduação às informações básicas e a uma leitura não estigmatizada sobre a prática do aborto.
“Esse cenário já coloca em fragilidade as mulheres e os profissionais de saúde, e ao mesmo tempo, o fato de que a criminalização reforça o estigma, faz também com que não seja regularmente um tema dentro das próprias faculdades de medicina. Então a formação dos profissionais de saúde já é deficitária nesse sentido, não tem a adequada formação com relação aos parâmetros que são adotados pelo Ministério da Saúde de atendimento humanizado que poderia fazer com que o acesso fosse mais facilitado, do jeito que deveria ser, com acolhimento das mulheres, com real escuta às suas histórias e tudo o que é necessário numa situação tão vulnerável como essa”.
Mapa do aborto legal no Brasil
Para disponibilizar de maneira acessível os serviços que atualmente realizam o procedimento de aborto legal, a Artigo 19 lançou também a Plataforma Mapa do Aborto Legal, com informações sobre a legislação e os hospitais de referência para interrupção legal da gestação em todo o país. No entanto, até para criar o mapa, as pesquisadoras tiveram dificuldade.
Segundo Júlia Rocha, a lista de estabelecimentos, composta pelos hospitais que estão no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) do Sistema Único de Saúde, quanto pelos hospitais listados pelo Ministério da Saúde após pedido via Lei de Acesso à Informação, deixava de fora alguns estados, e muitos dos serviços não entraram no mapa por não terem respondido às solicitações da pesquisa.
“Alguns Estados não estavam presentes na lista do MS, como Roraima. Outros, como no caso do Paraná, não entraram no mapa porque não foi possível obter a confirmação da realização do procedimento via telefone (tivemos problemas no contato telefônico ou nos foi negada a resposta). Como a proposta geral do projeto é monitorar a efetivação dos direitos das mulheres num campo permeado por obstáculos e compartilhar informações, só foram incluídos os que confirmaram a realização do aborto previsto em lei quando contatados por telefone”, explica a pesquisadora.
Para ela, as possíveis razões para a dificuldade de conseguir as informações é que as equipes não estão completamente treinadas de acordo com as normas técnicas do Ministério da Saúde e que talvez exista algum tipo de constrangimento ou medo com relação à possibilidade de represálias (principalmente num momento em que o punitivismo a quem trabalha com direitos humanos e fundamentais têm estado em maior discussão).
“Também acreditamos que a identificação institucional possa ter, de alguma forma, gerado esse constrangimento. Assim, as principais lacunas de informação dizem respeito a quais situações é possível acessar o serviço, como acessá-lo, quais documentos são necessários, até qual idade gestacional é possível realizar o procedimento e, sobretudo, onde conseguir acolhimento e de fato conseguir o abortamento legal”, conclui.
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