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Com disparada de preços de alimentos básicos, fome cresce em cidades brasileiras

Solidariedades de organizações sociais e movimentos populares mitigou desmonte de políticas públicas de segurança alimentar
Marco Weissheimer
Sul 21
Porto Alegre (RS)

Tradução:

“Moço, consegue me comprar um quilo de arroz ou de feijão?” Pedidos como este, que já vinham crescendo nos últimos anos nas esquinas e arredores de supermercados e mercados, tornaram-se diários e crescentes nos últimos meses em Porto Alegre e em milhares de outras cidades brasileiras.

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Como o uso de dinheiro físico vem diminuindo nestes locais, pela proliferação de meios eletrônicos de pagamento, os pedidos de ajuda com algum dinheiro foram dando lugar a pedidos diretos por alimentos.

Com a disparada de preços de alimentos básicos, uma doação na forma de um quilo de arroz ou feijão passou a ter um valor maior para milhares de pessoas em situação de rua ou sem renda para comprar alimentos para suas famílias.

Não há estatísticas oficiais a respeito, mas o cenário visto no entorno dos supermercados, entre outras evidências, indicam um agravamento expressivo do problema da fome em Porto Alegre.

O IBGE considera condição de segurança alimentar quando os moradores dos domicílios têm acesso pleno aos alimentos, seja em quantidade suficiente como em qualidade adequada.

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A insegurança alimentar, portanto, consiste na ausência destas condições. E o que dizer das milhares de pessoas que sequer têm um domicílio, quanto mais acesso pleno e regular a uma alimentação saudável.

Outro obstáculo que as famílias em situação de fome e insegurança alimentar enfrentam é a dificuldade em ter acesso a uma informação clara sobre como acessar programas sociais de assistência social, aqueles que ainda não foram desmontados, é claro.

A falta de alimento e de moradia é acompanhada pela falta de acesso a informações que deveriam ser asseguradas pelo poder público.

Em 2020, ao longo dos primeiros meses de pandemia, as escolas municipais de Porto Alegre também passaram a receber pedidos de alimentos vindos de famílias das comunidades onde estão localizadas.

As escolas tinham algum estoque de cestas básicas destinadas pela Prefeitura para a alimentação dos alunos. As famílias em situação de vulnerabilidade alimentar foram encaminhadas aos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) de suas respectivas regiões.

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Como alguns CRAS não estavam dando conta da demanda, professoras de praticamente todas as escolas da rede municipal passaram a montar campanhas de arrecadação para aquisição de cestas básicas. Além disso, foram feitas doações para pequenos mercados próximos das escolas, para que famílias em situação de extrema vulnerabilidade pudessem buscar uma cesta básica.

Solidariedades de organizações sociais e movimentos populares mitigou desmonte de políticas públicas de segurança alimentar

Foto: Leandro Molina/Divulgação
Solidariedades de organizações sociais e movimentos populares mitigou desmonte de políticas públicas de segurança alimentar

Na virada do ano, o agradecimento de Dona Maria

A solidariedade dentro das próprias comunidades ajuda a mitigar a dramática realidade da fome.

30 de dezembro de 2020. Um dia antes da virada do ano. Dona Maria, moradora de uma comunidade da zona sul da capital gaúcha, recebeu a visita de Morgana Alves, diretora do Centro Africano Santa Luzia, ou Quilombo Santa Luzia como também é conhecido, que vem construindo uma rede de solidariedade para auxiliar famílias que estão em situação de extrema pobreza no Jardim Cascata, comunidade localizada na zona sul de Porto Alegre.

Dona Maria estava acompanhada de um de seus dois filhos – que necessita regularmente de medicamentos especiais – e da sua mãe, que está acamada, também precisando de cuidados especiais. Desempregada, ela agradeceu a visita e a solidariedade.

“Eu não sei como te agradecer. No dia que recebi a marmita, não tinha nada pra comer dentro de casa, numa situação extrema mesmo”.

O caso de Dona Maria é um entre muitos, conta Morgana. Hoje, o Quilombo Santa Luzia já ajuda cerca de 80 famílias da comunidade, com alimentos, material de higiene e outros produtos, mas, segundo ela, o número de famílias em situação de extrema pobreza, sem ter o que comer, não para de crescer. Com o agravamento da pandemia e a desarticulação da rede pública de proteção social em Porto Alegre nos últimos anos, essas famílias não têm acesso à praticamente nenhuma política de assistência social.

“Essas famílias foram esquecidas pela prefeitura e pelo prefeito”, resume Morgana Alves que vem gravando pequenos vídeos com o celular para mostrar a realidade vivida por essas famílias e tentar obter maior apoio para o trabalho já realizado pelo Quilombo.

“Eu não estou me candidatando a nada, nem a vereador nem a coisa alguma, esse é um trabalho do Centro Africano para ajudar os nossos aqui no Jardim Cascata”.

O fim do auxílio emergencial e a lista de espera do Bolsa Família

Na avaliação de Paola Carvalho, Diretora de Relações Institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica, o aumento da fome em Porto Alegre foi potencializado pelo fim do Auxílio Emergencial.

Em 2020, segundo dados do Ministério da Cidadania, 337 mil pessoas receberam ao menos uma parcela do auxílio. No entanto, na quarta parcela de pagamento do auxílio apenas 211,9 mil pessoas seguiram recebendo.

Paola Carvalho estima que cerca de 70% das comunidades de Porto Alegre utilizaram esse dinheiro para alimentação e a interrupção desses recursos, por meses seguidos, agravou diretamente o problema da fome. Com a diminuição de renda, muitas famílias não perderam apenas a capacidade de se alimentar regularmente, mas a própria moradia.

Estima-se que há mais de quatro mil pessoas em situação de rua hoje em Porto Alegre. (Foto: Guilherme Santos/Sul21) 

A percepção do aumento da população em situação de rua é visível, mas ainda não há dados atualizados sobre a dimensão deste crescimento. Há uma expressiva parcela deles que sequer aparece nos cadastros oficiais, assinala Paola Carvalho

Das mais de 4 mil pessoas em situação de rua estimadas hoje em Porto Alegre (estimativa esta que já pode ter sido ultrapassada), pouco mais de 2 mil estão mapeadas pelo Cadastro Único para Programas Sociais. Ou seja, essas pessoas, não recebem qualquer tipo de assistência.

Além disso, estima-se também que há mais de 38 mil famílias na lista de espera do Bolsa Família, considerando aí somente as famílias que já estão cadastradas no CadÚnico.

Porto Alegre tem hoje mais de 107 mil famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais e outras 320 mil famílias que têm perfil de renda para estarem incluídas neste cadastro.

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O agravamento do problema da fome não se resume a Porto Alegre. Segundo dados da última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) – Análise da Segurança Alimentar no Brasil, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), após quedas seguidas por mais de uma década, a fome voltou a crescer no Rio Grande do Sul.

Em 2018, cerca de 975,2 mil domicílios sofriam algum tipo de insegurança alimentar. Segundo a pesquisa, entre 2004 e 2013, a insegurança alimentar diminuiu 35,7% no estado. Já de 2013 para 2018, esse cenário se reverteu e a insegurança alimentar aumentou 47,8%. A porcentagem de famílias que vivia com algum grau de insegurança alimentar era de 24,8% em 2004, 19,2% em 2009 e 15,9% em 2013. Em 2018, esse percentual subiu para 23,5%.

A solidariedade de movimentos sociais e sindicatos

A ausência de políticas públicas vem sendo mitigada por campanhas de solidariedade realizadas por organizações da sociedade civil, sindicatos e movimentos populares do campo e da cidade.

Em dezembro de 2020, na semana que antecedeu o Natal, assentados e cooperativas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) entregaram cerca de 12 toneladas de produtos da Reforma Agrária a famílias da periferia de Porto Alegre. Além disso, os Sem Terra doaram mais 50 caixas de hortaliças orgânicas.

A ação do  MST do Rio Grande do Sul contou com a parceria da Periferia Viva, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Ação da Cidadania, União de Vilas e Comitê de Combate à Fome. Ao longo do ano de 2020, os assentamentos do MST no Rio Grande do Sul doaram mais de 282 toneladas de alimentos produzidos em seus territórios.

Somente em dezembro, MST entregou mais de 12 toneladas de alimentos em comunidades da periferia de Porto Alegre. (Foto: Maiara Rauber)

A campanha Natal sem Fome, articulada em nível estadual pela Ação da Cidadania-RS, Consea-RS e Cáritas-RS, conseguiu distribuir mais de 38,2 toneladas de alimentos para famílias em situação de vulnerabilidade social, povos indígenas, quilombolas e migrantes. Essa campanha integrou o conjunto de ações de solidariedade realizadas durante o ano pelo Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome, que desde o início da pandemia já promoveu a doação de mais de 800 toneladas de alimentos.

Centrais sindicais e sindicatos também distribuíram algumas toneladas de alimentos na periferia de Porto Alegre e de outros municípios da Região Metropolitana em 2020. No início de 2021, foi criado o Comitê Popular de Enfrentamento à Covid em Porto Alegre, que também está promovendo campanhas de doações e solidariedade com a população em situação de vulnerabilidade social.

Os restaurantes populares e a ação da Prefeitura

Uma das alternativas de alimentação para uma parcela da população em situação de rua ou população sem renda é o Programa Restaurante Popular, que serve refeições às pessoas em situação de rua e de alta vulnerabilidade social. Esse programa distribuiu 187 mil refeições, na forma de marmitas, desde março de 2020. O programa é coordenado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, mas é terceirizado para organizações sociais civis selecionadas por edital de chamamento público.

Atualmente, Porto Alegre tem quatro restaurantes populares funcionando em regiões distintas da cidade. Foto: Joana Berwanger/Sul21 

Atualmente, há restaurantes populares em quatro regiões da cidade: no Centro, com capacidade de servir 400 refeições/dia, na Cruzeiro, com 100 refeições/dia, na Lomba do Pinheiro, 100 refeições/dia, e na Restinga, com 100/refeições dia. O cardápio (com cerca de 1200 calorias, seguindo normas do Programa de Alimentação do Trabalhador) é composto por arroz, feijão, guarnição (massa, batata, aipim, polenta ou legumes), uma proteína animal e verduras, uma fruta de sobremesa e água.

Os endereços dos restaurantes populares são os seguintes:

Centro Histórico – Rua Garibaldi, 461

Cruzeiro – Rua Dona Otília, 210

Lomba do Pinheiro – Rua Cacimbas, 159

Restinga – Estrada Chácara do Banco, 71

Em abril, deve ser publicado um edital de chamamento público para organizações interessadas em assumir a gestão de mais um espaço de refeições populares, no Eixo Baltazar/Nordeste, com capacidade para o fornecimento de 100 refeições/dia.

Além dos restaurantes populares, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) já distribuiu mais de 130 mil cestas básicas, segundo informações da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. A Secretaria informa ainda que as pessoas que necessitam de alimentos, e que estão inscritas no CadÚnico , podem procurar o CRAS da região onde moram. A partir daí, será feita uma entrevista e agendada a entrega das cestas.

Marco Weissheimer, jornalista para a Sul21


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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