Conteúdo da página
ToggleO Brasil está de volta ao Mapa da Fome desde 2018, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Na prática isso significa que mais de 10 milhões de pessoas passam pela privação de alimentos. Isso equivale a quase a população inteira do Rio Grande do Sul. “Mais de 5% da população passa fome, tem privação de uma das três refeições diárias. Na prática isso é um deterioramento das nossas condições sociais. Vamos ter mais violência (urbana principalmente), maiores níveis de desemprego, maiores níveis de miséria e principalmente as crianças serão mais afetadas”, explica José Graziano da Silva, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
A questão do combate à miséria passa, sobretudo, por um conjunto de políticas públicas, dentre elas a renda básica universal. “Essas políticas são fundamentais, especialmente naqueles países onde o problema não é a falta de alimentos produzidos (como é o caso do Brasil), mas a falta de dinheiro para comprar estes alimentos. Uma política só de transferência de renda não resolve o problema se não for acompanhada por uma melhoria na distribuição da renda, numa melhoria dos empregos, do crescimento econômico”, pontua.
No dia 25 de junho o ministro Paulo Guedes disse que o Brasil teria uma recuperação da economia em V, mas, passados quase três meses da declaração, não se vê nada no horizonte que sugira qualquer tipo de otimismo. “[A fome] É um reflexo da miséria em proporções difíceis de se prever, porque nós não sabemos quanto tempo vai durar a pandemia e quanto tempo vai levar a recuperação da economia brasileira. Os otimistas falam em recuperação ‘em V’, mas estamos vendo que isso não está ocorrendo em nenhum país do mundo, pelo contrário, os países estão enfrentando uma segunda onda”, avalia.
“A política de combate à fome e a política nutricional têm que ser uma política permanente, uma política de Estado. Não é à toa que a alimentação está na constituição como direito fundamental de todos os brasileiros”, complementa.
José Graziano da Silva é agrônomo de formação e doutor em Economia, professor titular aposentado do Instituto de Economia da Universidade de Campinas – Unicamp. Ocupou o cargo de diretor-geral da Organização das Nações Unidas para alimentação e Agricultura – FAO de 2012 a 2019. Com mais de 30 anos de conhecimento relacionado à segurança alimentar e nutricional e ao desenvolvimento rural, coordenou a formulação e implementação do Programa Fome Zero no Brasil enquanto Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome.
Foto: Valter Campanato – Agência Brasil
A política de combate à fome e a política nutricional têm que ser uma política permanente, uma política de Estado.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o coronavírus acabou impactando o aumento da vulnerabilidade alimentar no Brasil e no mundo?
José Graziano da Silva – Até agora dois efeitos são claramente conhecidos. O primeiro é uma piora na qualidade da alimentação em geral: as pessoas passaram a consumir menos produtos frescos, que são mais saudáveis (como frutas, verduras, legumes, peixes…) e aumentaram o consumo de alimentos duráveis, especialmente os processados, que duram mais tempo nas prateleiras, podem ser comprados e armazenados. Como as pessoas vão menos vezes ao supermercado ou a sua quitanda de proximidade, essa foi a estratégia. Há um impacto ainda não mensurado, mas previsível, de redução do nível de consumo dos mais pobres devido à redução do nível de renda.
O caso brasileiro é típico também disso. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE já tinha apontado um aumento nos níveis de insegurança alimentar leve e moderada entre 2013 e 2018. A insegurança alimentar leve, quando a pessoa passa a trocar produtos por qualidade inferior (ao invés de comer carne, por exemplo, passa a comer apenas produtos amiláceos, farinhas…), tinha aumentado 62%, a insegurança alimentar moderada (quando realmente há privação de uma das refeições) tinha aumentado 76% e a insegurança alimentar grave tinha aumentado 44%, no período do estudo, demonstrando claramente uma piora na qualidade das dietas.
Como o senhor vê políticas de transferência de renda como a renda básica? Quais podem ser os impactos relativos ao combate à fome? Que outras políticas precisam estar associadas?
José Graziano da Silva – Essas políticas são fundamentais, especialmente naqueles países onde o problema não é a falta de alimentos produzidos (como é o caso do Brasil), mas a falta de dinheiro para comprar estes alimentos. Uma política só de transferência de renda não resolve o problema se não for acompanhada por uma melhoria na distribuição da renda, numa melhoria dos empregos, do crescimento econômico… Ou seja, são necessárias outras políticas macroeconômicas para que a política de transferência de renda funcione. Foi o que aconteceu exatamente no governo Lula.
Quais devem ser as consequências sociais, no caso brasileiro, se for confirmada a suspensão já programada do auxílio emergencial?
É um reflexo da miséria em proporções difíceis de se prever, porque nós não sabemos quanto tempo vai durar a pandemia e quanto tempo vai levar a recuperação da economia brasileira. Os otimistas falam em recuperação “em V”, mas estamos vendo que isso não está ocorrendo em nenhum país do mundo, pelo contrário, os países estão enfrentando uma segunda onda. Então essas indas e vindas podem estender a pandemia por um tempo considerável. E aí a fome pode ser uma das consequências massivas. O Brasil pode voltar a uma situação anterior à de 2013.
O que significa o retorno do Brasil ao mapa mundial da fome? Na prática, quais as consequências?
Significa que mais de 5% da população passa fome, tem privação de uma das três refeições diárias. Na prática isso é um deterioramento das nossas condições sociais. Vamos ter mais violência (urbana principalmente), maiores níveis de desemprego, maiores níveis de miséria e principalmente as crianças serão mais afetadas, podendo a crise até mesmo comprometer as nossas futuras gerações, se for de uma grandeza como se espera.
De que maneira esse retrato da fome, não somente no Brasil, mas no planeta, ilustra a profunda desigualdade em todos os quadrantes globais, mas especialmente nos países do Sul global?
Sem dúvida o aumento da fome não é só o caso do Brasil. Esse aumento está sendo afetado claramente pelas desigualdades sociais e principalmente de renda no caso brasileiro e em muitos outros países da América Latina e África. Mas há também outras causas, como a guerra. Vamos lembrar que, segundo os dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO e do Programa Mundial de Alimentos, duas de cada três pessoas hoje que passam fome no mundo vivem em áreas de conflito ou áreas de restrição da produção de alimentos devido a graves mudanças climáticas. O Brasil não faz parte dessa relação dos países em conflito, mas quando a gente vê o que está se passando nas nossas favelas e nas periferias dos grandes centros urbanos, é difícil não qualificar esses conflitos sociais como verdadeiras guerras.
O senhor acredita que poderá haver mudanças globais nas cadeias de produção após a pandemia?
Acredito que ainda é cedo para prever, mas o que se nota é um acelerar das tendências que já se vinham desenhando. Por exemplo, um maior uso das compras online, da internet, do e-commerce, mesmo para as compras de supermercado. Hoje já se pode ver supermercados se adaptando, é possível fazer o pedido por um aplicativo e eles já têm uma área reservada, o carrinho fica lá pronto e estacionado para você ir buscar, ou mesmo o sistema de delivery, já operativo.
Há outras mudanças associadas que dependem de tempo para se consolidar. Como o encurtamento das cadeias muito longas de commodities exportadas para regiões distantes que deverão ter esse percurso reduzido e substituído por produções mais locais, de proximidade. É insustentável que nós continuemos a ter, por exemplo, o tomate do Rio Branco, da Amazônia, sendo levado até Chapecó. Temos que encontrar soluções para isso.
De que forma a fome está associada também às questões ambientais, sobretudo no que toca às políticas ambientais?
Diria que de várias maneiras, mas a principal delas é a destruição dos meios de subsistência e do passado importante da população rural. O acesso às florestas, por exemplo, o acesso às áreas de pesca e também de caça (em menor proporção). Mas o principal é a erosão dos solos, a deterioração ambiental de maneira geral, principalmente da água. A escassez de água, tanto potável quanto para irrigação, afeta fundamentalmente pequenos produtores que não têm meios para investir em novas tecnologias.
Qual o propósito do Instituto Fome Zero? Como deverá ser a atuação do IFZ?
O Instituto Fome Zero foi lançado justamente neste momento que o Brasil enfrenta a pandemia com a volta ao Mapa da Fome. O IFZ nasce para alertar a importância das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional. Não podemos descuidar da fome, a gente come todos os dias. Você precisa comer de maneira saudável para ter uma vida saudável. Isso precisa ter uma atenção e prioridade dos governos, não pode haver uma atenção e depois parar com a política. A política de combate à fome e a política nutricional têm que ser uma política permanente, uma política de Estado. Não é à toa que a alimentação está na constituição como direito fundamental de todos os brasileiros. E mais, a alimentação saudável hoje é uma necessidade até para enfrentar as consequências da pandemia. A gente sabe que as pessoas obesas, por exemplo, que é uma manifestação da má qualidade da alimentação, têm maior probabilidade de morte porque têm comorbidades associadas, tais como problemas cardíacos, pressão alta, diabetes e outras doenças crônicas não transmissíveis. É importante ter claro isto: uma política de segurança alimentar e nutricional tem que ser permanente. Para isso nasce o Instituto Fome Zero, para estar vigilante em relação às políticas públicas.
Deseja acrescentar algo?
Eu queria acrescentar que uma política de segurança alimentar e nutricional não é só para os pobres, é para todos os brasileiros. Todos nós precisamos aprender a comer de forma mais saudável, a comer melhor. Nós não temos essa formação. Antes os nossos pais, nossos avós, sabiam o que cozinhar, sabiam ir à horta, buscar seus produtos, ir à feira… hoje nós compramos os produtos nos supermercados e muitas vezes embutidos. Por exemplo, uma salsicha. Quem sabe o que tem dentro de uma salsicha? Quem sabe o que tem dentro destes produtos multiprocessados? Massas, hambúrgueres? Nós precisamos reaprender a comer, recuperar o controle da nossa alimentação. O IFZ vem para relembrar essa necessidade de nós sermos senhores do que comemos. Escolhermos bem uma comida saudável e nutritiva.
Ricardo Machado | Revista IHU Online
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
Veja também
Se você chegou até aqui é porque valoriza o conteúdo jornalístico e de qualidade.
A Diálogos do Sul é herdeira virtual da Revista Cadernos do Terceiro Mundo. Como defensores deste legado, todos os nossos conteúdos se pautam pela mesma ética e qualidade de produção jornalística.
Você pode apoiar a revista Diálogos do Sul de diversas formas. Veja como:
- Cartão de crédito no Catarse: acesse aqui
- Boleto: acesse aqui
- Assinatura pelo Paypal: acesse aqui
- Transferência bancária
Agência – 0713
Conta Corrente – 24192-5
CNPJ: 58726829/0001-56 - Receba nossa newsletter semanal com o resumo da semana: acesse aqui
- Acompanhe nossas redes sociais:
YouTube
Twitter
Facebook
Instagram
WhatsApp
Telegram